Mulheres Artistas na Idade da Razão. Arte e Crítica na Década de 1960 em
Portugal
A expansão das mulheres no mundo artístico constitui um dos factores mais
interessantes da história da arte europeia e americana da segunda metade do
século XX, fenómeno ao qual Portugal não ficou alheio. Essa expansão acompanha
o movimento geral de inserção das mulheres no mundo do trabalho e a emergência
de uma nova geração em ruptura com a ideia da mulher essencialmente procriadora
e dona de casa. Não se trata apenas de um aumento do número de mulheres que
adquirem visibilidade e credibilidade no mundo da arte. Constatamos igualmente
uma alteração ao nível da postura dessas mulheres, quebrando os limites e os
clichés tradicionalmente associados a uma maneira específica de fazer arte '
arte feminina. Esta mudança de atitude conduzirá a um inevitável abandono do
modo paternalista como a crítica e o público acolhiam tradicionalmente o
contributo artístico das mulheres.
Os estudos de género no âmbito das artes visuais têm tido algum desenvolvimento
em Portugal a partir dos anos de 1990. Começa-se a olhar para a posição das
mulheres artistas na história da arte portuguesa numa perspectiva atenta à
diferença, ao preconceito e à desigualdade1. De extrema importância, e suporte
desta atitude revisionista, tem sido o esforço de divulgação do pensamento
feminista contemporâneo levado a cabo na última década2. No entanto, apesar de
todo este novo interesse pela problemática feminista, o quadro de referência
científica neste domínio revela-se ainda algo escasso, em particular, no que se
refere ao período focado, os anos de 1920/1930 e sobretudo os anos de 1960. O
reconhecimento desta lacuna, assim como da importância que julgamos devida ao
olhar da crítica sobre a obra das mulheres artistas, determinaram a escolha do
tema que aqui se discute. Optou-se, assim, por privilegiar uma abordagem
simultaneamente empírica e ideológica. Empírica, porque se analisa o tema a
partir dos testemunhos da crítica da época, uma crítica feita quase
exclusivamente por homens; e ideológica, porque se procura detectar a forma
como as atitudes patriarcais condicionam as representações e concepções sobre
as mulheres artistas e a sua obra, de acordo com aquilo que Jane Kaplan (1985)
designa por «crítica feminista»
3
.
Definição de um género: arte feminina
Na segunda metade do século XIX, com base em critérios essencialmente
naturalistas, como a escolha do tema, a crítica procurou isolar uma categoria
artística: arte feminina ou, simplesmente, pintura feminina, visto que a
escultura, talvez pelo maior esforço físico que exigia, interessava menos as
mulheres. Se para os homens se crêem adequadas as cenas de exterior, sobretudo
a paisagem, para as mulheres, dada a sua vocação fundamentalmente doméstica,
consideram-se apropriadas as cenas de interior, certa pintura de género e,
acima de tudo, a natureza-morta. O Modernismo vem introduzir algum acréscimo de
liberdade, não tanto na deliberação dos temas propícios a mulheres pintoras,
mas sobretudo no que se refere à expressão, aos sentimentos postos na
representação do real. À mulher artista são atribuídos alguns desses
sentimentos e vetados outros, mais de acordo com aquilo que se consideravam ser
características psicológicas masculinas.
Durante a primeira metade do século XX, a crítica portuguesa aceitou sem
discussão que a mulher pintora tinha uma forma específica, feminina, de olhar e
de representar o mundo. A sua obra era frequentemente caracterizada como
mimosa, graciosa, delicada, sentimental ou pulsante de sensibilidade
(feminina). O seu universo criativo era muitas vezes tido como fantasioso,
encantador, lírico ou mesmo feérico. O retrato, sobretudo o retrato de crianças
e o retrato de família, figurava no topo da lista dos géneros mais favoráveis.
O trabalho artístico das mulheres expositoras em salões colectivos era, salvo
raras excepções, considerado amador por oposição a profissional. Os pequenos
formatos e as técnicas secundárias frequentemente utilizadas, como o desenho, o
pastel, a aguarela ou a gravura, ajudavam a corroborar esta ideia.
Milly Possoz (1888-1967) e Sarah Affonso (1899-1983) são as artistas mais em
destaque nos anos de 1920 e 1930. Conseguindo elevar-se acima do grupo das
chamadas meninas prendadas, atingiram um nível de notoriedade que as colocava
na categoria de artistas profissionais. Porém, se analisarmos as considerações
que a crítica portuguesa teceu à sua obra exposta, detectamos todo um corpo de
ideias que tende a tipificar e a catalogar a sua obra num grupo de certo modo à
parte. O primitivismo (de teor medieval ou cristão), o lirismo e uma certa
ingenuidade são frequentemente eleitos pela crítica como características
associadas a estas pintoras. O gosto popular e a procura de raízes genuinamente
portuguesas são também assinalados e valorizados pela crítica, assim como o
carácter solar, paradisíaco e radioso das suas obras, em oposição ao carácter
por vezes soturno, dramático e perturbante da pintura de certos artistas homens
4
.
