Introdução: Género e Migrações
Introdução: Género e Migrações
Sofia Neves*1 e Joana Miranda*2
*1Instituto Superior da Maia / *2CEMRI ' Universidade Aberta
Este dossier temático, que em boa hora a Associação Portuguesa de Estudos sobre
as Mulheres (APEM) aceitou connosco organizar, tem como objetivo central
congregar leituras teóricas e evidências empíricas que sustentem a
indispensabilidade de se analisar as migrações a partir de uma ótica
genderizada.
Muito embora pareça ser hoje incontestável a ideia de que as migrações devam
ser estudadas tendo em consideração as especificidades das pertenças
identitárias de quem as protagoniza, nem sempre as investigações neste domínio
problematizam as múltiplas dimensões que o fenómeno comporta em si mesmo.
A crescente genderização das migrações (Yamanaka & Piper, 2006), pese o
facto de ter impulsionado o princípio de uma mudança de paradigma nos estudos
migratórios (Morokvasic, 1984), não redundou ainda na adoção clara de um
enfoque de género (Miranda, 2009) ou intersecional na compreensão das migrações
femininas (e das masculinas) (Crenshaw, 1991; Neves, 2010).
Com efeito, a grande maioria dos estudos levados a cabo, quer nacional, quer
internacionalmente, tende, ainda, a desvalorizar ou a minorar a influência das
pertenças de género, assim como de outras pertenças identitárias (e.g. etnia,
orientação sexual, nacionalidade) nos processos e nas dinâmicas migratórias.
Como resultado, são produzidas generalizações abusivas, as quais concorrem para
a construção de considerações enviesadas sobre a realidade das mulheres e dos
homens migrantes.
Na análise da problemática migratória, algumas questões terão de ser
forçosamente equacionadas: Quando falamos genericamente de migrações, de que
migrações falamos? Serão as migrações um fenómeno homogéneo, cuja
caracterização se possa fazer por via de uma linguagem universalista? E quando
nos reportamos às migrações femininas, pela voz de que mulheres migrantes
falamos? Serão as mulheres migrantes uma categoria una e indecomponível ou uma
realidade múltipla, de grande complexidade e em permanente transformação?
As teorias migratórias tradicionais não têm tido em conta as especificidades
das realidades migratórias das mulheres, mas estamos hoje conscientes de que a
complexidade dos processos e das dinâmicas migratórias não é, de todo,
compatível com um discurso simplista e abstrato sobre as migrações.
Os textos apresentados neste dossier demonstram isso mesmo: não só que as
migrações se revestem de uma densa complexidade, como são um fenómeno diverso,
com matizes e nuances muito próprias. Consoante os contextos e as
protagonistas, se em alguns casos as migrações ocasionam vivências de violência
e de discriminação, em outros proporcionam experiências empoderadoras, de
autonomia, enriquecimento pessoal e transformação das envolvidas e dos
contextos sociais em que as mesmas estão inseridas.
Experiências que poderiam, à partida, ser perspetivadas de uma forma negativa
podem vir a revelar-se transformadoras e geradoras de mudança individual (como
é o caso das gravidezes na adolescência abordadas no texto de Calesso,
Mitjavilla, Pizzinato e Barcinski) bem como de mudança social (como é o caso do
asilo político de mulheres, focado no texto de Sophie Lhenry).
Os sete textos que compõem este dossier, da autoria de investigadoras e
investigadores de diferentes nacionalidades, formações académicas, com
perpetivas teóricas e abordagens metodológicas que se cruzam e entrelaçam,
contribuem para a compreensão do caráter polissémico da temática deste dossier.
Em Maternidad adolescente en immigrantes en el contexto catalán, Calesso-
Moreira, Mitjavila-García, Pizzinato e Barcinski desafiam a visão tradicional
mais ou menos consensual da gravidez na adolescência como um acontecimento
indesejável e de consequências negativas. Perpetivam-na, antes, enquanto
estratégia de empoderamento para mulheres que viveram situações de violência
doméstica, de desamparo e de falta de recursos, num contexto em que outras
estratégias são escassas. Discutem os resultados de dez entrevistas conduzidas
junto de jovens mulheres imigrantes que tiveram os seus filhos quando
adolescentes na região da Catalunha.
João Sardinha apresenta-nos no seu texto ' Portuguese-Canadian and Portuguese-
French second-generation migrant women narrate return' to Portugal ' produzido
a partir de dez narrativas de mulheres migrantes de segunda geração luso-
canadianas e luso-francesas que «regressaram» a Portugal para viver, uma visão
centrada nas experiências das mulheres. Neste texto, resultado de um trabalho
etnográfico, discutem-se as questões da integração e da pertença, também à luz
das expetativas do pré-retorno e do pós-retorno. É notória neste trabalho a
forma como as participantes elaboram os seus planos pessoais de ação na
situação de pré-retono, salientando o desejo do retorno a Portugal, aqui
significado como um país de oportunidades e de realização cultural.
