O lugar do Direito nas políticas contra a violência doméstica
Introdução
A violência doméstica2 permanece na atualidade como uma relevante fonte de
exclusão social. Com uma crescente visibilidade na esfera pública, traduzida
num claro aumento das denúncias, este tipo específico de violência tem sido
objeto de diversas políticas dirigidas à sua prevenção, à sua criminalização e
ao apoio às vítimas.
Com efeito, se até há uns anos a maioria dos países tendia a negligenciar a
existência deste problema, hoje podemos afirmar que o tratamento legal da
violência doméstica é uma prioridade, facilitando a intervenção do Estado e
outros organismos nestas situações. Obviamente que as respostas para os casos
de violência doméstica não se esgotam no Direito, e o Estado tem atuado noutras
áreas, como na prevenção ou no aumento de valências sociais de apoio às
vítimas. Mas a centralidade que o Direito assume no combate à violência
doméstica e nas reivindicações e expectativas quer das vítimas, quer das
organizações de mulheres, é incontestável.
Através da análise da evolução jurídica e prática judiciária nos casos de
violência doméstica em Portugal, este artigo pretende dar um contributo para
uma reflexão crítica dos desafios que se colocam especificamente às políticas
de combate à violência doméstica dirigidas à sua criminalização, tendo como
pano de fundo os debates proporcionados pelas teorias feministas do Direito.
1. Tem o Direito3 lugar nas reivindicações feministas? Alguns debates teóricos
Na segunda parte do século XX, as teóricas feministas demonstraram que a
produção masculina do conhecimento – através do Direito, da ciência ou da
cultura – criou hierarquias que consignaram as mulheres para a inferioridade e
exclusão. A crítica feminista nestas arenas evidenciou a necessidade de
contestar estes conhecimentos nos moldes tradicionais (Sunder, 2007). As
feministas do Direito em particular intentaram compreender a construção da
matriz do Direito sustentada pelo (e que sustenta) o status quo patriarcal para
o conseguirem questionar4. Se há dúvidas que o Direito produza, per se,
relações patriarcais5, o mesmo já não acontece relativamente à contribuição que
aquele dá à perpetuação, legitimação e reprodução das mesmas na sociedade.
O estado da arte sobre esta questão permite reunir um conjunto de argumentos,
muitos deles na esteira dos estudos críticos do Direito, que evidenciam a
ineficácia do Direito nas lutas pela igualdade. Não tendo a pretensão de dar
conta aqui de toda essa diversidade argumentativa, enumero alguns que entendo
particularmente relevantes de um ponto de vista teórico e metodológico. Um
primeiro argumento prende-se com o modo como o Direito lida com o binómio
igualdade/diferença. São antigas as reivindicações feministas pela garantia da
igualdade e paridade na lei. Com efeito, na década de 1970, as feministas
liberais, reivindicando a igualdade entre homens e mulheres em diferentes
campos, exigiram transformações no Direito de modo a que este fornecesse
soluções idênticas para problemas jurídicos semelhantes (Bartlett, 1994). Ou
seja, de acordo com esta estratégia, a igualdade para as mulheres poderia ser
alcançada através da eliminação das diferenças de género na lei.
Drucilla Cornell (1995) explica, contudo, que não é uma reivindicação feminista
que as mulheres sejam consideradas iguais aos homens, mas sim que o sexo
feminino tenha valor equivalente ao sexo masculino, de maneira a que, perante a
lei, tenham igual peso. Para a autora, não têm sido as diferenças reais que têm
negado a igualdade às mulheres – como por exemplo, o facto de apenas aquelas
engravidarem –, mas sim a desvalorização dessas diferenças, sobretudo no
Direito. Nesta esteira, entendeu-se que o Direito não pode/deve tratar homens e
mulheres do mesmo modo, quando claramente as suas posições na sociedade, no
emprego, na sexualidade, na família, etc., são, ainda, tão diferenciadas
(McCorkel et al., 2000).
