Os Dhow do Zanzibar: A técnica de construção de uma antiga embarcação de origem
árabe e o seu papel socioeconómico na actualidade
OsDhowdo Zanzibar: A técnica de construção de uma antiga embarcação de origem
árabe e o seu papel socioeconómico na actualidade
The Zanzibar dhow: The persistence of an ancient boat of Arabic origin and its
socio-economic role in the present
A construção de embarcações tem raízes muito antigas na história da humanidade.
Ao longo de milénios várias civilizações conceberam e construíram embarcações
de tipos diversos, alguns bem-sucedidos e por isso duradouros, outros menos
eficazes e por isso efémeros (Hattendorf, 2007). Os registos históricos do tipo
de barcos usados pelos comerciantes árabes no Oceano Índico e referentes ao
início da era cristã, nos séculos X a XII e, mais tarde, durante os séculos XV
e XVI, mostram um tipo base de embarcação que sobreviveu até ao século XXI
representado numa dúzia de variações. Trata-se do dhow[1], um barco de madeira
que foi adaptado para o transporte de carga, de pessoas e para a pesca (Figura
1). O dhow é uma embarcação à vela, simples ou múltipla, de reconhecida
estabilidade, robustez e velocidade (Yajima, 1977; Vosmer, 1977a; Ministry of
Information, Sultanate of Oman, 2012)[2].
A origem desta embarcação é incerta, havendo autores que atribuem influência da
construção naval chinesa vários séculos A.C. (Yajima, 1977). As referências aos
dhow na literatura ocidental são muito antigas e popularizaram-nos como as
embarcações do comércio árabe no Oceano Índico. Quando as caravelas portuguesas
da expedição de Vasco da Gama alcançaram as costas de Moçambique e Zanzibar, em
1498, as embarcações que ali encontraram eram dhow (Velho, Köpke & Paiva,
1838; Ikor, 2011). Em Zanzibar os portugueses estabeleceram uma feitoria que
perduraria cerca de 200 anos (Mattoso, 2010). Empurrados pelos barcos
portugueses, os árabes retiraram da costa leste de África e restringiram-se à
região do Golfo Pérsico. Séculos mais tarde voltariam a retomar presença
assídua na costa africana e a estabelecer-se em 1698 na ilha de Zanzibar, onde
criaram uma colónia significativamente rica e poderosa. Ali exerceram o
comércio de escravos até 1873, nesse ano proibido pela administração alemã do
então Território do Tanganica. O comércio de escravos com base em Zanzibar
continuaria durante mais alguns anos, ainda que clandestinamente (Lloyd, 1949;
Sheriff & Ferguson, 1991). Zanzibar foi um território colonial de Omã até
1858, ano em que o sultão de Mascate transferiu a sua residência para a ilha de
Zanzibar e proclamou a independência. Em 1890, durante o reinado de Ali ibn
Said, Zanzibar foi declarado um protectorado britânico. A colónia árabe em
Zanzibar ali permaneceu, sobrevivendo às convulsões políticas maiores da região
até 1963, ano em que os movimentos revolucionários e independentistas do
continente africano se expandiram até à ilha e levaram à expulsão (sangrenta)
dos omanitas. A independência da ilha foi proclamada nesse ano, pondo termo à
administração britânica do território. Em 1964, o Zanzibar uniu-se ao Tanganica
para constituírem a República Unida da Tanzânia (Triplett, 1971; Sheriff &
Ferguson, 1991; Bakari, 2001).
Os árabes omanitas saíram de Zanzibar, mas os dhow não desapareceram. Apesar
dos recentes esforços de modernização dos meios de navegação e de pesca, os
dhow permanecem as embarcações mais populares e, tal como em épocas passadas,
são de longe as embarcações mais numerosas nas águas de Zanzibar. Como entender
isto? O que explica a sobrevivência milenar deste tipo de embarcações e o seu
sucesso ainda hoje? Que futuro poderá ter?
Em 2012, observei e acompanhei a construção e o uso dos dhow na região. Visitei
em Nungwi o mais importante estaleiro da actualidade de construção de dhow
tradicionais em Zanzibar. Nungwi é uma pequena povoação situada no litoral, na
ponta norte da ilha de Zanzibar. Ali, perto do mercado de peixe e à sombra dos
coqueiros e de amendoeiras indianas, constroem-se no areal cinco ou seis dhow
por ano. Exercem a actividade de construção naval uma vintena de homens,
organizados em equipas de três ou quatro, que se aplicam na construção dos
barcos. Visitei também o estaleiro de construção naval existente no litoral de
Stone Town, que se situa num manguezal na periferia e a nordeste da cidade.