Vejamos alguns exemplos. Num artigo sobre as xilogravuras de Milly Possoz, o
crítico Mário Vaz mostra-se adepto deste meio de expressão caracterizado pela
ingenuidade, neste caso, «profundamente cristã».
Na sua pintura, em que se sente alguma coisa de muito infantil e
primitivo, como que havia já a promessa ou a previsão destas
admiráveis gravuras, absolutamente sem par, entre nós. Ela trouxe
para a nova modalidade do seu engenho, com o seu modernismo, todo
pessoal, a mesma concepção ingénua e graciosa do mundo visível, a
mesma claridade de visão, simultaneamente expressa em traço e em cor,
que já conhecemos dos seus quadros e dos seus desenhos (Vaz, 1924:
116-117).
Relativamente a Sarah Affonso, a crítica é ainda mais profícua em apreciações.
A artista expõe em 1929, juntamente com José Tagarro (1901-1931). A
feminilidade da sua pintura é realçada pelo crítico Carlos Parreira (1890-1950)
que nela vê, igualmente, um «primitivismo finamente neogótico» e um «arcaísmo
suave de mistério medievo» (Parreira, 1929: 20-21). No mesmo sentido, Artur
Portela (1901-1959) considera que a sua pintura integra num primitivismo de
forma as virtudes da sua alma feminina e evoca os trípticos cristãos da
primeira renascença (Portela, 1929: 4). A comparação que a crítica faz dos dois
artistas expositores é igualmente eloquente. Manuel Mendes (1906-1969) valoriza
o talento do artista, sobretudo como desenhador, e distingue nele «uma forma
sintética e enérgica», com a qual exprime a sua «paixão pela verdade». Em Sarah
Affonso admira a «infantilidade e a malícia», a «ingenuidade mimosa», bem como
alguma rusticidade. A oposição contrastante que Manuel Mendes estabelece entre
a obra dos dois artistas ' a de Sarah, de um «artifício mágico», a de Tagarro,
«humana, presente» (Mendes, 1929: 365) ' é mais uma forma de enunciar uma
oposição corrente na época entre uma arte imaginativa, feminina (muitas vezes
associada à arte cristã ou à arte popular) e uma arte humana, realista e
máscula, de pendor classicizante.
No I Salão dos Independentes, em 1930, a pintura «feminil» e «ternurenta» de
Sarah Affonso, pintura de «gosto de quadra popular», como referiu Vitorino
Nemésio (1901-1978) (Nemésio, 1930: 246-249), obteve, pela sua busca de raízes
genuinamente portuguesas, a simpatia de quase todos os críticos. Dela, José
Régio (1901-1969) diria: «toda a sua pintura diz saudades da infância; ou
antes: persistência de um estado infantil numa consciência já suficientemente
crescidapara aproveitar artisticamente essa infantilidade». E estabelecia o
contraste entre a sua «visão paradisíaca da vida» e a pintura perturbante de
Eloy: «Aos tons corruptos de Mário Eloy, tão sugestivos por inquietantes,
prefere Sarah Affonso as cores frescas, definidas, pacificadoras» (Régio, 1930:
4-8).
Sarah Affonso casou, em 1933, com Almada Negreiros. Apesar do incentivo do
marido e da crítica, apesar de em 1944 lhe ter sido atribuído o Prémio Souza-
Cardozo, acaba por desistir da pintura alegando a necessidade de se dedicar à
família, de apoiar o marido, a falta de condições logísticas, a insegurança
profissional, por nunca ter tido nenhuma encomenda oficial, e a dificuldade em
vender os seus quadros (Ferreira, 2006). O casamento, o nascimento dos filhos,
assim como a inevitável comparação com a obra do marido, ícone do Modernismo
português, ter-lhe-ão refreado as ambições profissionais. Por outro lado, não
devemos esquecer que os anos de 1930 são anos de implementação da ditadura em
Portugal, anos de «regresso à ordem», como se vinha dizendo desde a década
anterior, nos quais as mulheres são também chamadas a submeter-se às novas
directrizes que as procuravam manter no seu papel tradicional de procriadoras e
donas de casa, contra certas liberdades que alguma ideologia republicana tinha
tentado, sem grande sucesso ou vontade, implementar
5
. Salazar vem reforçar a ideia tradicional da distribuição de funções e da
importância da mulher no lar: «Deixemos o homem lutar com a vida no exterior,
na rua E a mulher a defendê-la, a trazê-la nos seus braços, no interior da
casa » (Ferro, 1932: 133). O sustento deveria, obviamente, vir do homem,
pensava Salazar, e nunca do «trabalho da mulher casada e geralmente até da
mulher solteira», pois que «nunca houve nenhuma boa dona de casa que não
tivesse muito que fazer» (Salazar, 1966: 193).
Neste ambiente de desincentivo à profissionalização das mulheres não é de
estranhar que Sarah Affonso não tivesse tido nenhuma encomenda oficial. Dado
que na época o sistema vigente se baseava no apoio estatal e na encomenda
oficial, com um mercado da arte praticamente inexistente, era difícil para as
mulheres alcançarem independência e incentivos financeiros suficientes para a
prossecução do seu trabalho artístico. Uma das alterações que os anos de 1960
vêm trazer nas condições de afirmação dos artistas será precisamente o
aparecimento, ainda que tímido, de um sistema de mercado baseado no galerista e
no crítico, que permitirá uma maior diversificação do gosto e das apostas
comerciais.