Como consequência, na década de 1980 começou a constatar-se que o discurso
igualitário do Direito podia conduzir a desigualdades e que, com a capa
aparente da neutralidade, não raras vezes o Direito, através da lei ou das
decisões judiciais, mais não fazia do que reproduzir o status quo em vigor,
fosse ele o da classe dominante ou do patriarcado (Ewick, 2004; Smart, 1999).
Mas se, por um lado, um regime de igualdade de oportunidades não se constrói
sem um pensamento social atento às diferenças e à necessidade de tratamentos
diferenciados numa lógica proactiva, por outro, quando o Direito consagra as
diferenças, pode fazê-lo de forma a que os sujeitos – as mulheres – sejam
entendidos de forma parcial. O Direito ou procede a um entendimento parcial da
identidade das mulheres com base na diferença entre os sexos, inscrevendo essas
diferenças nos textos legais ou/e universaliza a mulher, inserindo-a numa
categoria homogénea (sem raça, etnia, religião, orientação sexual, etc.),
omitindo as suas diferenças dos textos legais e, consequentemente, caindo num
essencialismo cultural (Duarte, 2011).
Estas críticas, aqui apresentadas de forma muito sintética, demonstram que é
negligente, e até ingénuo, pensar-se que o Direito pode por si só, através de
ameaça sancionatória, impor a igualdade. Contudo, "a crença excessiva na
capacidade reguladora do Direito é tão incorreta como a convicção da
irrelevância da instância jurídica" (Beleza, 1990:19). Esta incorreção
deve-se, na minha opinião, a dois motivos. Em primeiro lugar, porque é difícil
para o movimento feminista não traduzir as suas reivindicações em direitos
(MacKinnon, 1989). O que não tem tal tradução não existe e, pior, acentua a
clivagem entre opressores/as e oprimidos/as. Em segundo lugar, porque uma
contextualização histórica das conquistas feministas permite verificar a
importância do Direito na progressão (ainda que com permanentes retrocessos e
tempos diferenciados) da igualdade de género em campos como o emprego, o
casamento, a família e a proteção das mulheres de atos violentos (Fimenan,
1997). O que é necessário ter sempre presente é que, se em alguns casos as leis
tiveram tradução direta na melhoria das vidas das mulheres, outros houve em que
a existência de certa lei conduziu a uma regressão. Como consequência, não
devem criar-se muitas expectativas em relação às reformas legais que podem,
efetivamente, ser pontuais, ser travadas por obstáculos na sua implementação
prática e sem grande capacidade de transformação das mentalidades (Smart,
1989).
Esta crítica ao Direito é necessária e indispensável e não devemos descartar a
sua potencialidade para o próprio Direito. Assim, ainda que os argumentos acima
identificados sejam ignorados na definição das leis que regulam as vidas das
mulheres, uma das grandes conquistas das correntes feministas do Direito tem
sido, precisamente, evidenciá-los, identificando o conteúdo ideológico e
patriarcal da razoabilidade do Direito e questionando essa mesma razoabilidade
(Lahey, 1991). Como consequência, segundo Chamallas (2003), se há uma tese
predominante no corpo eclético de investigação da chamada "teoria
feminista do Direito" é a de que o género permeou o pensamento no
Direito, afetando as categorias doutrinais básicas, os discursos legais e as
estruturas das instituições legais.
É deste pressuposto que parte a expressão feminist jurisprudence ou
"Direito das (para as) mulheres". Na esteira da autora norueguesa
Tove Stang Dahl (1993), esta feminist jurisprudence pressupõe documentar e
entender a situação jurídica das mulheres com vista à busca de soluções para a
sua melhoria. Para desempenhar tal missão, é fundamental contestar e
transgredir as delimitações tradicionais entre os campos do jurídico
(disciplinas académicas e legislação) entre o jurídico e o não jurídico (os
espaços privados vazios de juridicidade) e entre o legislado e o vivido
(Beleza, 2010), não se esperando muito do Direito, ao mesmo tempo que não se
aceita acriticamente aquilo que ele tem para dar.