Existem ainda estaleiros ocasionais, de menor dimensão, na costa leste de
Zanzibar. Em Stone Town visitei também o principal porto de pesca e o porto de
comércio, onde se reúne um grande número dos dhow em actividade na ilha. Reuni
informação junto de carpinteiros, pescadores e mercadores. O presente artigo
regista essas observações e procura interpretar as razões da sobrevivência e
popularidade desta embarcação de origem muito remota, bem como entender a sua
importância nas actividades socioeconómicas do arquipélago.
Os dhow em Zanzibar ao longo dos séculos
Os dhow estão intimamente ligados à história do arquipélago de Zanzibar. O
papel destas embarcações nas migrações humanas para o arquipélago, nas ligações
comerciais com os povos do continente africano, da península arábica e do
subcontinente indiano, bem como nas actividades de pesca, é recordado nas peças
expostas no Museu Nacional do Zanzibar (House of Wonders) em Stone Town, a
capital do Zanzibar. Ali, no átrio central do histórico edifício, está exposta
a reconstrução de um mtepa, o modelo tradicional de dhow usado em Zanzibar no
passado, e já desaparecido, assim como diversas miniaturas de outros modelos de
dhow, ilustrando a sua importância no comércio da monção (Campbell, 1995;
Tripati & Raut, 2006) (Figura_2)[3].
O dhow tradicional, mtepa, era construído com as duas extremidades da
embarcação em ponta, a vela era quadrada, e em lugar de pregos para fixar as
pranchas do casco estas eram costuradas com corda de fibra de coqueiro ou de
couro. Este tipo tradicional da embarcação usada no Zanzibar foi uma das
variantes dos dhow dos árabes do Golfo Pérsico. As últimas embarcações de
pranchas cosidas foram testemunhadas, ainda em uso, por viajantes europeus no
início do século XX. No entanto, os dhow com pranchas pregadas surgiram logo no
século XVI por influência provável da construção naval europeia (portuguesa),
embora alguns autores afirmem poder ter sido influência chinesa (Vosmer,
1997a). A vela quadrada, ainda usada no mtepa, desde muito cedo cedera o lugar
à vela triangular, ou vela latina, noutros modelos de dhow. Esta vela
triangular era já usada no Mediterrâneo há pelo menos dois mil anos, e terá
sido introduzida no Oceano Índico pelas caravelas portuguesas, estimulando o
desenvolvimento de novos modelos de dhow (Campbell, 1995). A vela triangular
dos dhow, embora semelhante à vela latina, nem sempre é exactamente triangular,
sendo cortada na extremidade anterior e formando um trapézio, aliás com
benefício para a eficácia da navegação à vela (Campbell, 1995).
Depois do longo êxito no comércio de peixe salgado, tâmaras e madeira de
manguezal para combustível, a construção de dhow em Zanzibar floresceu durante
os séculos XVIII e XIX com o lucrativo comércio de escravos exercido pelos
árabes. Um tipo de dhow comum nessa época era a baghlah (a mula), que podia
transportar 300 escravos negros, empilhados em três níveis da embarcação. No
último quartel do século XIX, com o combate ao tráfico de escravos desenvolvido
pelos ingleses e alemães no Índico, centenas de dhow, fossem ou não
surpreendidos a transportar escravos, foram destruídos (Lloyd, 1949).
Nos finais do século XIX, o comércio de marfim e cravinho com a Índia, que até
aí era feito pelos dhow, teve que enfrentar a pressão e até o monopólio do
transporte de cravinho pelos barcos a vapor, o que contribuiu para fazer
diminuir ainda mais o número daquelas embarcações tradicionais. Apesar disso, o
comércio árabe, não controlado pela administração colonial, demonstrou grande
vitalidade e sobreviveu durante anos em virtude da maior versatilidade dos dhow
e da facilidade de carregar as mercadorias (sobretudo cravinho) em qualquer
praia, lagoa ou esteiro das ilhas do arquipélago, lugares esses não acessíveis
aos vapores. Contudo, o golpe mais forte que poderia contribuir para o
desaparecimento dos dhow ocorreu, paradoxalmente, após a independência, em
1964, com a modernização e investimento do Estado nos barcos modernos,
refugiando-se os dhowno pequeno comércio entre ilhas (Gilbert, 2004).