Uma mulher entre iguais: Vieira da Silva
As artistas dos anos de 1960 beneficiaram de uma ruptura com os cânones
vigentes e de uma verdadeira revolução nas condições sociais e nas
mentalidades. No que diz respeito ao campo específico das artes, contaram
igualmente com um factor interno que em muito facilitou a aceitação e mudança
na atitude da crítica e do público em geral face às mulheres artistas. Refiro-
me a Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e ao forte impacto que no meio
artístico português teve a circunstância de uma pintora (de origem portuguesa)
ter atingido níveis tão elevados de notoriedade internacional. Nunca um pintor
português homem tinha tido semelhante reconhecimento da parte da crítica e das
instituições internacionais.
Embora vivendo em França desde 1928, Vieira da Silva tornou-se conhecida da
crítica portuguesa a partir do início da década de 1930. O seu afastamento do
meio cultural português, fortemente condicionado pelas questões do nacionalismo
artístico, a sua proximidade dos principais centros artísticos europeus, a sua
estatura e forte personalidade artística, permitir-lhe-ão ultrapassar os
preceitos dicotómicos de feminilidade/masculinidade pictórica que enformavam a
recepção (e a produção) da pintura portuguesa feita por mulheres. A pintura de
Vieira da Silva não se enquadrava no estereótipo feminino e a crítica, tirando
as honrosas excepções de João Gaspar Simões e António Pedro, teria muita
dificuldade na sua abordagem. Caracterizada já nos anos de 1930 muitas vezes
com atributos ditos masculinos, tais como os da reflexão, da abstracção e do
geometrismo, a sua obra colocava algumas dificuldades de contextualização
cultural.
O crescente reconhecimento internacional da obra de Vieira da Silva é um factor
a considerar na mudança das condições de recepção das obras de arte feitas por
mulheres nos anos de 1960. Em 1962, recebe o Grande Prémio da Bienal de S.
Paulo e, em 1966, é a primeira mulher a receber o Grand Prix National des Arts
(França). Esse reconhecimento funcionou, para quem ainda tivesse dúvidas (e
muitas seriam as pessoas que as teriam e continuariam, apesar de tudo, a ter ),
como um sinal de que as mulheres podiam competir com os homens no âmbito das
artes. Um dos críticos mais influentes na década, José-Augusto França (1922-),
em resposta a um inquérito do Diário de Lisboa sobre os dez quadros do século
XX a salvar em 1960 em caso de hipotético cataclismo universal, chega mesmo a
incluir «A entrada do castelo» (1950) de Vieira da Silva, entre as obras de
Picasso, Duchamp, Klee, Kandinsky, Mondrian, Max Ernst, Vedova, Tapiès e
Braque, todos eles homens (França, 1960). Por outro lado, a abordagem que a
crítica portuguesa dos anos de 1960 faz da pintura de Vieira da Silva tem por
base características tradicionalmente associadas aos artistas homens: reflexão,
consciência, angústia e gravidade. Kafka e Borges são nomes frequentemente
citados como os seus parentes literários. O carácter trágico, atormentado e
vertiginoso da sua pintura está nos antípodas da pintura amável e delicada das
pintoras portuguesas das décadas anteriores.
Se o reconhecimento internacional de Vieira da Silva é um dado irrefutável nos
anos de 1960, nem tudo foi fácil no seu percurso de afirmação. Em entrevista ao
Diário Popular, respondendo a uma pergunta sobre se era difícil ser uma mulher
pintora, conta que os primeiros vendedores dos seus quadros não revelavam aos
potenciais clientes que a artista era uma mulher e que uma vez teria havido um
comprador que devolveu um quadro seu quando veio a saber a verdade. «Ao
princípio [as mulheres] são tomadas menos a sério», afirma (Vieira da Silva,
1969), querendo com isto mostrar como as mulheres tinham uma dificuldade
acrescida em serem aceites em regime de plena equidade no mundo da arte.
A internacionalização de Vieira da Silva será apontada como sinal da falência
do nacionalismo artístico e terá funcionado como incentivo para muitos jovens
artistas, homens e mulheres, quebrarem as barreiras que desde longa data este
tinha imposto como critério de reconhecimento público. São várias as mulheres
artistas que, em tentativa de sincronização com a pintura contemporânea e
aproveitando a política de bolsas da Fundação Gulbenkian, procuraram no
estrangeiro um novo enquadramento e um alargamento dos seus horizontes
artísticos. A recusa de uma arte condicionada pela perspectiva nacionalista
deita por terra a ideia da mulher artista como reinventora das tradições
populares e resgatadora de uma portugalidade mítica qualquer, como fora prática
corrente durante os anos áureos do Estado Novo. Embora alguns sectores da
crítica continuem a procurar na obra de Vieira da Silva e das artistas
emergentes nos anos de 1960 indícios de nacionalismo estético, a crítica mais
esclarecida abandona esta postura e aposta na valorização dos artistas baseada
na sua capacidade de internacionalização. As próprias artistas recusam uma
colagem ou uma redução do seu trabalho a parâmetros nacionalistas. Em
entrevista ao Século Ilustrado, quando questionada sobre se haveria algum
«sinal de portuguesismo na pintura nacional contemporânea», Paula Rego (1935-
) responde: «Penso que não». E, da mesma forma que não detecta um «movimento
pictórico inglês» em Inglaterra, também não o detecta em Portugal (Paula Rego,
1966). No mesmo sentido, logo em 1963, Lourdes de Castro (1930-) afirma: «Não
há uma pintura portuguesa mas apenas pintores portugueses integrados num
movimento geral da pintura» (Castro e Bertholo, 1963).
