Metropolitan Lovers - the homossexuality of cities
Abraham, Julie (2009), Metropolitan Lovers – the homossexuality of cities,
Minneapolis, University of Minnesota Press, 357 pp.
Paulo Jorge Vieira
Associação não te prives – Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais
A inter-relação – ou como coloca se neste livro –, a equação entre cidade e
homossexualidades é um elemento fundamental e fundacional do entendimento
contemporâneo das sexualidades. Esta asserção da relação entre cidade e
homossexualidades, parecendo tão óbvia, torna-se complexa e complexificada
nesta obra, o que a torna num dos elementos mais interessantes da mesma: uma
contínua crítica a soluções fáceis desta equação que, na maioria dos casos, se
limita a salientar o espaço urbano como espaço de segurança para a população
LGBT, reforçando a autora de Metropolitan Lovers uma correlação bem mais
intrincada das suas partes. Referenciar a cidade como elemento central
constitutivo – juntamente com a mobilidade – das subjectividades LGBT parece
hoje um facto essencial e configura-se como um dado central de um corpo
alargado de investigação, vinda de diferentes campos de saber das ciências
sociais e humanas. Essencialmente ao longo dos últimos 20 anos, inúmeros
estudos de diferentes saberes e campos disciplinares têm vindo a ser publicados
sobre esta temática, sendo favorecida uma análise de raiz histórica, geográfica
ou antropológica centrada quase sempre em fontes e estudos dedicados à
população gay.
A autora desta obra, Julie Abraham, é professora de literatura (especializada
em literatura francesa) e de estudos LGBT no Sarah Lawrence College tendo já
publicada textos variados sobre literatura lésbica e a escrita (auto)
biográfica, sendo ainda docente nessa área. Em relação a outros textos sobre o
tema, esta obra destaca-se, inicialmente, pelo modo como parte de exemplos que
nos dão uma imagem dessa correlação entre cidade e homossexualidades centrados
em experiências lésbicas. A autora utiliza ainda, como fontes, inúmeros textos
escritores por mulheres em torno deste debate. Na realidade, ao contrário de
muitas outras obras sobre a temática, muito centradas na experiência gay do
espaço urbano, a autora coloca nas vozes e nas experiências das mulheres o
centro da sua análise de cariz feminista.
Os diferentes capítulos da obra em análise vão-se recentrando em diferentes
momentos históricos e em diversas cidades (Manchester, Londres, Paris, Los
Angeles, Chicago, Nova Iorque, entre muitas outra referências). A construção da
obra é pois centrada sempre em leituras documentais muito diversificadas, desde
a obra literária, a autobiografia, o ensaio e o texto jornalístico.
A autora, Julie Abraham, fornece-nos, pois, um conjunto de pistas e de leituras
diversificadas que realçam o carácter urbano das homossexualidades, bem como o
carácter muito particular das homossexualidades na construção de entendimento e
de conhecimentos da história e da investigação urbanas. Neste quadro de
análise, a autora faz uma viagem de quase duas centenas de anos desta equação a
partir de uma leitura académica vinda dos estudos culturais e onde a obra
literária é entrecruzada com estudos provenientes da sexologia do final do
século XIX e, essencialmente, estudos urbanos, desde os primórdios da escola de
Chicago até ao trabalho polémico, nas palavras da autora, de Richard Florida.
A legibilidade (legibility) configura-se ao longo da obra como o debate teórico
central. Partindo da dificuldade de reconhecimento dos LGBT – a capacidade de
serem legíveis no espaço urbano – a autora demonstra-nos como a
homossexualidade, a partir da sua construção moderna pela ciência e pelo
direito (em especial o processo legal de que foi vítima Óscar Wilde), se vai
tornando legível no espaço urbano. Deste modo, a capacidade da questão LGBT se
ir colocando legível – visível, se quisermos – na cidade e a capacidade de os
LGBT se “lerem” – se reconhecerem – no espaço da cidade, constituindo espaços e
sociabilidades “próprias” ao longo da história do século XIX e XX, são
elementos centrais da teorização de Julie Abraham. Mas a autora vai mais além
ao potenciar uma análise da cidade, em que a homossexualidade se torna um
elemento central da legibilidade do espaço urbano. Assim, nessa equação não é
apenas a homossexualidade que é lida – legível – a partir do espaço da cidade,
é também o urbano que passar a ser passível de ser lido, entendido, pela
história da homossexualidade neste mesmo espaço, potenciando uma decomposição
dos factores desta mesma equação.
