República das Mulheres
Seixas, Maria João (2010), República das Mulheres, Lisboa, Bertrand Editora,
216 pp.
Fernanda Branco
fernbranco@gmail.com
São catorze. Porque ela assim o decidiu: sete prosadoras, sete poetisas – ou
poetas, como a Autora e algumas entrevistadas preferem. A escolha é arbitrária,
ou seja, ao arbítrio de quem escolheu e, por isso, está certa. Poderia ser
outra, a escolha; ou outro, o número escolhido. Perguntar-se-ão alguns dos
olhares leitores "Porquê estas?". Exatamente porque foram
assumidamente escolhidas, como o indica Maria João Seixas na apresentação
"escritoras que admiro e a quem devo seiva fértil para o meu sonhar da
Pátria". Uma partilha pessoal com as pessoas que estejam abertas a essa
partilha.
A edição é de 2010 e pretexta-se da República, com estas mulheres figuras da
res publica, implicadas na res publica, para quem conta a res publica. E por
isso, elas são, também, os bustos da República, fotografadas a pedido de Maria
João Seixas por Jorge Nogueira, de que resulta uma elegante capa de República
das Mulheres, bordejada por Mulheres que a representam. Cada busto surge
separado de outro por uma sugestão de picotado discreto, coerente com o desenho
bordado do centro, ao mesmo tempo que sugere um pequeno selo, com o que nele
vai, filatelicamente, de homenagem e, etimologicamente, de marca que fica
impressa.
São catorze, catorze entrevistas, precedidas de um breve prefácio de Maria de
Fátima Bonifácio, um apontamento sobre o reconhecimento que a República tem
dado – ou não – ao papel das mulheres e que pode ser um incentivo eventual para
se ir procurar saber um pouco mais sobre esta temática.
A escolha abrange um leque amplo de idades e cobre mais do que uma geração: de
1929 a 1970, década a década, não servindo estas, porém, de critério de
ordenação, a que se preferiu a ordem alfabética; embora aleatório, este
valoriza as identidades e não a temporalidade: Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral,
Eduarda Chiote, Helga Moreira, Hélia Correia, Inês Pedrosa, Lídia Jorge, Luísa
Costa Gomes, Maria Andresen, Maria Isabel Barreno, Maria do Rosário Pedreira,
Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Patrícia Reis – para que conste.
Composta por entrevistas a personalidades tão diferentes, a obra constituise,
contudo, como una, pois é a palavra da entrevistadora que a borda como tecido
acabado. Cada entrevista é precedida pela ‘busto da república’ que encarna,
seguida de um texto escolhido pela autora, primeira aproximação à pessoa que
vamos encontrar. Depois, as entrevistadas surgem, num texto breve, pela mão de
MJS, melhor, pela emoção dela: umas são primeiros encontros há muito desejados,
outras são amigas de longa data, outras são conhecidas pessoais, com quem nunca
houvera um encontro mais demorado. É o olhar de MJS, é o seu sentir, que
oferecem cada uma delas ao olhar de quem lê, é pela sua mão que entramos em
cada intimidade, de espaços pessoais ou de espaços públicos. O passo que
define, o gesto que visualiza, o olhar que mostra ou esconde, a voz que fala.
Mulher de inteligência e de sensibilidade, MJS põe de pé um livrinho cheio de
interesse, que nos fala de si e delas, daquelas junto das quais indagou, para
nos manter ao corrente. Sentamo-nos com ela frente a cada uma dessas mulheres
da escrita e ouvimo-las uma a uma, com os seus ritmos, o fluir das suas ideias,
o seu estilo individual; porque são elas quem importa e a entrevistadora
mantém-se presente, desviando-se do foco. Mas mantém-se presente. Está ali para
um trabalho coerente, onde quem lê possa, no correr deste conversar com cada
uma, entender o que nas suas ideias as aproxima ou afasta, que matizes compõem
este colorido. Assim, MJS sabe a delicadeza de deixar ouvir a outra voz e o
rigor de manter um conjunto idêntico de questões, rigor que evita uma
fragmentação desligada, sem coluna firme que construa a obra.
A primeira pergunta, "Diz-me quem és/Diga-me quem é", prolonga as
duas secções anteriores, a do texto escolhido individualmente e a do texto
apresentador da Autora, de modo que, nesta conversa, quem lê tem pedaços
diversos para alimentar a interpretação pessoal que se proponha fazer da
interlocutora. E terá que lidar com respostas que vão de uma enérgica
identificação à assunção de um autodesconhecimento, passando por níveis
diversos de olhares sobre si própria. Daqui segue MJS o diálogo, conforme o que
lhe vai sendo dito, por isso que cada começo é tão diferente e pessoal e toda a
entrevista se mantém sustentada por este início. Alargando-se e alongando-se,
vai MJS também obtendo resposta a questões comuns, como sejam a posição de cada
uma perante a crítica, o juízo que faz hoje da crítica literária no país, como
encara a edição nos tempos presentes, como e se lê o que se publica, isto é,
como vai seguindo a atividade literária em Portugal e pelo mundo.
Estando a República como horizonte ou pretexto, a relação de cada entrevistada
com ela – república, entenda-se – surge igualmente em cada diálogo, mais uma
nota modelando a tessitura coesa, de entrevista para entrevista.
E uma vez que esta República das Mulheres é uma res publica de entrega à
palavra, de afirmação, de interrogação, de questionamento pela palavra, de
construção pela busca da palavra, Maria João Seixas termina em desafio, pedindo
a cada uma das suas convidadas uma "palavra de eleição". Para que
cada conversa termine, como começou, colocando a entrevistadora na posição
discreta de quem cede o passo, a voz. Para que cada conversa termine, como
começou, deixando no ar a voz solicitada a falar. Para que a última palavra
seja a das donas das palavras, "seiva fértil" da entrevistadora – e
de quem queira partilhar destas conversas.