Por um feminismo queer: Beatriz Preciado e a pornografia como pre-textos
Pornografia: de objecto de censura a espaço de emancipação
Na década de 1980, nos Estados Unidos, a pornografia1 era campo de aceso debate
entre feministas, tendo as discussões ficado cunhadas como «guerras feministas
do sexo» (Preciado, 2007). Catharine Mackinnon e Andrea Dworkin, figuras
proeminentes do chamado feminismo «anti-sexo» ou «pró-censura», vêem a
pornografia como modelo explicativo e multiplicador da opressão política e
sexual das mulheres. Para estas feministas, e para o movimento do qual eram
porta-vozes, a pornografia era uma forma de promoção da violência e da
dominação política e sexual sobre as mulheres. Tal violência derivaria da
objectificação das mulheres e da sua redução, de acordo com Lynne Segal (1992:
2), à passividade e à condição «de corpos ' ou pedaços de corpos ' eternamente
disponíveis para servir os homens»2. Assim, a pornografia objectificaria as
mulheres e tudo o que as objectifica seria considerado pornografia.
De acordo com Dworkin (1981: 49), os homens veriam, invariavelmente, as
mulheres como objectos, independentemente da sua orientação sexual, filosofia
política, nacionalidade ou classe. Esta visão das mulheres como objectos
tratar-se-ia de uma das múltiplas formas de exercício soberano do poder
masculino; de um poder que «alguns asseguram que ( ) sobrevive à morte física»
(idem: 13). Nesta compreensão do masculino, Dworkin denota uma visão
totalizadora e totalizante dos homens, apagando as suas diferenças e criando
uma identidade masculina única, fixa e essencialista. Simultaneamente, parece
atribuir aos homens um poder sobrenatural, transcendental3 que, para os
propósitos feministas de «libertação das mulheres ' objecto», me parece
especialmente contraditório, uma vez que mais não faz do que reificar e
subentender a inevitabilidade e eterna dominação masculina. Para além da visão
da identidade masculina como única e invariável, também a feminina é
homogeneizada. Nesta concepção da pornografia como violência, as mulheres
teriam um papel único: o de vítimas, sem voz, sem acção4.
Ao denunciar esta passividade, Dworkin não mais faz que reforçá-la. Por um
lado, parece indicar que as mulheres não são sujeitos (apresenta-as como meros
receptáculos de uma vontade masculina), por outro lado, a própria autora não
«lhes dá», uma vez que seja, voz. Em nenhuma parte do seu tratado
antipornografia ' Men possessing women (1981) ' as mulheres têm voz. A única
que se ouve é a de Dworkin, num tom abafador de vozes outras.
Este movimento feminista «anti-sexo» concebe a pornografia não apenas como
representação da submissão feminina aos desejos masculinos, mas sendo, ela
própria, construtora dessa realidade, como afirma MacKinnon (apud Butler, 2004:
113):
[ ] Mais do que representar uma mensagem da realidade, a
pornografia apresenta-se como sendo a realidade [ ]. A
pornografia, através da sua produção e uso, transforma o
mundo num espaço pornográfico, [ ] construindo a realidade
social do que é uma mulher [ ].
Sendo construtora da submissão feminina, a única estratégia possível e viável
para fazer face à pornografia, segundo os movimentos «anti-sexo», é a sua
censura e abolição. E é neste sentido que foram (e vão) as reivindicações
abolicionistas da pornografia e do trabalho sexual em geral.
De acordo com Preciado (2007), Ellen Willis será, em 1981, a primeira a
criticar este discurso abolicionista, argumentando que reivindicar a censura e
a actuação do estado «sobre» a pornografia é conferir e perpetuar o poder que
aquele exerce sobre as representações da sexualidade. Com Willis inaugura-se um
feminismo «pró-sexo» (expressão que a própria funda) em que o corpo, a
sexualidade e a pornografia são entendidos, de acordo com Kipnis (apud Attwood,
2004: 9), como «um reino de transgressão às normas dominantes dos corpos,
sexualidades, e do desejo em si». Os corpos, sexualidades e pornografia deixam,
assim, de ser objecto de censura e regulação para passarem a ser vistos, neste
movimento, como espaços que possibilitam, às mulheres e às minorias sexuais, o
empoderamento económico e político.