No final do século XIX e início do século XX em Zanzibar ainda estavam em uso
diversos tipos de dhow, incluindo o tradicional mtepa, e ainda o muti, o buti,
o mashua, e o mirsai. Os portos da ilha eram também visitados por outros tipos
de dhow provenientes do Golfo Pérsico, como o boum, o beden, a bhaglah, o
sambuk e o kotia. A análise dos registos fotográficos de Zanzibar do período
1890-1910 permite confirmar o elevado número destas embarcações ancoradas
frente a Stone Town e no porto da cidade (Roger, 2005)[4].
A diversidade dos tipos de dhow resultou do seu uso ao longo de séculos com a
natural adaptação do modelo de base da embarcação às necessidades, inovações e
gostos de cada região na bacia do Oceano Índico. Acresce que as técnicas de
construção naval dos europeus em geral, e dos portugueses em particular,
influenciaram alguns destes modelos dos dhow, como o sambouk, que tem
semelhanças com a caravela, e a ghanjah, provida de uma popa decorada e janelas
com semelhanças com o galeão (Nabataea.net, 2002; Ministry of Information,
Sultanate of Oman, 2012). Os vários modelos de dhow surgiram em locais e épocas
diferentes e foram, e são ainda, usados em regiões diferentes. Vários tipos de
dhow como a baghlah e o battil, já não são construídos e estão considerados
extintos (Vosmer, 1997a, 1997b; Nabataea.net, 2002).
A construção destas embarcações, totalmente feitas em madeira, requer materiais
e conhecimentos aplicados em várias fases, que vão desde a escolha e abate das
árvores que fornecerão a madeira até ao lançamento da embarcação ao mar e à sua
manutenção.
As madeiras usadas na construção
A construção de um dhow tradicional requer o uso de três tipos de madeira:
mogno, teca e mango. Todas têm propriedades diferentes e a sua escolha resulta
certamente dos ensaios e da experiência adquirida ao longo de muitos séculos. A
teca é usada na quilha, o mango no cavername, e o mogno nas tábuas do casco e
do chão no interior da embarcação e nos assentos.
A razão da escolha da teca e do mogno é simples: não são corrompidas
(perfuradas) pelo molusco Teredo navalis, durante séculos o terror dos
construtores de barcos em madeira[5]. O mango é uma madeira com flexibilidade e
resistência adequadas para a estrutura do cavername. Outras madeiras, por vezes
usadas em substituição destas, por exemplo pinheiro da Escandinávia importado,
conforme observei na praia junto a Stone Town, facilmente apodrecem ou abrem
fendas que enfraquecem consideravelmente a fiabilidade e a duração das
embarcações. Nos anos 90 do século passado, num esforço de protecção das
madeiras exóticas e para tentar prolongar a duração das embarcações de pesca,
foram efectuadas várias tentativas para persuadir os pescadores de Zanzibar a
substituir os tradicionais dhow por embarcações feitas em resina sintética e
fibra de vidro. Contudo, estas embarcações de fibra de vidro não resultaram e
os dhow tradicionais construídos em madeira continuam a ser preferidos e a
estar ao serviço[6].
O mogno (Swietenia spp.) não existe no Zanzibar e é hoje uma das árvores de
madeira exótica protegidas. Os construtores de dhow do Zanzibar importam os
troncos de mogno das florestas do Estado de Kerala, Índia, importação que se
depara com dificuldades crescentes e começa a limitar a construção destes
barcos. A origem do mogno para construção de dhow não é uma novidade, pois há
mais de dez séculos os árabes omanitas e iemenitas faziam já construir as suas
embarcações no litoral do sudoeste da Índia. Esta região, então designada por
Malabar, era a região de construção das embarcações árabes porque na península
arábica, embora houvesse abundância de coqueiros, não havia madeira adequada
para a construção naval nem carpinteiros experientes (Campbell, 1995; Vosmer,
1997b).
A teca (Tectona grandis) existiu com abundância em Zanzibar e ainda existem
bosques de teca no interior da ilha, em duas áreas florestais protegidas. O
crescimento das árvores de teca leva cerca de 17 anos mas uma árvore grande,
apropriada para cortar uma quilha, poderá ter 30 anos. Para construir uma
embarcação sólida é preciso escolher um tronco com uma ramificação que forme um
ângulo aberto (obtuso) apropriado para fazer numa só peça a passagem da quilha
à proa. Apesar de não levar muito tempo a crescer, o abate indiscriminado de
árvores efectuado no passado levou ao quase desaparecimento das florestas de
teca do território de Zanzibar. Hoje, além das reservas florestais que são
propriedade do Estado, há de novo exemplares destas árvores plantados na beira
de várias estradas, podendo a madeira de teca ser mais facilmente obtida para a
construção naval.