2. O Direito e a violência doméstica contra as mulheres em Portugal
A violência doméstica contra as mulheres é um caso interessante de análise no
que diz respeito ao papel do Direito, sendo profícua a produção legislativa
nesta matéria. Muitas feministas têm argumentado que os direitos de cidadania
das mulheres não estão assegurados enquanto na esfera privada estas continuarem
a ser objeto de violência (Naranch, 1997). Assim, tenho vindo a analisar as
emergências no tratamento legal da violência doméstica, procurando encontrar
boas práticas e identificar caminhos tortuosos. Com esse objetivo defini uma
metodologia, que neste artigo se apresenta bipartida, pressupondo análise de
conteúdo (de políticas públicas, de legislação, estatísticas da justiça e de
processos- crime) e realização de entrevistas a ativistas e técnicos/as de
organizações de apoio à vítima e a profissionais do direito (magistrados/as do
Ministério Público, juízes/as e advogadas/os)6. Por parte de todos/as procurei,
entre outros aspetos, apurar o seu grau de conhecimento sobre violência
doméstica e analisar as suas opiniões sobre as políticas de prevenção e combate
a este fenómeno.
De seguida dou conta de algumas das questões que surgiram mais evidentes nas
narrativas das pessoas entrevistadas, tendo por base a evolução da legislação
nesta matéria.
2.1. As alterações legislativas ao tipo do ilícito criminal: dos maus tratos à
violência doméstica
Hoje em dia são já cerca de uma centena os Estados que se dotaram de legislação
específica para combater a violência doméstica. Entre estes, Portugal que,
desde 1982, criminalizou a violência exercida no seio da família. Esta foi uma
importante conquista, tendo em conta que durante milénios práticas violentas
contra as mulheres no seio da família eram não apenas toleradas, como até
encaradas como algo que escapava por completo à tutela do Direito e do Estado.
Podemos afirmar que Portugal fez um esforço significativo nesta matéria. Este é
um empenho relativamente recente, localizado a partir do 25 de Abril de 1974 –
mais especificamente com a Constituição de 1976 –, muito devido às
movimentações populares que traziam consigo fortes reivindicações em torno da
consagração de direitos. Como consequência de uma longa ditadura, e não
obstante a violência contra as mulheres começar, na década de 1960/70, a
emergir nos feminismos europeus como uma prioridade, esta reivindicação só teve
eco público em Portugal nos finais da década de 1990, por pressão de
associações que continuaram a batalhar nesta causa e pela agenda europeia
institucional da igualdade de género, que influenciou o governo a elaborar os
primeiros planos nacionais para a igualdade e contra a violência doméstica7
(Magalhães, 1998; Tavares, 2011).
Não é possível enunciar aqui todas as modificações que ocorreram neste tipo
legal desde que o ordenamento jurídico português o reconheceu, mas apenas
mencionar alguns marcos que parecem importantes para este debate.
A redação do artigo 153.º do Código Penal de 1982, que consagrou o crime de
maus-tratos a cônjuge na ordem jurídica portuguesa, nunca satisfez totalmente
as organizações feministas, por ser uma versão adaptada de uma proposta inicial
onde esta problemática não era sequer considerada. Efetivamente, a
autonomização do crime de maus-tratos foi proposta pela primeira vez por
Eduardo Correia, em 1966, no Anteprojeto para a revisão do Código Penal. Na sua
proposta inicial, o crime de maus-tratos desdobrava-se em dois artigos, a saber
o artigo 166.º relativo aos "Maus tratos a crianças" e o artigo
167.º cuja epígrafe era "Sobrecarga de menores e de subordinados".
Desta proposta inicial não constava, pois, os maus-tratos a cônjuge, aspeto
introduzido mais tarde pela comissão revisora. Como consequência, o denominador
comum presente em todo o artigo – uma relação de subordinação entre o agente e
a vítima (menores, indefesos de diversa espécie e subordinados) – tornou-se
extensível às relações conjugais nas quais impera a igualdade entre os
cônjuges.