Pós-pornografia: a contra-sexualidade
De-preciado ou a-preciado: Beatriz e o manifesto contra-sexual
Beatriz Preciado, apropriando-se, segundo a própria, de conceitos de teóricos e
teóricas como Michel Foucault, Monique Wittig, Teresa De Lauretis, Antonio
Negri, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Donna Haraway, Halberstam ou Judith
Butler, assim como da desconstrução Derridiana, vai propor, no seu Manifiesto
contra-sexual, um vulcânico romper do hímen epistemológico que tem marcado as
recentes reflexões sobre a política da sexualidade e do género, não só no
feminismo como nas teorias do corpo e da performatividade e, consequentemente,
na visão da pornografia.
Com um «humor corrosivo» (como diz Bourcier no prefácio da obra), Preciado
denuncia, no Manifiesto contra-sexual, as tecnologias sexuais e sociais que
criam a diferenciação sexual e a naturalizam, bem como apresenta práticas
contra-sexuais (descritas e ilustradas) que permitem uma nova cultura do sexo/
uma resignificação das experiências sexuais5. A proclamação da equivalência de
todos os corpos-sujeitos que se comprometem a seguir o contrato contra-sexual,
bem como a procura de desconstrução da pretensa «Natureza» (que é usada para
legitimar a sujeição de uns corpos a outros) constituem as grandes propostas da
nova sociedade contra-sexual6, em que o dildo assume um papel de destaque.
No princípio era o dildo
Butler (2007: 266), na senda da sua teoria da performatividade, afirma que «a
essência ou a identidade [ ] são invenções fabricadas e preservadas mediante
signos corpóreos e outros meios discursivos», por via da regulação pública e
social e com vista a manter a ordem (hetero)sexual; também Preciado (2002: 18)
considera que as diferenças sexuais são performatividades normativas inscritas
nos corpos como verdades biológicas. No entanto, Preciado vai reclamar a
materialidade do «género» que Butler teria ignorado, isto é, convoca as formas
de incorporação e de corporeidade específicas que caracterizam distintas
inscrições performativas da identidade. Assim, e de acordo com Preciado (idem:
25), o
«género» não é apenas discursivo e linguístico, mas sobretudo protésico,
«puramente construído e ao mesmo tempo internamente orgânico»7. Na sequência
desta visão do género como prótese, Preciado propõe que pensemos o género como
um dildo, como uma prótese que ultrapassa a mera imitação, criando e
reconfigurando o que pretende complementar.
O dildo é, para Preciado, não uma mera reposição de um ente ausente, nem uma
simples reprodução mimética do órgão que pretende substituir, mas sim um mote
para a modificação e o desenvolvimento de um órgão vivo ' tal como o telefone
que, como prótese do ouvido, apura a possibilidade de comunicação com corpos
distantes. Para Preciado, o dildo não é apenas um objecto mas uma operação de
deslocalização/des-territorialização do suposto centro orgânico de produção
sexual (de desejo, prazer) para um lugar externo ao corpo. Esta operação de
corte e trasladação que o dildo representa inaugura a deslocação do
significante que, por seu turno, inicia o processo de destruição da ordem
heterocêntrica. O dildo não é, então, uma «falsa imitação» do pénis-falo, antes
deixa antever como se constrói o pénis-falo como significante sexual autêntico.
Esta reconfiguração dos limites erógenos que o dildo vem introduzir coloca em
questão a ideia de que os limites da carne coincidem com os limites do corpo
(idem: 71). Uma vez que a prótese não pode ser estabilizada, definida como
orgânica ou mecânica ou como corpo ou máquina, vai pertencer por um tempo ao
corpo vivo, mas resiste à incorporação definitiva. Este estatuto borderline da
prótese expressa a impossibilidade de traçar limites nítidos entre o «natural»
e o «artificial», entre o «corpo» e a «máquina». Como no mito do ciborgue, de
Donna Haraway (in Macedo, 2002: 222-225), os corpos tornam-se num «organismo
cibernético, um híbrido de máquina e organismo, simultaneamente uma criatura
com realidade social e uma criatura de ficção» em que a fronteira que separa a
«ficção da realidade social é uma ilusão de óptica» e a «natureza e a cultura
são reelaboradas; uma já não pode ser alvo de apropriação e incorporação pela
outra».