A mangueira ou árvore do mango (Mangifera indica), por se tratar de um fruto
muito apreciado, é abundantemente plantada e está disponível na ilha. Uma
mangueira pode atingir 80 ou mesmo 100 anos, mas para ser usada para a
construção naval pode ser abatida aos 30-40 anos. A escolha das árvores para
uso na construção dos barcos tem de ser cuidadosa pois para o cavername são
necessários troncos sem nós, que seriam pontos fracos. Estes cuidados na
selecção da madeira aplicam-se à madeira de mangueira e, também, à teca e ao
mogno.
Após a escolha e abate das árvores, os troncos são serrados em pranchas ou
toros. Existem várias serrações em Zanzibar, localizadas na berma das estradas
principais. As serras usadas são de fita metálica. Um tronco de mogno fornece
muitas pranchas, suficientes para construir vários dhow. O núcleo de um tronco
de teca, se as fibras de madeira e a ramificação tiverem o ângulo apropriado,
poderá fornecer a quilha, a qual requer uma viga sólida com uma secção de 20x20
cm ou mais. Pranchas para o casco, toro para a quilha e tábuas para o chão da
embarcação são transportadas em camioneta para as zonas de construção naval,
situadas na orla marítima, onde são cuidadosamente apoiadas para secar ao ar
sem empenar.
A técnica de construção do dhow na actualidade
Os dhow mais antigos construídos em Omã e Mascate tinham as duas extremidades
em bico, e foram a origem do mtepa tradicional de Zanzibar. Por influência
europeia, e talvez para poder aumentar a capacidade de transporte de carga e a
estabilidade, foi adoptada a popa quadrada, possivelmente desde o século XVI.
Hoje em dia, a totalidade dos dhow em uso em Zanzibar tem popa quadrada. Também
na actualidade, na construção dos dhow geralmente monta-se o cavername fixado à
quilha e, só depois, são pregadas as pranchas do casco (Figura_3 e Figura_4).
Contudo, no passado, o método usado era o oposto, ou seja, armava-se o casco
feito de pranchas cosidas com corda e depois colocavam-se as traves de reforço
no interior (Vosmer, 1997a, 1997b)[7].
A construção da embarcação, como hoje se faz em Zanzibar, começa pelo talhar da
quilha num tronco de teca que, se possível, tenha um ramo prolongando-o em
ângulo obtuso para daí fazer a proa, a qual é reforçada com mogno. De seguida,
as traves curvas do cavername, e que darão a forma ao casco da embarcação, são
talhadas com a enxó para encaixe e ligação à quilha. O cavername radial é
consolidado com travessas longitudinais e a simetria dos costados é controlada
em relação ao eixo longitudinal principal da embarcação. As duas primeiras
pranchas do casco, colocadas em ligação com a quilha, são determinantes para o
rigoroso assentamento e forma do casco.
Em Nungwi, usa-se estender um fio da trave da proa ao meio da trave da popa,
para materializar o eixo longitudinal da embarcação e que, assim, serve para
centrar a construção e apoiar a medição das distâncias e dos ângulos. Para a
medição dos ângulos usa-se um inclinómetro de madeira (um quadrante de círculo
com marcações dos ângulos) provido com um fio-de-prumo (Figura_5). O acervo de
ferramentas em uso na construção dos dhow é antigo e inclui além do
inclinómetro de fio-de-prumo, a verruma movida com arco para fazer as furações
destinadas às cavilhas, e a enxó com cabo longo, tal como um cabo de machado,
para desbaste da madeira (Figura_6 e Figura_7). Não há instrumentos eléctricos
no estaleiro da praia, nem tão-pouco berbequins manuais ou puas de arco.