Em 1995 o legislador atribuiu expressamente ao crime natureza semipública e em
1998, mantendo essa natureza, instituiu a possibilidade de o Ministério Público
abrir inquérito e avançar com o processo no interesse da vítima, podendo esta
ainda opor-se até à dedução da acusação. As hesitações nesta matéria terminaram
em 2000, quando mais uma revisão transformou o crime em crime público.
Um longo caminho se percorreu desde 1982 até à última modificação nesta
matéria. A reforma penal de 2007, aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de
setembro, introduziu alterações significativas. Desde logo, procedeu-se à
autonomização do tipo legal de crime intitulado violência doméstica, atualmente
previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal. Uma vez mais, o conceito
utilizado não agradou a todas as organizações que atuam, direta ou
indiretamente, na área da violência doméstica.
Embora mostrando-se genericamente satisfeitas com a nova legislação, a maioria
das ONG entrevistadas mostrou-se tendencialmente favorável a que este conceito
fosse substituído pelo de violência de género, à semelhança do que acontece na
legislação espanhola. Com efeito, uma questão recorrentemente mencionada por
parte das ONG, sobretudo de cariz feminista, é se estas políticas legislativas,
não obstante o seu contributo, se integram realmente numa política de género
mais ampla, já que o conceito de violência doméstica também engloba outras
formas de violência, ocorridas em âmbito essencialmente familiar, como a
violência sobre menores ou idosos/as. Não se trata de ignorar a importância
destes tipos de violência, mas tão-somente exigir que o âmbito de intervenção
da legislação que enquadra a violência doméstica tenha em conta as
especificidades da violência que ocorre nas relações de intimidade,
nomeadamente aquela que continua a ter uma maior expressão – a exercida sobre
mulheres – e as relações desiguais de género8.
Para além da autonomização do tipo de crime, são quatro as alterações mais
relevantes: 1) a eliminação definitiva dos requisitos de reiteração ou
intensidade; 2) o alargamento do tipo relacional existente entre agente e
vítima para a qualificação do crime de violência doméstica; 3) alargamento das
possibilidades de aplicação de penas acessórias; 4) para além das situações de
agravação em função do resultado, previsão da agravação em função das
circunstâncias.
Estas alterações permitiram que alguns/mas autores/as, como Teresa Beleza,
defendam que "o legislador está certamente a levar a sério a incriminação
da violência entre pessoas próximas, familiar, doméstica, ou como se queira
chamar. A jurisprudência terá o caminho aberto por esta revisão de 2007
relativamente facilitado, uma vez que as especificações do preceito são mais
acentuadas. " (Beleza, 2007: 10-11). A mesma autora admite, no entanto,
que este caminho apresenta ainda alguns obstáculos.
A vontade do "Legislador" e a prática da lei
O subtítulo é provocatório, aludindo ao falso neutro sempre aplicado a esta
"entidade" e à sobejamente conhecida discrepância entre o direito
escrito e o direito praticado. Com efeito, a grande maioria das pessoas
entrevistadas, quer da sociedade civil, quer da arena legal, foi mais
contundente nas críticas apontadas à prática da lei, do que ao seu texto
propriamente dito. Foram três as críticas mais recorrentemente apontadas à
prática judiciária, mesmo entre pares (magistrados/ as judiciais e do
Ministério Público).
A primeira prende-se com a controvérsia em torno da ideia de reiteração. No
entendimento de alguns/mas autores/as, apesar de tal não estar expresso
textualmente na disposição legal penal, as várias descrições típicas do n.º 1
do artigo 153.º sugeriam uma ideia de reiteração e de continuidade ou
significativa gravidade do ato de mau trato, com a referência à necessidade de
malvadez ou egoísmo (Gomes, 2004: 13). A jurisprudência começou a exigir,
assim, para a qualificação dos factos como crime de maus tratos entre cônjuges
a existência de dolo específico, neste caso malvadez9, e o elemento de
reiteração ou intensidade dos factos praticados.