Como objecto móvel que é possível «deslocar», desprender e separar do corpo, ou
como algo cujo uso é reversível, o dildo ameaça constantemente as oposições
órgão natural/máquina, dentro/fora, passivo/activo, penetrar/cagar, oferecer/
tomar (Preciado, 2002: 70).
Confrontada com este pequeno objecto, a totalidade do sistema heterossexual de
papéis de «género» perde sentido, já que o dildo não é apenas uma reprodução
mimética do pénis que, utilizado, entra na ordem heterossexual, mas uma
conversão de qualquer espaço como centro; tudo é dildo e, como tal, tudo se
torna orifício (idem: 69). Assim, a tecnologia (hetero)sexual que destaca
determinadas partes do corpo (sexuais-reprodutoras) para as naturalizar e as
apresentar como exclusivos significantes sexuais e como centros erógenos (em
detrimento de qualquer outra parte do corpo) é ameaçada. O corpo já não mais
respeita a biopolítica heterossexual sendo reconfigurado, tal como dita o
artigo 11 dos princípios da sexualidade contra-sexual: «a sociedade contra-
sexual estabelecerá os princípios de uma arquitectura contra-sexual», em que
novos espaços contra-sexuais são criados e a fronteira entre o público e o
privado é desconstruída (Preciado, idem: 35). Indo um pouco mais além na
leitura de Preciado, aquilo que a sociedade contra-sexual parece sugerir é a
desconstrução do público e privado dentro do próprio privado, uma vez que,
nesta «esfera», partes do corpo são mais privatizadas (menos públicas) que
outras, como é exemplo o ânus.
As tecnologias (hetero)sexuais
No Manifiesto contra-sexual, Preciado (idem: 99-104) recorre, ainda, às
cirurgias de «mudança de sexo» de pessoas transexuais para reflectir sobre as
dinâmicas da tecnologia (hetero)sexual. A faloplastia, uma das cirurgias
realizadas a pessoas transexuais, consiste, segundo os discursos médicos e
legais contemporâneos, na reconstrução do pénis e necessita de, pelo menos,
quatro intervenções cirúrgicas complexas. Já a vaginoplastia não é referenciada
como construção dos órgãos genitais femininos, mas como a cirurgia que permite
transformar («invaginar») um pénis numa vagina. Ora, se este processo se
executa como uma «invaginação» do pénis, tal significa que, no discurso médico
heterossexual, a masculinidade contém em si mesma a possibilidade da
feminilidade: não é necessário construir uma vagina, bastando encontrar a
vagina que está no interior do pénis. Assim se reforça a visão médica do século
XVIII de que a «biologia» feminina é o masculino que não se desenvolveu
biologicamente.
Outro cenário que, para Preciado (idem: 104-117), torna visível o labor da
tecnologia heterossexual é o processo de «atribuição de sexo» a pessoas
«intersexuais», os tratamentos hormonais e as cirurgias «reconstrutivas»
inerentes. Aí é possível observar que o ideal científico consiste em evitar
qualquer tipo de ambiguidade, procurando que a atribuição de sexo coincida com
o nascimento. A ambiguidade seria muito perigosa e ameaçadora da ordem sexual
hegemónica e, portanto, há que catalogar os corpos e órgãos intersexuais como
«subdesenvolvidos», «mal-formados», «inacabados», como «excepções patológicas»,
etc., mas nunca como verdadeiros órgãos. Esta exclusão da ordem heterossexual
(a sua conotação como desvio) só a vem reforçar e estabilizar enquanto isso
mesmo: norma (l). A atribuição de sexo aos/às recém-nascidos/as intersexuais
depende, no modelo criado por John Money (e que serve ainda hoje de base a este
processo), exclusivamente dos órgãos sexuais (as zonas não sexuais são
consideradas periféricas). A partir da «reconstrução» do nariz ou da boca,
denuncia Preciado, é impossível, nesta lógica, reconstruir a totalidade do
corpo como sexuado, ao passo que através da reconstrução dos «órgãos genitais»
já o é. Se um/a recém-nascido/a intersexual se considera geneticamente feminino
(XX) há que accionar uma série de tratamentos e cirurgias, uma das quais a