As traves do cavername e as pranchas do casco são unidas e pregadas com
cavilhas de ferro que podem ter 10 a 25 cm de comprimento. Estas cavilhas,
feitas a partir de parafusos de ferro recuperados da sucata, são manufacturadas
em pequenas ferrarias equipadas com uma forja e operadas por três homens
(Figura_8). Um dos homens opera o fole (geralmente de êmbolos alternados) que
insufla ar para avivar a combustão do carvão de madeira, e levar o ferro ao
rubro. Os outros dois homens lidam com o aquecimento dos parafusos, retirando-
os da forja com a ajuda de um alicate ou de uma turquês e segurando-os sobre
uma bigorna, em posição para serem martelados. A bigorna é sempre improvisada a
partir de uma peça de ferro e colocada ao nível do solo, sem montagem num cepo.
Os dois homens que martelam o ferro fazem-no com cadência rápida e
alternadamente até lhe dar a forma de uma cavilha prismática e pontiaguda.
Normalmente, o parafuso de ferro inicial é então dividido em dois pedaços que
darão origem a duas cavilhas. A cavilha prismática é de novo levada ao rubro,
desta vez na extremidade mais larga, para ser dali feita a cabeça. Para isso a
cavilha ao rubro é enfiada num furo de uma chapa de ferro, mas com diâmetro
demasiado pequeno para permitir a sua passagem, permitindo martelá-la no topo.
A extremidade mais larga da cavilha fica, desta forma, gradualmente achatada e
forma uma cabeça. Estas cavilhas de ferro não são imersas de seguida em água
fria, não sendo pois forjadas, e mantêm-se como ferro macio. Esta
característica é importante, pois o ferro macio permite que se dobre sem
partir. Isso é precisamente o que é feito, sendo a ponta da cavilha, após
atravessar as peças de madeira a unir, dobrada para conferir travamento ao
conjunto.
Na aplicação da cavilha para união das pranchas do casco ao cavername, ao redor
da cavilha é enrolado um pedaço de algodão grosseiro para calafetar o buraco na
madeira e assim tornar estanque o furo. Este mesmo algodão é aplicado na
calafetagem das fendas entre as pranchas do costado. Em Dar es Salaam, na praia
perto do Mercado do Peixe, acompanhei a calafetagem de um dhow antigo e
observei que o algodão é embebido num óleo espesso e resinoso (um substituto do
pez-louro). Este algodão, grosseiro, fibroso e esbranquiçado, é obtido do fruto
da árvore-do-algodão (Ceiba pentandra)[8]. Tem a reputação de ser mais
resistente e duradouro que outras fibras vegetais empregues na calafetagem, mas
a sua escolha possivelmente deve-se à abundância no local, pois em Zanzibar são
comuns as árvores-do-algodão.
Completada a montagem e fixação do casco, as diferenças de alinhamento das
pranchas são aplanadas com a enxó para se obter um casco liso. Seguem-se os
acabamentos da popa e da proa. A popa é talhada em mogno e o leme em teca.
Concluída a ligação e consolidação destas partes, o chão e os assentos da
embarcação são feitos com as tábuas menores do mogno e fixados por encaixe e
com cavilhas de ferro. Na proa é fixada uma barra horizontal que serve para
amarrar a corda da âncora com enrolamento em oito. O acabamento do dhow é
então feito com pintura de tinta de óleo. O casco e a quilha, em mogno e teca,
devido às toxinas naturais das madeiras não permitem a fixação de animais
marinhos incrustantes e perfurantes, ou seja não precisam de tratamento anti-
fouling tal como é necessário efectuar nas embarcações modernas.
Finalmente é colocado o mastro. Para este fim geralmente usa-se um poste de
madeira de manguezal (Rhizophora spp.)[9]. A vela em pano-cru é de forma
trapezoidal, com a base menor para a frente junto à proa. A vela é armada com
base num pau de través içado obliquamente no mastro. Enfunada pelo vento, a
vela adquire uma posição semelhante à da vela latina (triangular), com a qual
se pode confundir.
O uso dos dhow em Zanzibar na actualidade
Com a destruição dos dhow em finais do século XIX para combater o tráfico de
escravos e impor o monopólio dos barcos a vapor no comércio de cravinho,
poderia supor-se que os dhow teriam sido substituídos por embarcações de outro
tipo. No entanto, na actualidade, em Zanzibar e também na costa oriental de
África os dhow continuam a ser usados em várias actividades económicas,
incluindo o transporte de carga, o transporte de passageiros e a pesca.