A revisão de 2007 procurou colocar um ponto final naquela discussão
jurisprudencial ao prever expressamente que os maus tratos físicos ou psíquicos
relevantes para a qualificação do tipo legal de crime de violência doméstica
podem ser infligidos de modo reiterado ou não10. No entanto, as entrevistas
realizadas a magistrados/as demonstram que, apesar desta modificação, várias/os
tendem ainda a considerar que a reiteração é um fator indispensável na
avaliação de um caso de violência doméstica, argumentando que, caso contrário,
caminhar-se-ia para a banalização deste tipo legal. Nesta esteira segue ainda
alguma jurisprudência. Um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, já após a
entrada em vigor da Lei, indeferiu o recurso interposto pelo Ministério Público
para condenar por violência doméstica um homem que deu duas bofetadas na mulher
com quem vivera maritalmente durante 14 anos. Na primeira instância, o homem
tinha sido condenado pelo crime de ofensa à integridade simples, na pena de 140
dias de multa, à razão diária de 7 euros, e ainda no pagamento à ex-mulher de
500 euros a título de danos não patrimoniais. O Ministério Público recorreu,
pedindo a condenação pelo crime de violência doméstica, subindo, assim, o
limite mínimo da pena para dois anos. O Tribunal da Relação, de segunda
instância, discordou, afirmando:
(…) não sendo o comportamento do arguido reiterado, a agressão em
causa (tratando-se de uma ação isolada) não revela uma intensidade,
ao nível do desvalor, da ação e do resultado, que seja suficiente
para lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde
psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da
pessoa humana (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de
novembro de 2010).
A segunda crítica diz respeito à aplicação de medidas de coação. A previsão da
punibilidade das condutas integradoras do tipo de crime de maus tratos a
cônjuge inseridas no Código Penal de 1982 cedo se revelou insuficiente para uma
adequada proteção da vítima. Os dados do Ministério da Justiça, entre 1998 e
2006, eram efetivamente preocupantes, mostrando que em 95,6% dos casos de
violência doméstica sobre cônjuge foi aplicado somente o termo de identidade e
residência, que não confere qualquer proteção às vítimas.
A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que aprovou o regime jurídico aplicável
à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas,
procedeu à criação de um regime especial de detenção e de aplicação de medidas
de coação nos casos em que haja indícios da prática de um crime de violência
doméstica. Na sequência desta lei, foi iniciada, em janeiro de 2009, uma
experiência piloto do programa de Vigilância Eletrónica para Agressores
Domésticos, o que acaba por ser um bom indiciador de uma possível mudança no
paradigma de aplicação destas medidas e da avaliação da gravidade destes casos
e do potencial de risco que apresentam para as vítimas.
Parece ir-se, assim, ao encontro de uma letra da lei mais coincidente com uma
efetiva proteção das mulheres contra a violência nas relações de intimidade uma
vez que grande parte delas apresenta uma denúncia formal do seu agressor para,
no imediato, alcançar um patamar de segurança (Garcia e McManimon, 2011).
Por fim, não obstante a revisão penal de 2007 ter alargado as possibilidades de
aplicação de penas acessórias no caso de crime de violência doméstica, a
terceira crítica prende-se precisamente com as penas aplicadas a este tipo de
crime. Quando analisamos as condenações, constatamos que o número de condenados
por violência doméstica tem vindo a aumentar significativamente (com 71
condenações em 2000 e 718 em 200911), fruto de uma tendência crescente para
apresentação de queixas na polícia, do facto de o crime ter assumido natureza
pública em 2000 e, também, de uma crescente consciencialização social da
gravidade deste tipo de fenómeno que teve tradução no empenho dos/as
magistrados/ as nesta matéria e na lei. No entanto, e apesar da significativa
diminuição, a pena mais aplicada nestes casos continua a ser a pena de prisão
suspensa simples (em 2000, esta pena representou 92% das penas aplicadas e, em
2009, 38%12). Esta pena, por não implicar qualquer dever de sujeição ou regra
de conduta por parte do arguido, conduz, para grande parte das pessoas
entrevistadas, a um certo sentimento de impunidade que tem consequências
naquele conflito específico, com o agressor a sentir que não lhe foi aplicada
qualquer pena, e em termos de prevenção geral deste tipo de crime na sociedade.