A autora faz, assim, um percurso que passa por uma leitura da cidade do vício
oitocentista de Balzac e Zola centrada na figura da prostituta e da mulher
lésbica que potencia, fortemente, o cruzamento com a inúmera literatura
(jornalística e ensaística da época) sobre vício e virtude na cidade industrial
nascente. É nessa mesma cidade fortemente industrializada que o caso Óscar
Wilde se coloca como um elemento fundamental na construção dos sujeitos
homossexuais, por potenciar, exactamente, um primeiro relance sobre a
legibilidade da relação entre cidade e homossexualidade. Legibilidade esta que
a autora reforça com a análise de um conjunto de obras da sexologia cientifica
do final de século.
Na segunda parte do livro – intitulada «Reclamando a Residência» – a autora
avança um pouco no tempo centrando-se no espaço temporal entre o inicio do
século XX e a segunda Guerra Mundial e reanalisando os debates tidos na Paris
proustiana e no quadro da sexologia nascente. Nos Capítulos IV e V introduz, na
complexidade da sua investigação, a obra de diferentes gerações de sociólogos
da Escola de Chicago, da obra de intervenientes sociais como Jane Addams e de
da obra literária de Radclyffe Hall, reforçando no seu método de análise a
questão lésbica e o papel das vozes das mulheres como promotoras de reflexão e
intervenção no debate sobre cidade e urbanismo.
A terceira parte desta obra dedica-se à segunda metade do século XX, reforçando
de novo – essencialmente no Capítulo VI – a importância de potenciar outras
vozes no discurso sobre a cidade e a sexualidade e centrando a sua análise na
obra da jornalista e crítica das muitas intervenções urbanísticas da nova
Iorque dos anos 50, Jane Jacobs, e do escritor gay negro, James Baldwin. Deste
modo, a autora potencia a utilização de outras vozes menos hegemónicas neste
debate e reforça uma leitura que coloca, não só a questão do (hetero)- sexismo
e da homofobia no espaço urbano, mas também questões relacionadas com o racismo
e o classismo.
Os dois últimos capítulos diferenciam-se um pouco ao modelo de análise
anteriormente usado. Assim, estes capítulos dedicam-se a uma análise da
política LGBT e urbana pós Stonewall até à contemporaneidade, não se centrando
num número restrito de obras literárias e ensaísticas, mas realizando um
percurso por uma miríade de informação existente sobre o tema.
No epílogo, que a autora significativamente intitula «Queer na Grande Cidade»,
são debatidas as polémicas contemporâneas em torno da ligação entre cidade e as
homossexualidades, com particular destaque para as dissensões teóricas e
políticas dentro do movimento LGBT – entre perspectivas mais assimilacionistas
e transformadoras –, bem como um olhar fortemente crítico às propostas teóricas
de Richard Florida e à sua «classe criativa». De referir, na obra de Florida, a
existência de grupos sociais criativos como elementos potenciadores do
desenvolvimento das metrópoles contemporâneas, onde a presença de visíveis
comunidades LGBT é vista como um “sinal” da capacidade de tolerância de um
espaço urbano e não como elemento real do espaço urbano.
Para além do carácter de legibilidade, central neste livro, deveremos destacar,
ainda, o modo como o entrecruzar da cidade com as homossexualidades é
complexificado, ultrapassando leituras simplistas e mais hegemónicas, e
descerra um território enorme de investigação por efectuar nos estudos queer
que pode favorecer uma ciência transformadora das sociedades contemporâneas.