Construção e validação de um questionário de valores e crenças sobre
sexualidade, maternidade e aborto
Os termos gravidez e maternidade são muitas vezes confundidos e até usados como
sinónimos, ainda sejam duas realidades distintas, e consequentemente com
vivências psicológicas também diferentes, e que nem sempre coexistem (Leal,
1990).
Após a descoberta de uma gravidez não desejada, a mulher toma consciência da
existência de duas alternativas à resolução da situação de conflito em que se
encontra – prosseguir ou interromper a gravidez. Confrontada com estas opções,
a mulher tende a avaliar as vantagens e as desvantagens de ambas as
alternativas, em função dos seus valores e das suas crenças (em relação ao
aborto induzido e à maternidade), da desejabilidade da gravidez, dos ganhos ou
perdas utilitários, antecipados para si e para os outros, bem como da
antecipação de aprovação ou desaprovação por parte dos outros e do self (Leal,
2001).
Apesar da interrupção voluntária da gravidez (IVG) ser uma prática comum em
todos os países do mundo e em quase todas as culturas desde os primórdios da
história da humanidade (Faúndes & Barzelatto, 2004), a sensibilidade e a
delicadeza da matéria são evidentes. A IVG, por opção da mulher, tem sido um
tema controverso nas sociedades economicamente desenvolvidas. Abrangendo
múltiplas perspectivas e mobilizando aspectos subjectivos (valores humanos,
éticos, sociais, psicológicos e políticos) e objectivos (aspectos técnicos,
económicos e sociais). Esta temática tem sido discutida e investigada em vários
domínios do saber, tais como a Medicina, a Sociologia, a Biologia ou a
Psicologia (Ribeiro & Araújo, 1998).
Do ponto de vista psicológico, a IVG pode ser entendida como uma experiência
com importantes significações e implicações emocionais, intimamente
relacionadas com as características de personalidade e as experiências prévias
de cada mulher, as suas relações interpessoais, as suas crenças religiosas, as
suas contingências de vida e o ambiente social, cultural e legal circundante
(Stotland, 2000).
Esta constelação de variáveis pessoais, relacionais e sociais, moldam o
processo de tomada de decisão de IVG e, consoante a sua natureza, facilitam ou
dificultam este processo, condicionando as respostas emocionais das mulheres,
face a esta resolução reprodutiva.
Para além da imensidade de factores de natureza individual que influenciam as
vivências de uma mulher que engravida e opta por terminar a gravidez, existem
também os factores de ordem sociocultural.
Os valores e ideais dominantes, não só em relação à interrupção voluntária da
gravidez, como à imagem de mulher, à sexualidade feminina e aos papéis de
género, são características do meio sociocultural em que a mulher se encontra e
influenciam muito significativamente as vivências de gravidez e aborto. Os
contextos morais e sociais são suficientes para culpabilizar e desencadear
angústias importantes nas mulheres que resolvem interromper uma gravidez (Leal,
2001).
Num país predominantemente católico, com valores enraizados em torno do
significado da vida humana, apesar da recente legislação que despenaliza a IVG
até às 10 semanas, estes valores e crenças que prevaleceram durante décadas
mostram-se ainda dominantes.
De facto, o que a investigação nesta área tem demonstrado é que a decisão de
interromper ou não uma gravidez depende da pressão, das normas sociais, leis,
crenças e valores em relação a esse acto (Leal, 2001).
Sem dúvida alguma, é um fenómeno social dos mais complexos e multi-
determinados, fazendo emergir opiniões divergentes, seja no campo ético, moral,
emocional, cultural, religioso, ou no campo das relações de género. Talvez por
não haver ainda o completo reconhecimento social das mulheres como adultos
morais competentes, muitas vezes a IVG como solução reprodutiva é apresentada
como uma decisão egoísta e fria. Segundo este ponto de vista, uma mulher que o
realiza é vista como uma criminosa, como alguém que cometeu um delito (Zugaib,
1990).
No entanto, por mobilizar o auto-conceito e colocar à prova o julgamento moral
acerca da questão que contrapõe toda uma trajectória de vida em sociedade, que
lhes aponta ser a maternidade o seu destino, acreditamos que dizer não à
maternidade através da prática do aborto pode afigurar-se como uma opção
extremamente difícil e conflituosa para as mulheres.
Acreditamos também que, na origem dessa dificuldade está a permanência de um
processo de socialização de papel de género estereotipado durante o qual se
internaliza o sistema de crenças e valores predominantes na sociedade em
relação à função procriativa da mulher (Pedrosa & Garcia, 2000).