3.2. A categorização das mulheres vítimas de violência na prática judiciária
Embora se assista a uma cada vez maior sensibilização e empenho por parte das
magistraturas no combate a este tipo de violência, não podemos deixar de notar
que o discurso judicial se vai mantendo fiel a certos modelos sociais que
regulam as relações de género. Como refere Teresa Beleza (2004), apesar das
modificações legislativas, as práticas sociais e o seu reconhecimento normativo
nas decisões judiciais encarregam-se de travar as mudanças mais significativas
e mais profundas.
Para tal não é indiferente o modo como as ideias, as imagens sociais ou os
preconceitos relativos às mulheres interagem no quotidiano dos Tribunais, e
designadamente na produção do discurso judiciário. Diversos estudos têm vindo a
demonstrar que não obstante a consagração legal do princípio da Igualdade
perante a Lei, que as mulheres, enquanto grupo social, são mais severamente
afetadas por mitos, preconceitos e estereótipos sexistas, contidos quer nas
leis, quer nas mentes dos juízes. Isto tem consequências a vários níveis (e.g.
Bowman et. al, 2010; Thomas & Boisseau, 2011; Beleza, 2001).
Desde logo, a criação de uma tipologia aplicada às vítimas. Para Lynn Schafran
(1985), os três estereótipos mais marcantes refletidos nas decisões judiciais,
são os seguintes: "Maria", a mulher casta/doméstica, para quem a
maternidade é a suprema realização, e inábil para tomar qualquer posição que
implique autoridade sobre outras pessoas; "Eva", a eterna tentadora
que leva os homens a delinquir, e que é também agente da sua própria
vitimização, designadamente nos crimes sexuais; e a "Super Mulher",
aquela que está no mercado de trabalho em plenas condições de igualdade
salarial com os seus colegas homens, e que dispõe, em consequência, de recursos
próprios para, por si, se sustentar e aos/às seus/suas filhos/as, sem
necessidade, portanto, de qualquer ajuda por parte do pai dos/as seus/suas
filhos/as. Alguns destes estereótipos foram encontrados nas narrativas de
alguns/mas dos/as magistrados/as entrevistados/as. Adaptando a categorização de
Schafran, foi possível identificarmos tipos de vítimas, não necessariamente
exclusivas, nem excludentes. Em primeiro lugar, temos a "vítima
inocente", que fez um grande esforço para manter a família e a relação
afetiva, apesar de ser seriamente agredida fisicamente. Esta mulher, apesar de
agredida, tardou a apresentar denúncia devido, em especial, à sua baixa
instrução ou dependência económica do agressor. Este tipo ideal de vítima vai
ao encontro de "Maria":
Há mulheres que vemos claramente que foram realmente vítimas de
violência. Que sofreram durante anos e anos, que contam a sua
história a soluçar. Mas aquele era o homem que amavam e, por isso,
hesitaram apresentar queixa. Tentaram mudar elas a situação. Consigo
compreender isso (E2, Magistrada judicial).
O segundo tipo de vítima identificado nos discursos de magistrados/as é o da
"vítima tão culpada quanto o agressor". Aqui encontramos discursos
de atenuação da gravidade do comportamento do agressor, por atos da vítima
tidos como provocatórios (por exemplo, infidelidade ou comportamento
agressivo):
Há vítimas que se põem a jeito. A vítima cria situações de
provocação, só que depois não consegue resolver o problema, nem
encontrar solução. (…) Isto é como as violações. Como eu costumo
dizer, a mulher pode permitir tudo até à última, mas depois diz que
não. E não é não. Se o homem continuar está a violar, não há dúvidas
nenhumas. A vontade da pessoa tem de ser muito ponderada. Claro que a
mulher que depois andou até às últimas, a permitir tudo e mais alguma
coisa, acaba por ter algum merecimento nesta situação. Mas a verdade
é esta, servirá para compreendermos melhor a atitude do arguido, mas
não servirá tanto para desculpá-lo. Embora isto não deixe de ser de
alguma maneira um fator desculpabilizante. (…) Na violência doméstica
pode haver muitas situações (E3, Magistrado judicial).