Resistências: a crítica conservadora
Os obstáculos colocados às mulheres artistas prendiam-se com preconceitos de
longa data, como vimos, que persistiriam ainda nos anos de 1960, não só em
alguns sectores menos progressistas da crítica e da sociedade portuguesa em
geral, como em algumas mulheres artistas de segunda linha. Nas críticas de
Mário de Oliveira (1916-) no Diário de Notícias, surgem por vezes pontuações
paternalistas e discriminatórias do mesmo género das que encontramos na crítica
dos anos de 1930, nomeadamente quando se refere à pintura «naïve» da espanhola
Maria Pepa Estrada (1915-) com os seus «latidos sensíveis», ao lirismo,
ternura, humor e amor com que pinta o mundo da infância e o mundo de mulher por
si vivido, com o seu quotidiano de festas, escolas, teatro e casa (Oliveira,
1969). O crítico Alfredo Marques, do Diário Popular, também ensaia por vezes o
mesmo tipo de abordagem dicotómica, opondo um mundo feminino, entregue à
ligeireza, e um mundo masculino, esse, sim, aberto às verdadeiras inquietações
artísticas. Na pintora Maria Fernanda Amado reconhece algumas dessas
inquietações, em certa contradição com a sua condição feminina. A sua constante
busca de uma linguagem estética, as suas hesitações, aproximam-na, segundo o
crítico, de Braque ou de Van Gogh e por isso não estranha que «a ilustre
senhora, prendada com uma esmerada educação, se veja envolvida por esse
perturbador clima» (Marques, 1963). Desta forma, Alfredo Marques admite a
entrada de Maria Fernanda Amado no mundo da arte, salvaguardando, embora, a sua
honra enquanto mulher de um determinado estrato social. Já referindo-se a Wendy
Benka, jovem pintora inglesa expositora no Palácio Foz, também diagnostica e
procura resolver uma contradição fundamental entre o carácter abstracto da sua
pintura e o facto de ser mulher. O crítico sente necessidade de afirmar a não
incompatibilidade total dos dois termos: «Sem sair diminuída a sua
sensibilidade feminina, Wendy Benka domina pela expressão forte de uma pintura
que a coloca entre os valores do abstraccionismo» (Marques, 1962).
A «condição feminina» das artistas, o seu papel na sociedade é também uma
questão que aflora em alguns textos da época. Relativamente aos artistas
homens, não encontramos referência alguma à sua situação familiar, ao seu
estado civil. Pelo contrário, em relação às artistas mulheres, deparamos com a
necessidade de certos críticos de se lhes referir, procurando sempre sublinhar
elogiosamente a sua capacidade de não descurarem aquilo que entendem ser a sua
primordial «vocação de mulher» na sociedade.
Nos anos de 1960 assistimos a uma grande afluência de mulheres aos cursos de
Belas-Artes e de Letras. Se olharmos para o número de inscrições nesses cursos,
constatamos que são muito mais as mulheres do que os homens a frequentá-los e a
concluí-los. No entanto, é inegável que o número de mulheres artistas
reconhecidas pela crítica é muito menor que o de homens, o que nos evoca a
dificuldade de conciliação da vida familiar das mulheres com uma carreira,
facto que levaria a maior parte delas a desistir a meio ou a nem mesmo tentar a
via da profissionalização
6
. O caso de Helena Almeida (1934-) é, até certa altura, exemplar desta
situação, pelo menos formalmente. Termina o curso de pintura em 1955, casa e
tem logo dois filhos. Fica em casa quatro anos. Porém, o que se passa a seguir
já nada tem em comum com o modelo corrente, denotando a diferença e a
perseverança da artista. Depois desses quatro anos vai um ano para Paris como
bolseira, ficando o marido, também artista plástico, em Portugal com os filhos.
Quando as mulheres não querem desistir definitivamente de uma carreira
artística, ainda que eventualmente modesta, a conciliação da vida familiar com
o trabalho é feita, muitas vezes, através das escolhas temáticas. A
culpabilidade orienta-as muitas vezes para temas de compromisso tais como
retratos dos filhos ou da família. Exemplo paradigmático da forma como este
conflito pode ser ultrapassado, é-nos dado no modo como Maria Gabriela Leónidas
e o seu entrevistador comentam o trabalho por si exposto na galeria do Diário
de Notícias em 1967, que consiste fundamentalmente em retratos dos seus filhos.