De acordo com um censo de embarcações efectuado na região de Nungwi, cerca do
ano 2000, existiam ali 671 embarcações artesanais de pesca, todas utilizando
vela latina, das quais 35% eram ngalawa (canoas escavadas em tronco de árvore,
comprimento 3-5 m), 59% eram dhow (comprimento 5-10 m) e 6% eram mashua (um
tipo de dhow com 8-12 m de comprimento, construído com pranchas como os dhow
mas mais longo e menos redondo, e geralmente com motor). Estes números, ainda
que variáveis nas ilhas do arquipélago, atestam a importância que os dhow
mantêm no sector da pesca artesanal (Richmond et al., 2003).
As embarcações de carga tendem a ser as maiores, levam a bordo carga e
tripulação, podendo a carga ser, por exemplo, madeira, carvão, ou caixas com
produtos de mercearia (Figura_9). No mar são operados por uma tripulação de
três a cinco homens. Durante o transporte no mar a carga, que pode atingir as
25 a 50 toneladas, é geralmente coberta com um encerado. Vi estes barcos – que
nos modelos maiores, já desaparecidos, eram chamados baghlah, em árabe, e
podiam transportar 500 toneladas – carregados com mercadoria, velejar ao largo
da Ilha de Moçambique e da Baia de Pemba, adornados pelos ventos de Sudeste e
resistindo bem ao mar.
Os dhow de passageiros ainda se usam em Zanzibar para transporte de pessoas
entre as numerosas ilhas e ilhotas existentes em redor das ilhas principais,
isto é, Zanzibar (Unguja), Pemba e Mafia. As dimensões destes dhow podem
atingir 9-10 m de comprimento e transportar 30 a 50 pessoas. Com o turismo
surgiu um pequeno nicho de mercado para estes dhow e para os mashua
motorizados, que se adaptaram para as actividades de passeios turísticos, apoio
à pesca desportiva e ao mergulho nas ilhotas e recifes de coral. No transporte
de passageiros entre Zanzibar e o continente os dhow cederam o lugar aos
modernos barcos de grande tamanho e a motor (ferry-boats). O canal de Zanzibar
tem uma largura de 40 km, e a ligação de Stone Town a Dar es Salaam por ferry
leva apenas cerca de duas horas. No entanto, ainda há alguns dhow que efectuam
transporte de mercadorias entre Stone Town, em Zanzibar, e Dar es Salaam e
Bagamoyo no continente.
Os dhow usados na pesca têm dimensões geralmente inferiores aos de carga e de
passageiros (Figura_10). Em Zanzibar a maioria dos dhow de pesca usa um motor
fora de borda e a vela vai amarrada ao longo do pau da vela colocado ao
comprimento da embarcação durante as manobras de entrada e saída do porto.
Contudo no mar, navegam à vela. Os barcos de pesca dedicam-se à faina da
sardinha e do atum com redes de cerco e redes de emalhar, e operam com 15 a 20
pescadores a bordo. Em Zanzibar a maioria dos dhow está dedicada à pesca
costeira, exercida normalmente durante a noite e retornando as embarcações ao
porto pela manhã para descarga do peixe. O principal porto de pesca da ilha é
Stone Town e ali, junto ao Mercado do Peixe onde diariamente funcionam a lota e
o mercado, estão baseados mais de uma centena de dhow.
Visitando o porto e percorrendo o litoral de Zanzibar é notório que os dhow em
uso hoje são muito menos diversificados que no início do século passado. Alguns
modelos, como a baghlah e o mtepa, extinguiram-se por terem perdido a sua
função, mas houve também uma considerável uniformização na construção. Os dhow
actuais, tal como os do passado remoto, continuam a ser construídos com madeira
de teca, mogno e mangueira, e de acordo com técnicas antigas, mas na
actualidade o modelo construído é basicamente o mesmo, variando pouco.
O conhecimento das técnicas de construção dos dhow tem sido preservado através
de uma cooperativa de artesãos da construção naval formada em Nungwi, que se
tornou assim o estaleiro principal de construção de dhow tradicionais em
Zanzibar. Estas embarcações geralmente requerem manutenção ao fim dos pri-
meiros quatro anos. Esta, se for feita a tempo e de forma cuidadosa (substituir
pranchas apodrecidas, cavilhas enferrujadas, calafetar, etc.), permite
prolongar a vida do barco, que pode alcançar cerca de 50 anos. A construção de
um dhow, sem incluir o motor, custa hoje cerca de 5000 USD no estaleiro de
Nungwi.