Segundo Ardaillon (1997) tendo em conta os valores sociais predominantes, a
decisão de abortar é sempre a resultante de negociações entre ideologia,
realidade social e desejo. Esta autora acrescenta que para conciliar as suas
convicções e valores com a decisão tomada, numa tentativa de minimizar o
julgamento de si próprias pela transgressão do código moral, estas mulheres
manipulam e transformam o significado do comportamento de modo a que assumisse
o carácter de solução única. Num estudo realizado por Vilar (2001), sobre as
representações do aborto em Portugal, para todas as mulheres entrevistadas, o
recurso ao aborto é uma coisa negativa, que no entanto é aceitável pela maioria
em circunstâncias precisas.
Mesmo assim, avaliando o seu próprio comportamento, estas mulheres consideram-
no uma coisa errada, pecado, crime, algo que não é certo e que não se pode
fazer, de acordo com a educação e valores que lhes foram transmitidos desde
sempre (Pedrosa & Garcia, 2000).
Isto levanta questões mais profundas em torno dos papéis e funções de cada
género. Segundo Tachibana, Santos & Duarte, (2006), se na década de 50, as
mulheres tinham uma função materna bem definida, a qual se sobrepunha a todos
os papéis tidos como femininos, a partir da década de 90, tais referenciais e
valores são reestruturados. A maternidade passa a ser encarada como uma opção
que pode ser adiada e até mesmo descartada, as mulheres passam a ser
autorizadas a viver autenticamente a produção dos seus desejos.
No entanto, as mudanças em relação aos papéis de homens e mulheres na sociedade
são recentes. Desta forma, é compreensível que, em relação às questões de
género, práticas e valores tradicionais convivam com práticas e valores novos.
A forma como as sociedades associam papéis e características ao que é ser homem
ou mulher tem implicações para a socialização dos sujeitos, nomeadamente face a
decisões ainda tão controversas e polémicas como a de interromper uma gravidez.
Segundo Alvarez (1995), assistimos a um significativo regresso a valores e
regras ditas tradicionais, salientando-se a Maternidade como um projecto
central do Ser Mulher. Uma das representações sociais mais fortemente difundida
no nosso país é a da maternidade como papel social por excelência a ser
desempenhado por mulheres, “…a maternidade é, para um amplo conjunto da
população portuguesa, condição de feminilidade” (Almeida & Guerreiro, 1993,
cit. por Marques, 2008). Os filhos têm, assim, um lugar central na família
contemporânea, representando para os pais uma fonte de gratificação pessoal
(Cunha, 2007). A máxima satisfação para a mulher não poderia ser ganha de outra
maneira.
Tal como reforça Kamers (2006), as modificações da sexualidade e do olhar
dirigido à mulher precederam uma grande transformação das relações de aliança,
em que a mulher, em vez de ser reduzida ao papel de esposa ou mãe, foi-se
individualizando, a partir da contracepção, prazer e procriação.
Hoje sabe-se que o desejo de maternidade não é instintivo, não é inato, é um
desejo construído, um projecto que apesar de para muitas mulheres a maternidade
ser fundamental para a sua realização pessoal, o amor materno não existe em
todas as mulheres, nem em todos os momentos da sua vida.
“O amor maternal é infinitamente complexo e imperfeito. Longe de ser um
instinto, é condicionado por tantos factores independentes da ‘boa natureza’ ou
da ‘boa vontade’ da mãe (...). Depende não só da história pessoal de cada
mulher, da oportunidade da gravidez, do seu desejo da criança, da relação com o
pai, mas também de muitos outros factores sociais, culturais, profissionais,
etc.”, diz-nos Badinter (1996). A associação destas duas palavras, “amor” e
“materno”, significava não só a promoção do sentimento, como também a elevação
do estatuto da mulher enquanto mãe (Badinter, 1986). Ter um filho nunca foi
considerado fácil, mas sempre foi referenciado como importante (Colman &
Colman, 1994).
Apesar desta tendência para os papéis sexuais tradicionais se esbaterem, eles
continuam ainda muito presentes na sociedade contemporânea.
Quando se fala de gravidez, muitas vezes esquece-se que está intimamente ligada
à sexualidade, área onde houve mais mudanças para as mulheres durante as
últimas décadas. No entanto, devemos destacar duas funções evidentes da
sexualidade como área de prazer, comunicação e afectos e a sexualidade como
função procriativa. A maioria das gravidezes ocorrem muitas vezes por haver
confusão entre estes dois planos. Na realidade trata-se de dar significado ao
comportamento sexual e de estar consciente da motivação que leva a uma
experiência sexual (Zapiain, 1996). O autor reforça ainda que a maioria das
pessoas situa-se bem nesta dupla dimensão e o comportamento sexual dirigido à
procura do outro, à comunicação e ao prazer, está ligado ao uso coerente dos
métodos contraceptivos que permitem distinguir ambas as funções.