Somos informados de que «a pintora deixara de o ser para o público, como tantas
vezes acontece, desde que se tornara dona de casa e mãe». Maria Gabriela
reconhece que muitas pintoras com «méritos firmados» abandonam, ao casar, a
pintura. Afirma ter procurado cumprir os deveres familiares o melhor que pôde,
sem deixar a sua actividade artística, apenas sacrificando o contacto com o
público, contacto esse que agora retoma. Em sua defesa e tentando invalidar
alguma falha que lhe pudesse ser imputada, a artista apresenta uma versão
harmonizadora dos factos.
Os filhos, que para outras artistas constituíram a razão do abandono
da pintura, foram precisamente para mim um elo de continuidade da
profissão e um meio de educação dos mesmos, e não dos menos válidos.
Sirva a outras mães o meu exemplo, consciente, mas simples e
humildemente dado, e já creio que valeu a pena apresentar em público
estes trabalhos (Leónidas, 1967).
Pretendendo encontrar o mesmo meio-termo conciliador entre o trabalho artístico
e a vocação familiar, e após elogiar, como vimos, a sensibilidade de Maria Pepa
Estrada, Mário de Oliveira não deixa de acrescentar, referindo-se-lhe: «Viveu a
vida. E, como Grande Senhora que é, cumpriu nobremente o seu destino de mulher.
Casou, teve filhos e ficou viúva» (Oliveira, 1969). No mesmo sentido, o
entrevistador de Paula Rego no Século Ilustrado (8 Jan. 1966) também não deixa
de sublinhar a sua qualidade de «artista, mulher e mãe». Podemos ainda citar o
exemplo extremo e até caricato de uma outra entrevista conduzida por Cristiano
Lima (1897-1971) à ceramista Manuela Madureira (1930-). Começa por afirmar que
a artista «entrou para a cerâmica como quem entra para um convento». É a
própria Manuela Madureira quem sustenta esta ideia romântica do trabalho
artístico como exercício de uma religião. As horas consecutivas em pé no seu
«feio cubículo» são, segundo afirma, «um dos evangelhos da [sua] religião da
cerâmica». Mas não fosse o leitor pensar que a artista descurava o seu papel de
mulher na sociedade, logo Cristiano Lima vem ajudá-la a repor o equilíbrio.
Toda a paixão que dedica à sua arte é contrabalançada com igual ímpeto dedicado
à vida familiar: «casada, com duas filhas, dona de casa fervorosa, quase
sacerdotisa do culto do lar» (Lima, 1969).
A ideia de que a mulher, por mais pensadora, artista ou escritora que fosse,
devia acima de tudo ser «essencialmente mulher», é uma ideia cara aos sectores
mais conservadores da sociedade portuguesa. O escritor de origem timorense,
Fernando Sylvan (1917-1993), considera que algumas escritoras portuguesas e
sobretudo estrangeiras se têm servido da literatura para as suas
reivindicações, ou seja, para «anular os últimos princípios que as mantêm
sujeitas ao homem». Ora, segundo o escritor, «nada seria mais justo e nada
deveria ser mais ajudado e enaltecido do que esses esforços se eles, em si,
fossem justos e naturais». Porém, considera ser um erro o homem «continuar a
consentir que a mulher lhe dispute o lugar», pois «o nivelamento ou equiparação
propostos são antinaturais», além de que «nada é mais belo do que a mulher
feminina, frágil e transcendente» (Sylvan, 1962).
Ao contrário do que acontece nesta crítica conservadora, na crítica mais
esclarecida dos anos de 1960, os atributos pictóricos tradicionalmente
atribuídos às mulheres serão pouco valorizados ou mesmo desvalorizados. O caso
de Maria Velez (1935-) é paradigmático desta mudança de atitude por parte da
crítica. No início da década, a sua pintura é saudada como uma promessa e um
certo teor feminino ainda é enaltecido. Para Fernando Pernes, um dos críticos
mais respeitáveis deste período, Maria Velez faz já parte, em 1964, da
«primeira fila dos pintores portugueses». Felicita-a pelo carácter «feminil»,
«íntimo e poético» das suas colagens, assim como pela sua «alegria puríssima,
lúdica e irónica» (Pernes, 1964). Porém, no final da década, Pernes distancia-
se desta «feminilidade» que passa a considerar ter resvalado num «certo
feminismo transparente, susceptível de se abrir em melancólicas nostalgias de
tempo evocado e perdido» e de se ter minimizado «num decorativismo artificioso»
(Pernes, 1969). Também José-Augusto França considera que Maria Velez se repete
e abusa de uma «habilidade de irremediável teor decorativo» (França, 1969). Não
há dúvida de que estes atributos femininos já não são apreciados pela crítica
esclarecida. Podemos até perguntar-nos se o seriam verdadeiramente nas décadas
anteriores. Essas características eram valorizadas apenas no contexto de uma
arte feita por mulheres, como uma categoria à parte, secundária. A grande
diferença que encontramos agora, é que a apreciação das obras feitas por
mulheres não se faz mais atendendo a critérios específicos (a afirmação da tal
feminilidade), mas sim a critérios mais universais, reflectindo isso uma muito
maior equidade de género.