formação de um canal vaginal que deve estar sobretudo preparado para receber um
pénis. Esta visão da vagina como orifício que alberga um pénis desnuda os
sistemas de pensamento heterossexuais em que, tal como afirma Atkinson (apud
Wittig, 1992), «o coito é visto como instituição» e ilumina a afirmação de
Wittig quando diz que as lésbicas não têm vagina. Mas nem sempre a análise dos
cromossomas é determinante para a atribuição de sexo. Mesmo que, depois de uma
análise dos cromossomas, se identifique geneticamente o recém-nascido
intersexual como masculino, é atribuído o sexo feminino se o corpo for
susceptível de gravidez, revela Preciado (idem: 116). Esta atribuição de sexo
feminino com base na capacidade de parir vem reforçar a lógica heterossexual em
que a sexualidade/diferença sexual se define pela maternidade. Ainda que um
bebé intersexuado possa ser cromossomaticamente feminino, diz-nos Preciado
(idem: 113), se apresentar uma «protuberância de tamanho apropriado» será
definido como masculino, por se acreditar que um pénis é suficiente para
provocar uma identidade masculina. Por esta razão, é possível afirmar que nos
discursos médicos e legais contemporâneos, o pénis adquire um carácter quase-
transcendental, situando-se para lá dos artifícios, como se fosse a única
«Natureza». E é precisamente aqui, afirma Preciado (idem: 117), que o dildo
irrompe como um «espectro vivo».
Para Preciado, também a pornografia constitui uma tecnologia sexual central8
«na biopolítica global de produção e normalização do corpo», sexualidade e
prazer, por excluir todas as expressões, práticas e corpos que não se encaixam
nessa «normalidade». No entanto ' e apesar de considerar a pornografia
tradicional como tecnologia sexual ', Preciado não propõe, ao contrário das
feministas «anti-sexo», que a estratégia utilizada seja a censura. Preciado
(2007) afirma, antes, que «o melhor antídoto contra a pornografia dominante» é
«a produção de representações alternativas, criadas a partir de olhares
divergentes». Nas representações «pornográficas» alternativas têm especial
destaque as partes do corpo que foram privatizadas/silenciadas em prol de uma
normatividade heterossexual, bem como as práticas sexuais catalogadas como
«monstruosas» (como o Sado-masoquismo). Assim, a pornografia aparece como uma
plataforma política de acção e intervenção pública e resistência aos códigos
normativos da pornografia tradicional. À reapropriação deste espaço e a sua
«transformação» em plataforma de contra-poder/sexualidade Preciado (2004) vai
designar de políticas das multitudes queer.
O corpo e o prazer como plataformas políticas de resistência
' as Multitudes Queer
As multitudes queer, isto é, os corpos, partes dos corpos e os desejos
considerados abjectos9, «os órgãos que não funcionam para a norma
heterossexual, os defeitos, o que está fora do padrão» (Borges e Bensusan,
2008) e que é descartado e invisibilizado pela norma sexual ' as lésbicas, os
maricas, os negros, as pessoas transexuais, as putas, as travecas, as drag-
kings, as mulheres barbudas, o sado-masoquismo, a bissexualidade ' outrora
representados como objectos monstruosos são agora, nesta política, sujeitos de
enunciação e «lugares de resistência ao
ponto de vista universal, à história branca, colonial e hetero do humano»
(Preciado, 2004). Esta resistência pode assumir, de acordo com Preciado (2002:
29), várias estratégias, entre as quais a des-identificação, tal como nos
mostram os artigos 1 e 2 dos princípios da sociedade contra-sexual:
Artigo 1
A sociedade contra-sexual ordena que se cague nas
denominações «masculino» e «feminino», correspondentes às
categorias biológicas ( ) do bilhete de identidade, assim
como de todos os formulários administrativos e legais de
carácter estatal ( ).
Artigo 2
Para evitar a reapropriação dos corpos como feminino ou
masculino ( ), cada novo corpo ( ) terá um novo nome que
escape às marcas de género ( ).