De facto, as técnicas contraceptivas permitem que os filhos possam ser
“desejados”. É uma conquista ainda recente, pelo que para algumas mulheres, o
poder separar as necessidades afectivas e sexuais de uma gravidez não desejada
não é fácil. Utilizar um método contraceptivo supõe fechar voluntariamente a
porta da fecundidade e abrir a porta do prazer (Zapiain, 1996). É compreensível
que um determinado sector de mulheres sexualmente activas tenham dificuldade em
integrar a sua própria capacidade erótica.
As mulheres com um elevado nível de conflito, relativamente à integração da
dimensão erótica na sua própria identidade de mulher, tendem a resistir à
utilização de contraceptivos e a escolher os menos seguros (Zapiain, 1996).
Para Soifer (1980) quando uma mulher engravida é porque os seus sentimentos
ambivalentes de querer e não querer ter um filho não se encontravam na mesma
proporção no momento da fecundação. Esta questão da motivação inconsciente em
engravidar pode ser percebida, de acordo com a autora, nas mulheres que afirmam
não desejar engravidar mas que se esquecem de tomar a pílula ou usar
preservativo (Tachibana et al., 2006) analisam como sendo actos falhados
representantes do discurso inconsciente.
Numa linha de análise dinâmica, existem dois conceitos diferentes: o desejo de
gravidez e o desejo de um filho. O primeiro reporta-se ao sentido simbólico,
geralmente inconsciente, que tem a ver com a própria identidade da mulher. O
segundo, refere-se ao desejo consciente de querer ter um filho inserido num
projecto de vida (Passini, 1987).
Partindo destes pressupostos, a construção do presente questionário tem como
principal objectivo conhecer as representações das mulheres sobre sexualidade,
maternidade e aborto.
MÉTODO
Material
Tendo em conta o objectivo principal acima descrito, procedeu-se à construção
de um questionário, com base em instrumentos utilizados na população portuguesa
que incidiram sobre as representações da sexualidade e maternidade, bem como na
revisão de literatura.
O referido instrumento, que designamos Questionário de Valores e Crenças sobre
Sexualidade, Maternidade e Aborto (QVC) tem 38 itens e deve ser respondido numa
escala de Likert de cinco pontos: discordo totalmente; discordo; nem concordo
nem discordo; concordo; concordo totalmente.
Os itens são as que constam no Quadro 1.
Quadro 1
Itens do Questionário de Valores e Crenças
Participantes
A amostra, recolhida por conveniência, é composta por 312 mulheres com idades
compreendidas entre os 13 e os 62 anos, sendo a média de idades de 28.96
(DP=9.548). No Quadro 2 encontra-se a análise detalhada da composição da
amostra.
Quadro 2
Características sócio-demográficas das
participantes para aferição QVC
ESTUDO DAS PROPRIEDADES PSICOMÉTRICAS DO QUESTIONÁRIO
Validade factorial
A estrutura relacional dos itens do questionário foi avaliada pela Análise
Factorial Exploratória (AFE) sobre a matriz das correlações, com extracção dos
factores pelo método das componentes principais seguida de uma rotação Varimax.
Os factores comuns retidos foram aqueles que apresentavam um eigenvaluesuperior
a 1, em consonância com o Scree Plote a percentagem de variância retida, uma
vez que de acordo com Maroco (2007) a utilização de um único critério pode
levar à retenção de mais/menos factores do que aqueles relevantes para
descrever a estrutura latente.
Para avaliar a validade da AFE utilizou-se o critério KMO com os critérios de
classificação definidos em Maroco (2007). Tendo-se observado um KMO=0.79, pro-
cedeu-se à AFE. Os scores de cada sujeito em cada um dos cinco factores retidos
foram obtidos pelo método de Bartlett implementado no SPSS. Estes scores foram
depois utilizados nas análises inferenciais seguintes. Todas as análises foram
efectuadas com o softwareSPSS 17.
Inicialmente, procedeu-se à análise da primeira versão do questionário com 38
itens, sendo depois retirados alguns itens devido ao reduzido peso factorial
apresentado (<0.5) nos factores extraídos na Análise Factorial. O questionário
obtido no final é composto por 17 itens. De acordo com a regra do
eigenvaluesuperior a 1 e com o ScreePlot, a estrutura relacional dos itens em
estudo é explicada por cinco factores latentes. No quadro 3 resumem-se os pesos
factoriais de cada item em cada um dos cinco factores, os seus eigenvalues, a
comunalidade de cada item e a percentagem de variância explicada por cada
factor. A negrito apresentam-se os itens com pesos factoriais superiores a 0.45
em valor absoluto.