Encontramos, no entanto, uma excepção no caso de Menez (1926-1995), cuja
sensibilidade, lirismo e intuição são apreciados por esta crítica esclarecida,
ainda respeitadora de uma pintura de teor abstracto e matérico que era o do
neo-impressionismo contemporâneo. Todo o carácter mais feminil inerente à sua
pintura é reconhecido e saudado porque firmado num contexto de recusa do
directamente figurativo. A crítica portuguesa da década de 1960, embora aceite
e defenda a Neo-Figuração e a pop art, não deixa de trazer ainda consigo muitos
preconceitos relativamente à figuração. Neste sentido, a feminilidade da
pintura de Menez é largamente compensada pela sua pertença a um universo
credível de aproximação à abstracção.
Mulheres artistas na idade da razão
A questão da abstracção e da figuração prende-se com uma outra mais vasta e
mais profunda de mudança de paradigma. Nos anos de 1960, assistimos à passagem
do «paradigma natural» para aquilo que poderíamos denominar «paradigma
cultural», ou seja, ao abandono da natureza como fundamento último da arte e à
emergência dos valores culturais como princípio gerador da actividade
artística. Anteriormente, a pintura era avaliada como o resultado de uma
observação (mais ou menos fiel, mais ou menos abstraída) da realidade, com
carácter essencialmente visual, e a aproximação às obras fazia-se atendendo
sobretudo às suas propriedades perceptivas, intrínsecas e materiais. As
querelas da abstracção ainda participam desta atenção ao estético, no sentido
do perceptivo e das questões inerentes à beleza ou à forma. Embora nos anos de
1960 a pintura continue por vezes a representar/figurar/apresentar parcelas do
real, não é já o grau de aproximação ou de afastamento desse real que conta na
sua apreciação, nem mesmo a carga expressiva individual investida pelo artista.
O mais importante na valorização das obras de arte deste período é a capacidade
inventiva e conceptual do artista, o carácter experimental do seu trabalho,
para além das questões culturais e da função comunicativa e social das obras.
Neste novo contexto, às mulheres artistas é dada uma oportunidade de se
libertarem de uma série de estereótipos ligados a uma forma tradicional
feminina de olhar o mundo, manifestando a sua capacidade crítica e conceptual,
por vezes mesmo teórica, aproximando-se, assim, de um universo mental tido como
essencialmente masculino. Como sinal destas suas novas competências, surge
frequentemente nas mulheres artistas uma postura mais distanciada, mais em
segundo grau, que dará origem ao humor e à ironia. A par e por vezes associada
a esta postura, surgem manifestações de erotismo, agressividade e fealdade,
atitudes entendidas também como masculinas. A afirmação do erotismo funciona
para muitas destas mulheres como uma forma de emancipação, de apropriação de um
domínio que estava tradicionalmente reservado aos homens e destinado sobretudo
ao seu deleite. Já na primeira metade do século, Emília dos Santos Braga (1867-
1949), discípula de Malhoa7, se especializara no nu feminino entendendo-o como
uma atitude de uma certa coragem e rebeldia. Repare-se que nem sequer se
tratavam de nus masculinos ou mistos. No entanto, uma mulher assumir deleite de
carácter erótico era, e continuará a ser para as artistas dos anos de 1960, uma
forma de superarem a posição de mero objecto do erotismo dos homens e por isso
um passo na sua emancipação. Na pintura de Paula Rego, na gravura de Alice
Jorge (1924-2008) e na escultura de Clara Semide (Menéres) (1943-) aflora o
elemento erótico. O trabalho de Helena Almeida a partir do final da década de
1960, embora não tenha um carácter directamente erótico, manifesta uma mesma
postura de negação da mulher como mero objecto da arte. O seu corpo, ao mesmo
tempo que aparece como objecto da obra, é também e sobretudo o sujeito da acção
que a desencadeia.
Em Paula Rego encontramos uma afirmação directa de erotismo. A sua pintura
manifesta, em meados dos anos de 1960, um carácter vincadamente subversivo no
panorama artístico nacional
8
. O erotismo será, juntamente com o humor e a violência, considerado pela
crítica como elemento importante na sua obra. Fernando Pernes fala de «formas
frenéticas de sensualidade» e de um «aflitivo erótico», ressaltando a «coragem»
da pintora (Pernes, 1966). Para Francisco Bronze (1932-), outro dos críticos
mais interessantes da época, os Comic's nos quais Paula Rego se inspirava
vinham abalar os conceitos burgueses de bom gosto. O «universo monstruoso», a
«raiva», o «terror», a «força» e a «truculência» da sua pintura eram únicos na
nossa arte. «Nunca, sequer em qualquer obra de surrealistas portugueses, a
pintura vivera semelhante aventura», afirmava o crítico (Bronze, 1967a).