O lugar dos dhow na estrutura socioeconómica de Zanzibar
Zanzibar tem uma população de cerca de 1,27 milhão de habitantes. As principais
actividades económicas do arquipélago são a agricultura, a pesca e um sector de
turismo iniciado nos últimos 15-20 anos e em crescimento. Mais de 250 000
pessoas no arquipélago têm actividade directa ou indirectamente ligada ao mar
(National Bureau of Statistics, 2011a, 2011b).
Até à independência e formação da República Unida da Tanzânia, a circulação de
pessoas e comércio entre o continente e as ilhas era muito reduzida. A
introdução de ferry-boats permitindo a ligação rápida entre o continente e o
arquipélago veio dinamizar as actividades económicas. Com um crescimento médio
do PIB de 6% a 7% ao ano durante a última década, o rendimento médio anual per
capita em 2010 foi de 561 USD (duplicou numa década) e a qualidade de vida,
incluindo a alimentação da população, sofreu consideráveis melhorias. A
alimentação atingiu 2300 kcal/dia/pessoa em 2011, mas para as populações do
litoral a principal fonte de proteínas era, e continua a ser, o produto da
pesca (Richmond et al., 2003; National Bureau of Statistics, 2011b).
As estatísticas relacionadas com o mar e a pesca são muito deficientes, mas têm
sido feitos relatórios de projectos de desenvolvimento das Nações Unidas (Banco
Mundial, PNUD, UNEP, FAO) e de programas bilaterais (Alemanha, Holan-da,
Japão). Com os números disponíveis, na década de 80 descarregavam-se nos portos
da Tanzânia 32 000 toneladas de pescado por ano, das quais 12 500 t, um pouco
mais de 1/3 do total nacional, foram descarregadas nos portos do arquipélago de
Zanzibar, na quase totalidade provenientes da pesca artesanal e de capturas em
zonas de pesca muito próximas do litoral. Em Zanzibar as capturas no início da
década de 80 foram devidas ao esforço de pesca de cerca 1360 embarcações
artesanais, envolvendo 4520 pescadores (Brownell, 1982). As embarcações
modernas de pesca industrial eram apenas três e produziram 316 toneladas de
pescado no mesmo período. Em 2010, o pescado descarregado nos portos de
Zanzibar subiu para 25 600 t, ou seja, duplicou em 30 anos. O aumento das
capturas deve-se ao aumento de capturas de espécies pelágicas de mar aberto,
tais como atum, espadarte e tubarões.
O abastecimento da população de Zanzibar em pescado é feito exclusivamente pela
pesca artesanal baseada nas ilhas. A República da Tanzânia não importa pescado
e as exportações são pequenas, contribuindo apenas para 2% do PIB (National
Bureau of Statistics, 2011a). A pesca artesanal em Zanzibar envolve a
actividade de quatro tipos de embarcações, sendo a maioria delas canoas
(ngalawa e mtumbi) e, minoritariamente, embarcações maiores (dhow e mashua) que
operam redes de cerco e aparelhos de anzol geralmente lançados no mar aberto,
do lado de fora dos recifes de coral.
O esforço de pesca artesanal baseado nas ngalawa depende de águas calmas e por
isso tradicionalmente sempre incidiu na pesca em águas interiores de fundos
baixos (<10 m), até ao bordo exterior dos recifes de coral. A pesca em mar
aberto exige o uso de embarcações maiores, e cresceu um pouco nos últimos 30
anos.
As águas interiores abrigadas e os recifes de coral estão hoje sobre
explorados, e não fornecem mais do que peixes pequenos, imaturos, e escassos,
procurados para auto-subsistência da população mas insuficientes para
acompanhar o aumento de procura pela crescente população local e pelo turismo.
Para satisfazer esta procura é preciso pescar espécies pelágicas e de maior
tamanho, como o atum, o lírio e a garoupa, abundantes em mar aberto e mais
profundo (Richmond et al., 2003). Esta pesca requer outros meios como, por
exemplo, o reforço de embarcações maiores como os dhow e mashua. Contudo, a
construção destes barcos, ainda que artesanais, exige um investimento que a
maioria da população não consegue fazer.
Nas aldeias do litoral não há tradição de cooperação entre pescadores. Cada
tripulação vem ao mercado vender o peixe da captura do dia. A tripulação de
cada barco é internamente coesa e a mobilidade de pessoal entre embarcações
quase inexistente. A razão reside na falta de capital do armador da embarcação
para prover todos os meios de pesca necessários, necessitando que os pescadores
invistam as suas economias para o trabalho da equipa. Cada pescador, na medida
das suas possibilidades, faz economias para comprar partes de rede pois assim
melhora o seu quinhão dos ganhos da pesca, mas, por outro lado, fica também
fidelizado à embarcação.