Esta des-identificação passa, então, pela negação e não identificação com
categorias naturalizadas (homem, mulher, transsexual, homossexual, lésbica,
etc.), caminhando, progressivamente, para a des-ontologização dos sujeitos e
das políticas identitárias (uma outra estratégia/ambição da sociedade contra-
sexual e da política das multitudes queer). Apesar da sua relevância
estratégica, a des-identificação não será, para Preciado (2004), suficiente
para o desmantelar e reconverter as tecnologias da sexualidade e dos corpos.
São necessárias, igualmente, identificações estratégicas.
O que Preciado propõe com estas identificações estratégias baseia-se na re-
significação dos textos10 em que modalidades de poder são voltadas contra si
próprias a fim de produzir estruturas de poder alternativas, tal como afirma
Butler (2004: 117), «se o texto actua uma vez, poderá actuar novamente, e é
possível que dessa vez o faça contra o acto precedente, sendo que esta re-
significação abre possibilidades a uma leitura alternativa da performatividade
e da política».
Para minar e destruir a ordem (hetero)sexual, esta re-significação deve ser
multiplicada, sendo que tal proliferação não implica uma estabilização dos
significados alternativos e subversivos nem a substituição de um significado
normativo por outro, mas sim a proliferação de corpos, desejos, prazeres e
formas de intimidade (Seidman, 1994: 116) «que recusam replicar-se fielmente
uns aos outros» (Salih & Butler, 2004: 198).
A contra-sexualidade implica, então, estas re-significações mas que não se
podem ficar apenas pelo domínio dos discursos, até porque, como vimos, Preciado
reclama a materialidade dos corpos. Assim, Preciado vai apresentar, no
Manifiesto contra-sexual11, sugestões práticas (que não excluem, obviamente, os
discursos) de contra-sexualidade que vão desde masturbar um braço à
autopenetração anal. No artigo 4 dos princípios que regem a sociedade contra-
sexual, Preciado (2002: 30-31) propõe ainda:
( ) a universalização das práticas estigmatizadas como
abjectas no quadro heterocêntrico e ( ) encontrar e propor
novas formas de sensibilidade e afecto ( ). Resexualizar o
ânus ( ) como centro contra-sexual universal [«Pelo ânus, o
sistema tradicional da representação sexo/género caga-se»
(Preciado, 2002: 27)].
Difundir, distribuir e colocar em circulação práticas
subversivas de re-citação dos códigos, das categorias de
masculinidade e feminilidade naturalizadas no quadro do
sistema heterocêntrico. A centralidade do pénis, como eixo
do poder no quadro do sistema heterocêntrico, requer um
imenso de trabalho de re-significação e desconstrução. Como
tal, ( ) o dildo e todas as suas variações sintácticas '
tais como dedos, línguas, vibradores, pepinos, cenouras,
braços, pernas, o corpo inteiro, etc. ', assim como as suas
variações semânticas ' tais como ( ) pistolas, ( ) etc. '
serão utilizadas por todos os corpos ou sujeitos falantes
( ).
Parodiar e simular de forma sistemática os efeitos
habitualmente associados ao orgasmo, para assim subverter e
transformar uma reacção natural ideologicamente construída
( ).
Este conceito de multitudes queer, as estratégias políticas nele intrincados,
bem como as práticas contra-sexuais e as novas formas de prazer-saber
reconfiguram profundamente a forma dos feminismos encararem, produzirem e
sentirem a pornografia que, sendo assim subvertida, supera o próprio binarismo
antipornografia/pró-pornografia. Não se trata, então, de regular e censurar a
pornografia, uma vez que esta é espaço de subversão, nem de fazer a apologia da
pornografia tradicional. Trata-se, antes, de reapropriar o dispositivo
pornográfico, transformando-o num espaço de subversão, contra-biopolítica e
reconfiguração das identidades sexuais e de género, através da representação de
práticas sexuais, prazeres, afectos e «identidades subalternas» (transgender12)
e em que a sexualidade é difusa, não se reduzindo, a geografia corporal, aos
genitais (transformados, através da insistente filmagem de penetração e sexo
oral, em centros de prazer exclusivos). Assim, as representações pornográficas
alternativas transformam-se, sobretudo, em exercícios de contra-biopolítica,
como é exemplo, para Preciado (2002: 44-45), a performance «Ânus Solar» de Ron
Athey, em que o artista, depois de tatuar, em torno do seu ânus, um sol negro,
injecta um líquido que deforma o seu pénis e testículos13. Estas representações
das «subalternidades», re-significam a pornografia dando lugar à pós-
pornografia.