Que a pintura das mulheres pudesse ser melhor que a de muitos homens, e até do
que a dos melhores entre eles, já ninguém tem medo de admitir publicamente, o
que não acontecia nas décadas anteriores, em parte também por falta de ambição
das próprias artistas. Fernando Pernes afirma-o sem qualquer embaraço. Entre
Conduto, Pomar e Sá Nogueira, todos expositores da recentemente inaugurada
Galeria de Arte Moderna da S.N.B.A., Paula Rego afigurou-se-lhe ser a mais
jovem e a melhor (Pernes, 1966).
Em entrevista posterior a John McEwen, Paula Rego recordará a satisfação que
lhe deu o sucesso da sua primeira exposição em Lisboa e o orgulho que o pai
sentiu dela. «Tive sempre a ansiedade de provar que não era inferior a um
rapaz. A família tinha desejado um rapaz» (McEwen, 1988). O facto de ser mulher
suscitou nela um sentido da injustiça e uma atitude crítica relativamente ao
exercício do poder. Num país com um regime autoritário e onde o papel das
mulheres se circunscreveria à procriação e à gestão da casa, Paula Rego
ressentiu-se do tipo de educação que lhe foi dado. «Fui reprimida pela minha
mãe», afirma (Rosengarten, 2004). Mais tarde encenará todo o medo sentido,
assim como todas as suas tentativas de superação.
O maior problema toda a minha vida tem sido a incapacidade de me
exprimir frontalmente ' dizer a verdade. Os adultos tinham sempre
razão: a menina ouve e não responde. Responder, contradizer, era a
morte, era cair de repente num vazio terrível. Esse medo nunca me há-
de deixar; vêm daí os disfarces infantis, os disfarces femininos.
Menina pequenina, menina bonita, mulher atraente. Daí a evasão de
contar histórias. Pintar para combater a injustiça (Rego, 1997).
A sátira servir-lhe-á como forma de se vingar do ambiente opressivo e
claustrofóbico que se vivia em Portugal e em relação ao qual a pintora pudera
criar distância a partir da sua estadia em Londres. «Salazar a vomitar a
Pátria» (1960) ou «Sempre às ordens de Sua Excelência» (1961) podem ser lidas
como obras políticas mas também como obras de cunho pessoal no sentido de um
repúdio do autoritarismo em geral. É o próprio marido da artista, Victor
Willing, que nos dá conta da «exasperação» que a pintora sente face aos grandes
gestos masculinos e à «vangloriação do macho»9 (Willing, 1997). Apesar de o
casal Willing/Rego ter mantido uma relação de entreajuda (Paula Rego não poupa
elogios ao marido, pintor e crítico, e ao apoio profissional que este sempre
lhe deu) é de referir uma certa rivalidade entre ambos. É o próprio filho do
casal, Nick Willing, que levanta a questão: «O Pai era sempre considerado como
um importante pintor. A Mãe era vítima de discriminação. Quando íamos a
aberturas de exposições perguntavam sempre à Mãe se ela ainda estava a retocar
aquela pintura. Há muito chauvinismo no mundo artístico» (McEwen, 1997). Não
sabemos se baseado em afirmações reais da pintora, Marco Livingstone considera
que a morte de Victor Willing em 1988, após doença prolongada, libertou Paula
Rego da «responsabilidade de olhar por ele como a libertou para florescer
enquanto artista sem medo de competir com o seu amado companheiro ou de o
eclipsar» (Livingstone, 2004). Não podemos esquecer que as mulheres, sobretudo
as mulheres da geração de Paula Rego, foram educadas para aceitar (e até
desejar) a superioridade profissional e intelectual dos maridos.
Encontramos ainda nos anos de 1960 outros modos de as mulheres artistas se
libertarem do estereótipo feminino. Em oposição à graciosidade e delicadeza
femininas, Aldina Costa (1939-) cria as «suas maquinarias feias, gritantes de
nojo» (Bronze, 1967b). Em oposição ao lirismo ingénuo, Ana Vieira (1940-
) comenta ironicamente «o mundo frívolo da mulher, com colagens de trapo»
(Bronze, 1966). Em oposição ao sentimentalismo, Maria Beatriz (1940-) trabalha
a gravura com «decisão forte, humoral, satírica e contundente» (Sousa, 1969),
afirmando uma «insólita agressividade» e elaborando com «particular sentido da
ironia personagens grotescas» (Maggio, 1965). Em oposição ao carácter solar e
luminoso da pintura de mulheres, os desenhos e colagens de Leonor Praça (1937-
1971) manifestam um carácter angustiado e enigmático. Em oposição à
simplicidade, transparência e espontaneidade femininas, aparecem propostas
artísticas reflectidas, lúcidas e imbuídas de teoria, um tipo de reflexão
intrínseco às próprias obras: é o caso da obra de Ana Hatherly (1929-), Lourdes
Castro e Helena Almeida.