Uma vez mais também é possível encontrar na jurisprudência alguns exemplos. Em
maio de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça lavrou um acórdão sobre crime de
homicídio em que aceitou o incumprimento do dever de sujeição sexual da mulher
ao marido como circunstância atenuante da pena por uxoricídio:
No doseamento concreto, haverá de ter em conta nomeadamente as
circunstâncias de cariz agravante que se enunciaram, não esquecendo
ainda assim as [poucas] atenuantes de que o arguido deve beneficiar,
e assim, por um lado, que é analfabeto, e, também, que a vítima, sem
que se saiba porquê – ignorância mais uma vez favorável ao arguido em
sede de valoração da prova – "após finais de março de 2002,
quando o arguido regressou de França depois de ter terminado um
contrato de trabalho, (...) passou a não querer manter relações
sexuais com ele", circunstância, que, pelo menos, permitirá a
afirmação de que nem só do lado do arguido terá havido violação dos
deveres conjugais, e pode até ajudar a explicar as dúvidas surgidas
naquele espírito pouco iluminado sobre a (in)fidelidade dela (Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2004).
Refira-se, no entanto, que, contrariamente à anterior, esta categoria foi
significativamente menos frequentemente identificada nas narrativas dos/as
magistrados/ as entrevistados/as.
O terceiro tipo de vítima é a "vítima imaginária", aquela mulher
que, por estados depressivos, de carência afetiva ou de paranoia, cria
situações não reais de vitimização.
Por fim, e usando a categoria já referida, temos a "supermulher".
Esta categoria, refletindo uma mulher economicamente independente, e com uma
carreira profissional bem sucedida, surge como a antítese das outras
"vítimas". Verificámos que tende a haver uma resistência em admitir
que mulheres com tais características se submetam a uma situação de violência
numa relação de intimidade, sobretudo quando esta é prolongada:
Posso dizer-lhe que 90% das queixas de violência doméstica que aqui
chegam são falsas. São mulheres que usam o processo-crime para os
casos de divórcio, de regulação das responsabilidades parentais e que
não são realmente situações de violência doméstica. (…) Então quando
chega aqui uma senhora, com o seu próprio advogado, sem ser oficioso,
com um discurso muito articulado, que sabe muito bem o que dizer e o
que quer, desconfio logo (E4, Magistrada do Ministério Público).
Esta resistência vai ao encontro da preposição, sugerida pela teoria liberal,
de que a conceção de autonomia e cidadania não pode acomodar situações de
violência nos relacionamentos íntimos, porque o autodomínio decreta que o
indivíduo, simplesmente, se vá embora ou que lide com a situação sem a
intervenção do Estado – o que não é viável para a maioria de mulheres que
sofrem abusos (Pateman, 1988).
A construção social de vítima está tão enraizada na sociedade que leva a que
estes atores judiciais tenham pouca, ou mesmo nenhuma, consciência, dos
estereótipos que carregam. Isto é tanto mais grave quanto é assumido que neste
tipo de criminalidade, "as declarações das vítimas merecem uma ponderada
valorização, uma vez que maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorreram
normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas." (Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/06/2001).
Esta questão específica evidencia o modo como, não obstante reformas legais
progressistas, se podem perpetuar situações de injustiça e como novos discursos
e racionalidades se desenvolvem para justificar a continuidade da disparidade
do género em situações de violência (Siegel, 1996).