Quadro 3
Pesos factoriais de cada item nos cinco factores
retidos,eigenvalues e percentagem de variância
explicada, após uma AFE com extracção de factores
pelo método das componentes principais seguida de
uma rotação Varimax.
O primeiro factor apresenta pesos factoriais elevados dos itens 30, 31, 32, 33
e 34 e explica 23.9% da variância total. O segundo factor, com pesos factoriais
elevados dos itens 6, 18 e 26 explica 12.5% da variância total. O terceiro
factor, com pesos factoriais elevados dos itens 20, 21 e 23 explica 9.3% da
variância total. O quarto factor apresenta pesos factoriais elevados dos itens
22, 28 e 29 explica 7.9% da variância total. Por último, o quinto factor, com
pesos factoriais elevados dos itens 12, 14 e 15 explica 7.4% da variância total
(no global, os cinco factores explicam 60.8% de variância total).
Adicionalmente, todas as comunalidades são relativamente elevadas, demonstrando
que os cinco factores retidos são apropriados para descrever a estrutura
correlacional latente entre os itens.
Fiabilidade
A fiabilidade foi analisada sob o ponto de vista da consistência interna da
escala, através do cálculo do Alpha de Cronbach.Os valores de Alphaencontrados
para estas escalas são considerados indicadores da consistência interna
razoável do instrumento.
Os cinco factores encontrados permitiram-nos a criação de cinco Sub-escalas. Os
itens do primeiro factor (30, 31, 32, 33 e 34), Sub-escala Maternidade,
pretendem avaliar a percepção da maternidade como projecto central do ser
mulher.
A Sub-escala Reprodução, segundo factor (Itens 6, 18 e 26), avalia em que
medida a sexualidade feminina é tida essencialmente como função procriativa.
Os itens referentes à Sub-escala Afectividade, terceiro factor (20, 21 e 23),
avaliam em que medida a sexualidade feminina é sentida como uma área de
partilha de afectos.
A Sub-escala Aborto(quarto factor) avalia as representações negativas acerca do
aborto (itens 22, 28 e 29).
Por fim, o quinto factor, Sub-escala Prazer, avalia a percepção da sexualidade
feminina como área de prazer (questões 12, 14 e 15)
Cotação
O referido questionário deve ser respondido numa escala de Likert de cinco
pontos: discordo totalmente; discordo; nem concordo nem discordo; concordo;
concordo totalmente. A chave da cotação variava entre1e5,respectivamente. Os
scores de cada sub-escala obtêm-se a partir do somatório das pontuações obtidas
em cada item.
Considerou-se que quanto mais alta fosse a pontuação nas dimensões
consideradas, maiores seriam as crenças em torno da maternidade como projecto
principal da condição feminina; da reprodução como função primordial da
sexualidade feminina; da sexualidade como partilha de afectos; piores as
representações sobre o aborto; e maiores as crenças em considerar o prazer como
função primordial na sexualidade feminina.
DISCUSSÃO
A análise factorial deste instrumento identificou cinco dimensões capazes de
explicar 61% da variância total. Para representar os factores, foram mantidos
17 itens dos 38 propostos no instrumento piloto. Os itens que permaneceram
mostraram-se bastante representativos dos factores aos quais pertencem (cargas
factoriais elevadas). Os resultados obtidos permitiram-nos construir uma escala
cujas características de validade e fiabilidade são raoáveis e indicadora da
pertinência do instrumento. Pretendemos futuramente criar uma versão melhorada
com o objectivo de aumentar a consistência interna da escala.
De qualquer forma, este questionário parece-nos bastante útil para medir
valores e crenças sobre as diferentes funções da sexualidade feminina, a
gravidez, o desejo de maternidade e o aborto. Visando uma melhor compreensão
das vivências psicológicas em torno da sexualidade feminina, do fenómeno da
gravidez e das motivações para prosseguir ou interromper a mesma.
Este estudo reforça também a importância de trabalhar junto de técnicos, jovens
e população geral, valores e crenças ligados às questões da sexualidade,
maternidade, gravidez, aborto e papéis de género, onde se encontram valores
enraizados, já descontextualizados da realidade actual. Trabalhar ainda no
sentido da sexualidade ser aceite como parte integrante de todo o ciclo vital
do sujeito sob diversas formas, e as relações sexuais, como uma parte da
sexualidade, para que sejam vividas como naturais e prazerosas.