A meio caminho entre a literatura e as artes visuais, Ana Hatherly dá-se a
conhecer na poesia, na teoria e no desenho. É o protótipo da artista de
vanguarda, consciente dos seus processos criativos, o exemplo da mulher
criadora e crítica. A sua índole reflexiva e lúcida, pouco usual no meio
artístico português, permite-lhe alcançar grande notoriedade
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. Menos directamente teórica ou crítica, mas apresentando igual capacidade
reflexiva, Lourdes de Castro disserta sobre a sua obra e justifica as suas
opções, nomeadamente um dos processos criativos que melhor a identifica, o
«contorno da sombra». Trata-se, segundo a artista, de algo «fantasmático,
fugitivo, ainda mais ausente» do que o simples contorno dos objectos. «O
contorno [da sombra] é o Menos que posso ter de alguma coisa, de alguém,
conservando as suas características», afirma (Castro, 1992). Em Helena Almeida,
o crítico Rui Mário Gonçalves (1934-) reconhece desde cedo o «carácter
intelectivo da arte» (Gonçalves, 1967). Por sua vez, Francisco Bronze salienta
no seu trabalho a «ironia crítica que tende a substantivar a construção do
quadro», a inteligência, o rigor, a procura de uma metalinguagem, o «esforço de
lógica», a «meditação sobre a linguagem plástica» (Bronze 1967b, 1968, 1969a,
1969b), tudo características pouco comuns na arte portuguesa em geral e ainda
menos na arte feita por mulheres. A questão da metalinguagem é levantada e
reconhecida pela própria artista: «Creio estar perto da verdade se disser que
pinto a pintura e desenho o desenho» (Helena Almeida, 1983).
A natureza reflexiva das obras destas artistas está também relacionada com a
recusa do sujeito romântico e da sacralização da arte, recusa que se torna
corrente nestes anos com a emergência do Estruturalismo. Para Helena Almeida,
Lourdes Castro ou Ana Hatherly o abandono do carácter confessional e
autobiográfico da arte prende-se com a afirmação mais ou menos consciente de
uma impessoalidade fundamental, decorrente do cunho conceptual e do
aprofundamento da linguagem artística nas suas obras. Em Helena Almeida trata-
se de uma indagação sobre os limites físicos da pintura e de um questionar a
sua bidimensionalidade. Em Lourdes Castro, o trabalho mecânico para recortar as
silhuetas, assim como a desmaterialização dos corpos reduzidos ao contorno das
suas sombras, afastam todo o cunho personalista e subjectivo (o traço de
escrita pessoal) do qual as mulheres artistas estariam tradicionalmente mais
próximas. No mesmo sentido, através do «estudo e aprofundamento da linguagem»,
Ana Hatherly procura evitar «os conteúdos românticos e emocionais» (Hatherly,
1967). Em Paula Rego a recusa do sujeito romântico, nada parece ter a ver com a
natureza conceptual da arte, mas apenas com a utilização de imagens do real
quotidiano (muitas vezes o quotidiano das mulheres) e com o carácter lúdico do
seu trabalho. A própria artista o afirma em 1984:
Uma vez definido o tema, não há qualquer premeditação ( ) acho que
isso é uma coisa boa porque traz mais surpresa para quem faz ( ). O
mais frequente é divertir-me com o que faço. É um pouco o contrário
da grande atitude trágica, do grande gesto, ou da grande obra, em
resumo, da visão do artista como herói, que é um mito romântico ( ).
É-se o artista da pessoa que se é (Bernardo P. de Almeida, 1988).
Conclusão
Podemos considerar os anos de 1960 como uma importante plataforma de afirmação
das mulheres no mundo da arte. O abandono por parte da crítica mais esclarecida
dos preconceitos de género, por um lado, e uma atitude mais ambiciosa por parte
de algumas mulheres, por outro, conduziram a uma maior equidade entre artistas.
As obras criadas por mulheres são agora abordadas pela crítica à luz dos mesmos
critérios de avaliação e análise empregues no tratamento das obras criadas por
homens, ou seja, sem paternalismos, nem atitudes discriminatórias. Um número
crescente de mulheres artistas aposta na sua profissionalização e
internacionalização, beneficiando para tal da política de bolsas no estrangeiro
implementada pela Fundação Gulbenkian.
Se tivéssemos que classificar a produção artística das mulheres nos anos de
1960, diríamos: nem «arte feminina», nem «arte feminista». Ela deixa de
pertencer a uma categoria à parte ' «arte feminina» ', mas também ainda não se
afirma como «arte feminista», no sentido de uma arte que encarna
conscientemente aspectos da agenda política feminista. Teremos que esperar
pelas décadas seguintes para que este tipo de manifestação se torne evidente na
arte portuguesa. Os anos de 1960 são, portanto, anos de charneira, anos em que
tanto as mulheres artistas como a crítica pareciam acreditar numa certa
indiferenciação entre os sexos ou, para parafrasearmos Elaine Showalter, em que
«o género perderia o seu poder» e as obras seriam assexuadas (Showalter, 2002:
74).
Entre a recusa do carácter confessional e sentimental da arte, tido como uma
das formas tradicionais das mulheres fazerem arte, e a recusa da
grandiloquência, entendida muitas vezes como modo masculino de expressão, as
mulheres portuguesas encontraram na década de 1960 novos caminhos, quebrando os
preconceitos de género e afirmando-se nos domínios do conceptual, do humor, da
ironia, da sátira, da crueldade, da fealdade e da inquietação criadora.