Partindo do entendimento da mobilidade como um dos elementos centrais da teoria
social contemporânea e de um paradigma da mobilidade que reforça a centralidade
dos conceitos de espaço, lugar e fronteira, em Mobilidades, migrações e
orientações sexuais: Percursos em torno das fronteiras reais e imaginárias,
Paulo Jorge Vieira relaciona as mobilidades com as orientações sexuais. Sendo o
armário o centro das vivências lésbicas e gays nos tempos da modernidade, a
«saída do armário» é perspetivada como o centro e o vórtice de um primeiro
processo de mobilidade metafórica e simbólica. Mas a mobilidade metafórica do
armário corresponde, muitas vezes, a um outro tipo de deslocação e de
mobilidade real, sendo pois salientadas as motivações de ordem sexual
subjacentes às migrações para as cidades. É salientada a interseccionalidade do
género e da sexualidade com as identidades nacionais, étnicas e diaspóricas,
sendo tecidas fecundas reflexões paralelas em torno da questão do asilo
político, da globalização gay e da crítica queer.
Marisa Caroço Amaro, com o seu texto La prostitución en la era digital:
análisis de estructuras y contenidos de los anuncios publicitados en Internet,
discorre sobre os efeitos da globalização ao nível da expansão da internet como
ferramenta de publicidade e de consumo sexual. A autora procura caracterizar a
indústria do sexo em Espanha, recorrendo para isso à análise de anúncios da
internet. As suas conclusões apontam para o facto da Internet se ter
configurado como um recurso publicitário adaptado às vivências das sociedades
contemporâneas, servindo como plataforma de troca de informação. A indústria do
sexo parece seguir essa mesma tendência, sendo a Internet atualmente um valiosa
ferramenta de divulgação de conteúdos sexuais.
Em L'exil des feministes: délocaliser la lutte pour continuer à agir, Sophie
Lhenry apresenta uma perspetiva de análise e reflexão afastada de visões mais
estruturalistas dos movimentos migratórios que enfatizam o impacto das
dificuldades que as mulheres encontram nos países de destino e de modelos
binários de análise das sociedades de partida/sociedades de chegada. Com base
na recolha de histórias de vida de trinta e duas mulheres argelinas e iranianas
exiladas em França e nos documentos por elas produzidos, Lhenry dá voz às
exiladas políticas (quando classicamente, os exilados políticos eram apenas os
homens), revelando a sua vontade de serem atoras da história. É discutido o
impacto do feminismo (e de uma vontade consciente ou não consciente de
transgredir as regras genderizadas do país de origem) nas carreiras
militaristas atravessadas pelo exílio.
Vera Silva, no texto As mulheres no conflito armado do Ruanda, propõe uma
análise ao conflito do Ruanda, desde o seu início até ao genocídio de 1994 e
período pós-genocídio, problematizando as experiências e práticas das mulheres
neste contexto de conflito armado. A autora procura evidenciar as problemáticas
específicas das mulheres, sobretudo no que concerne ao processo de formação das
identidades étnicas. Segundo a mesma, as mulheres no conflito do Ruanda, devido
às construções sociais e culturais sobre os sexos, nomeadamente sobre o sexo
feminino, e ao processo de etnicização sofreram e participaram no conflito
através de experiências e práticas específicas e diferenciadas, sobre as quais
é necessário refletir.
Com o texto Da participação à integração: Estruturas e oportunidades,
discriminação e género no contexto da participação cívica e política de jovens
imigrantes brasileiros/ as, Maria Fernandes-Jesus, Norberto Ribeiro, Pedro D.
Ferreira, Elvira Cicognani e Isabel Menezes convidam-nos a uma reflexão sobre
as formas, contextos e níveis de participação cívica e política de jovens
imigrantes brasileiros/as em Portugal. A partir da realização de grupos de
discussão focalizada as/os autoras/es analisam experiências, perceções e
significados que os/as jovens brasileiros/as atribuem à participação, à
integração, às estruturas políticas e ao preconceito/discriminação. Neste
estudo, o discurso dos/as jovens reflete uma visão sobre as políticas de
integração consideradas positivas no plano teórico, refletindo contudo algumas
ambivalências no plano prático.
Esperamos que este dossier possa enriquecer um debate informado e
interdisciplinar sobre as migrações, favorecendo o desenvolvimento de olhares
críticos sobre o fenómeno e estimulando novos percursos de investigação.