Um feminismo queer?
A reconfiguração, re-significação e re-citação das sexualidades, a des-
ontologização dos sujeitos, as multitudes queer colocam em questão o feminismo,
uma vez que abalam o seu sujeito político e a validade da categoria «género».
No entanto, e como afirma Preciado, as multitudes queer não querem actuar sem o
feminismo nem são pós-feministas, por não se fazerem fora da crítica ao sistema
de género. As multitudes queer são, antes, resultado da confrontação reflexiva
do próprio feminismo «com as diferenças que este silenciava para favorecer um
sujeito político «mulher» hegemónico e heterocentrado», e a sua consequente
renovação.
Os projectos das multitudes queer confrontam os feminismos com a possibilidade
destes reforçarem as lógicas opressivas, quando o propósito seria combatê-las.
Ao basearem as suas políticas em identidades que foram naturalizadas pelas
tecnologias sexuais, os feminismos acabam por ser cúmplices dessas mesmas
tecnologias. É, assim, exigido aos feminismos que repensem os seus discursos e
práticas discursivas, a fim de não sublinharem, mais de que questionarem, os
mecanismos de exclusão.
O desafio que as abordagens queer, onde Preciado se inclui, colocam aos
feminismos é o de abandonar a identidade natural (homem/mulher) ou definições
baseadas nas práticas (heterossexuais/homossexuais) para passar a basear-se e a
actuar com «uma multiplicidade de corpos que se erguem contra os regímenes que
os constroem como normais ou anormais» (2004). As abordagens queer incitam
os feminismos a reclamar a música punk ' essa música muitas vezes descrita como
«barulho e berros», esse ruído que ameaça o sistema melodioso e, como tal, há
que silenciar, tal como os corpos, prazeres e afectos que não se incluem na
(hetero)norma; incentivam, igualmente, à perspectivação dos filmes
pornográficos e de terror, do gótico, dos ciborgues e da performance no espaço
público, como plataformas artísticas e políticas de criação de um futuro comum.
As abordagens queer desafiam os feminismos a reinventarem-se e a imaginarem um
novo activismo que tenha em conta o impacto das novas tecnologias na construção
das subjectividades, bem como desafiam à visão da sujeição dos corpos não se
fazendo (apenas) a partir do exterior, mas a partir do próprio corpo e no
corpo; desafiam à visão da tecnopolítica como assumindo a forma do corpo como
uma incorporação (Preciado, 2008: 66-67). As perspectivas queer lançam bases
para um activismo atento e baseado na micropolítica14 das células, que procura
pontos de fuga ao controlo estatal dos fluxos (hormonas, esperma, sangue, etc.)
e dos códigos (imagens, nomes, instituições), bem como às formas de escapar à
privatização e mercantilização, por parte das multinacionais médicas e
farmacêuticas, das tecnologias de produção e modificação do género e do sexo
(Preciado, 2004). Num imaginário queer, o projecto feminista não passa tanto
pela libertação das mulheres e a sua igualdade legal, mas antes, e como afirma
Preciado (2007), pelo «desmantelar dos dispositivos políticos que produzem as
diferenças de classe, de raça, de género e de sexualidade». A reinvenção dos
feminismos passa, assim, pela mudança epistemológica «desde o ponto de vista
humanista dos sujeitos individuais como criadores de si próprios e próprias
para uma ( ) análise do código homo/hetero [género] e a sua transversal
estruturação dos modos de pensamento, conhecimento» (Seidman, 1994: 130).
Num feminismo que se pretende e imagina queer, o conceito naturalizado de
diferença sexual é abandonado, em detrimento da denúncia, transgressão e
subversão das tecnologias que criam essa diferença e espartilham práticas,
discursos, prazeres e desejos «Outros». Neste feminismo queerizado, prevalece a
anarquia dos afectos15, em que no princípio era: o sem-princípio.