Reflexões Finais
Durante os últimos 20 anos, têm sido alcançadas vitórias políticas cruciais na
área da violência doméstica. O Estado legitimou, legislou e fez cumprir
políticas que protegem e fortalecem o poder das mulheres em situação de
violência.
Não obstante as modificações legais, as entrevistas realizadas, a par da
análise dos dados judiciais, parecem sugerir que há ainda um longo caminho a
percorrer. Tal verifica-se a vários níveis: em decisões judiciais que nem
sempre valorizam a violência exercida sobre as mulheres; em medidas de coação
que não protegem as vítimas; em sanções que traduzem um sentimento de
impunidade pelos agressores; em processos demasiadamente morosos e em
indemnizações insuficientes atribuídas às vítimas. Mas, se a legislação e a
formação vão pontualmente procurando minimizar os problemas enunciados, o
caminho mais difícil de desbravar parece ser o de combater os mitos e
estereótipos sobre a violência de género existentes na sociedade e, logo
também, no seio da comunidade jurídica, mormente nos tribunais. Esta
constatação faz-nos concordar com Ferreira (1998), quando nos diz que a
igualdade de género na lei se fez antes da mudança de mentalidades; e com
Beleza (2004) quando afirma que a igualdade, mesmo extravasando o campo
meramente formal e sendo material e substantiva, é minada pelas desigualdades
estruturais na sociedade.
Estas práticas judiciárias devem ser analisadas e evidenciadas. Como vimos, um
projeto feminista pode, (1) partindo de um desencanto e de uma lógica da
suspeição em relação ao Direito, (2) da sua incapacidade de uma transformação
social progressista e (3) de perspetivar aquele como reflexo e reprodutor de um
status quo em que prevalecem as relações sociais desiguais de género,
reconhecer as mudanças que têm vindo a ser implementadas, e usá-lo como
instrumento na luta pela igualdade (Fineman, 2011; Levit, 2006; Schneider,
2000; Bender, 1993).
Como diz provocativamente Foucault (1980), onde há poder há resistência e
contudo, ou talvez por isso mesmo, esta nunca está numa posição de
exterioridade em relação ao poder. Assim, se é verdade que a igualdade
declarada e até promovida na lei encontra inúmeros obstáculos na sua aplicação
prática, o Direito não controla definitiva ou isoladamente a vida social e os
seus valores, e não se limita, ao contrário dos mais céticos, a plasmar em
letra de lei as conceções socialmente dominantes. O Direito – as leis, a
jurisprudência, as práticas jurídicas e judiciárias – tem tido um papel
constitutivo importante na segregação discursiva de grupos de pessoas,
nomeadamente as mulheres. Talvez por isso mesmo, o Direito possa ajudar a
desfazer essa segregação, não só proibindo tratamentos discriminatórios, mas
sobretudo obrigando as devidas instâncias a tomar medidas que contrariem a real
situação de inferioridade social de algumas pessoas: transmitir, por exemplo, à
sociedade que a violência doméstica é realmente um crime que ocorre no seio das
desigualdades de género.
Para que esse exercício surja como possível, é fundamental que ativistas
feministas e feministas do Direito continuem a perspetivar a arena jurídica
como um importante espaço de debate e reflexão que desafia o cânone mais
tradicional do direito: analisando o texto da lei e as práticas jurídicas e
judiciárias, avaliando as consequências daquelas nas vidas das mulheres e
construindo metodologias interdisciplinares que permitam que as experiências
dessas mulheres influenciem a prática judiciária. Em síntese, não permitindo
que o Direito se feche em si mesmo.
Neste sentido, creio que podemos levantar a hipótese, que terá de ser
empiricamente mais aprofundada, de que se o Direito é algo de socialmente
construído e que, portanto, está sujeito a um contínuo processo de reelaboração
em nome das dinâmicas sociais que lutam pelos seus mecanismos, então a
proliferação de visões feministas do Direito poderão contribuir para que este
caminhe em torno de uma crescente e efetiva igualdade entre homens e mulheres,
na lei e na prática judiciária.