Nos últimos anos formaram-se cooperativas, como por exemplo em Nungwi, para
encomendar a construção de novos dhow e para comercializar o pescado e assim
obter maior ganho com a venda. Contudo, os barcos e os pescadores na maioria
das aldeias do litoral não dispõem de frigoríficos e congeladores, nem a bordo
nem em terra, e, para evitar que o pescado se estrague têm que o vender
rapidamente, sendo afinal o preço largamente fixado pelos intermediários. Nas
ilhas mais afastadas, como Mafia e os ilhéus ao seu redor, grande parte das
capturas é adquirida por intermediários que enviam o pescado para as cidades de
Dar es Salaam e Stone Town, refrigerado em frigoríficos que lhes pertencem[10].
O aumento das capturas de pescado necessário para responder à procura crescente
do turismo, e a melhoria das condições sociais da população com actividades
ligadas ao mar dependem, pois, de investimento nos meios de pesca (embarcações,
redes, frigoríficos, etc.) e também da alteração dos procedimentos de pesca,
passando-se a pescar mais em mar aberto onde há mais recursos, e menos nos
recifes de coral onde os recursos estão depauperados. Isto implica construir
menos canoas (ngalawa) e investir mais na construção de barcos maiores (dhow e
mashua).
Uma vez mais, como várias vezes aconteceu no passado, a melhoria das condições
de vida no arquipélago parece, pois, estar ligada aos dhow.
Epílogo
Uma das razões da longevidade das embarcações árabes no Oceano Índico reside no
contínuo aperfeiçoar do modelo de base. Ao longo dos séculos, a substituição da
tamiça por pregos de ferro, a substituição da vela quadrada pela vela latina, a
alteração da vela latina para maior aproveitamento do vento, a adopção da popa
quadrada para aumento de carga e de estabilidade, foram substituições que
favoreceram o modelo de base. Muitas variantes do dhow foram construídas ao
longo dos séculos, algumas resultando da óbvia incorporação de características
copiadas de outras embarcações, como a caravela e o galeão, para satisfazer
gostos ou necessidades. Esta versatilidade de um modelo de base permitindo o
aparecimento de muitos modelos de dhow, no final, certamente contribuiu para o
aperfeiçoamento e sobrevivência de alguns que chegaram ao tempo presente.
Na actualidade em Zanzibar os dhow são construídos na praia com o uso de
ferramentas e conhecimentos muito antigos e, tal como há séculos, são
construídos com madeiras de mogno, teca e mango. As tentativas recentes de
substituir as madeiras exóticas importadas por fibra de vidro e resina
sintética falharam, e os dhow de construção tradicional são ainda a maioria das
embarcações de pesca e de ligação entre as ilhas do arquipélago. Outras
madeiras, igualmente importadas como o pinheiro da Escandinávia, têm sido
usadas na construção de dhow, sobretudo no estaleiro junto a Stone Town.
Contudo, os resultados têm sido catastróficos e as embarcações feitas com estas
madeiras de substituição por vezes não chegaram mesmo a durar seis meses.
Hoje, parece ser incerto o futuro desta embarcação milenar. Se por um lado as
técnicas e instrumentos usados na construção dos dhow podem rapidamente ser
modernizados (desenvolvimento tecnológico), por outro lado, as madeiras
exóticas tradicionais que asseguraram a robustez e o sucesso dos dhow
escasseiam (esgotamento das matérias-primas).
Em Nungwi, podem pois estar a ser construídos os últimos dhow tradicionais de
Zanzibar. Contudo, o sucesso destas embarcações e o seu lugar actual na
economia do arquipélago, bem evidenciado nas actividades de pesca artesanal e
de comércio entre as ilhas, pressionam a invenção de novas fórmulas que
permitam renovar estas embarcações milenares. Algumas receitas falharam mas nem
todas as possibilidades estarão esgotadas como, por exemplo, a plantação
intensiva das espécies de árvores necessárias. Avaliando a importância que os
dhow têm ainda hoje na economia do arquipélago, parece pouco provável que estas
embarcações saiam completamente de cena no futuro próximo e poderão,
possivelmente, sobreviver à modernização e às transformações resultantes do
desenvolvimento.