Editorial
Editorial
1. As políticas de ensino superior, em Portugal como em todos os países da
União Europeia, têm no centro da sua agenda o processo de Bolonha. A nossa
apreciação crítica desse processo assenta em duas constatações e um cenário de
fundo.
A primeira constatação é a da significativa perda de influência e de capacidade
de atracção das universidades europeias, na generalidade dos domínios
científicos mas particularmente sensível em diversos campos das ciências
experimentais, face às suas congéneres norte-americanas. No espaço de uma
geração, houve uma mudança radical nas representações sobre a qualidade
científica das universidades, com clara vantagem para as universidades da
América do Norte. A sensação que se tem é que, na Europa, as universidades
conviveram mal com a sua massificação, não encontrando um balanço positivo
entre excelência e universalização (tendencial) do acesso ao ensino superior.
A segunda constatação resulta do reforço da convicção partilhada com Sedas
Nunes e Miller Guerra, aliás seguindo uma fundamentada opinião de Emile
Durkheim, de que as universidades não se reformam por dentro . As reformas
universitárias realizadas desde que há mais de trinta anos Miller Guerra e
Sedas Nunes fizeram uma afirmação com esse sentido1 só reforçaram, para o caso
português, essa nossa profunda convicção: a universidade só se reforma a partir
de mandatos exteriores bem explícitos.
Como cenário de fundo temos as três crises da universidade apontadas por
Boaventura de Sousa Santos num texto publicado há cerca de dez anos, em Pela
Mão de Alice : uma crise de hegemonia , por deixar de ser a única instituição
no domínio do ensino superior e da produção de pesquisa; uma crise de
legitimidade, ao deixar de ser uma instituição consensual em face da
contradição entre a hierarquização dos saberes especializados e a reivindicação
da igualdade de oportunidades; e, uma crise institucional, resultante da
contradição entre a reivindicação à autonomia e as pressões crescentes do
mercado e da sua responsabilidade social .2
Apesar de todos os nossos atrasos históricos, o ensino superior é já hoje, em
Portugal, um ensino de massas, onde praticamente 40% dos jovens do grupo etário
dos 18 aos 24 anos frequenta uma instituição de ensino superior, pública ou
privada, universitária ou politécnica. Dito de outro modo, actualmente o ensino
superior é menos selectivo do que era, no início dos anos 70 do século XX, o 5º
ano dos liceus, o actual 9º ano de escolaridade, termo da obrigatoriedade
escolar legal. A questão que então emerge pode ser colocada do seguinte modo:
como promover um ensino superior de excelência em instituições de ensino
superior tendencialmente para todos?
O processo iniciado com a declaração de Bolonha pode constituir o mandato
externo necessário para uma profunda reflexão e consequentes mudanças nas
universidades europeias. Impulsionadas por esse projecto de construção de um
espaço europeu de ensino superior, a reforma universitária deve ser assumida
como parte integrante do aprofundamento do processo de construção de uma Europa
social, que seja um exemplo do respeito pelos direitos de cidadania multi e
intercultural. No caso de Portugal, esse processo deve ser, desde o seu início,
articulado com a criação e afirmação do espaço lusófono de ensino superior e,
em estreita cooperação com a Espanha, do espaço ibero-americano de ensino
superior.
O processo de Bolonha traz consigo evidentes riscos para as universidades, como
todos os processos que assentam na comparação e competição internacionais. Mas,
a questão está em saber transformar esses riscos em possibilidades de mudança,
em mandatos externos que funcionem como enzimas das necessárias reformas
educacionais e sociais endógenas. Até porque, para um país como Portugal,
situado na (semi)periferia europeia (e não apenas, nem fundamentalmente, no
sentido geográfico), não estar na primeira linha das reformas institucionais
significa obrigatoriamente o reforço dessa condição (semi)periférica. E, para a
União Europeia, significa abandonar de vez os objectivos traçados na cimeira de
Lisboa: tornar-se a economia mais competitiva do mundo, mantendo os elevados
níveis de protecção e solidariedade social próprios do Estado providência
construído com muitas lutas nas sociedades nacionais da generalidade dos seus
Estados membros.
2. O número que agora se publica, mesmo sem possuir um dossierespecífico,
apresenta um tema dominante: as políticas educativas nestes tempos que alguns
designam, não sem necessidade de um escrutínio crítico, de globalização.
No primeiro artigo, Conhecimento especializado, apoios externos e reforma
educativa na época do neoliberalismo: um enfoque no Banco Mundial e na questão
das responsabilidades morais na reforma educacional no Terceiro Mundo , Carlos
Alberto Torres apresenta um vigoroso (e fundamentado) ensaio em que discute as
implicações do conhecimento especializado nas reformas educacionais de países
do Terceiro Mundo. Centrando-se nas orientações adoptadas pelo Banco Mundial,
que submete a uma impiedosa análise crítica, o autor debruça-se sobre as
possibilidades de construir um outro quadro de cooperação e de assistência
técnica que não se sujeite às regras do positivismo ideológico e da
racionalidade instrumental, hegemónicas nas organizações internacionais de
natureza intergovernamental.
O segundo artigo, Reconfigurações do Estado e da Educação: novas instituições e
processos educativos, de Fátima Antunes, apresenta um estudo de caso, incidente
sobre o subsistema de Escolas Profissionais criado em 1989 em Portugal, onde a
autora procura sinalizar alterações recentes e propor interpretações acerca do
significado de algumas mudanças das últimas décadas, traduzidas quer por uma
redefinição dos serviços educativos (e de bem-estar) e do papel do Estado na
sua governação , quer pela emergência de novas configurações da participação da
educação na regulação social. A análise do lançamento daquela modalidade de
escolarização de nível secundário, de algumas das suas evoluções e de
orientações e práticas desenvolvidas em duas Escolas Profissionais, sugere que
aquela inovação testemunha o ensaio de novas instituições e processos
educativos envolvidos com a gestação de um outro modo de regulação - distinto
daquele que foi definido como fordista e em que teve lugar o desenvolvimento do
(s) modelo(s) de Estado de Bem-estar .
No terceiro artigo, Contributos para o debate teórico sobre o desenvolvimento
local: Um ensaio baseado em experiências investigativas, António Fragoso tem
como intenção principal apresentar uma discussão acerca de oito pontos
distintos sobre o desenvolvimento local. Embora esses pontos não abordem
aquelas que são as características básicas do desenvolvimento local, a intenção
do autor é basear-se na sua experiência de investigação e realçar as questões
que acha mais importantes, desenvolvendo uma argumentação sobre algumas linhas
de orientação exploratórias e, ainda, apontando algumas direcções para futuras
linhas de investigação neste campo.
O quarto artigo, A narratividade educativa na 1.ª fase da governação de
Oliveira Salazar. A voz das mulheres na Assembleia Nacional portuguesa (1935-
1945) , de Áurea Adão e Maria José Remédios, pretende divulgar o trabalho
desenvolvido no âmbito do projecto Mulheres, educação, poder(es), em curso no
âmbito da UID Observatório de Políticas de Educação e de Contextos Educativos
da Universidade Lusófona, cujo objectivo principal é trabalhar fontes
primárias, como contributo para a escrita da História da Educação das Mulheres
no Portugal contemporâneo. Tendo em atenção as intervenções das mulheres
deputadas durante três legislaturas (1935-1945), as autores propõem-se
enquadrar a participação feminina no espaço político, estudando os seus
discursos, em função da categoria de género, no contexto da política educativa
de Oliveira Salazar, entre 1935 e 1947, que corresponde à formação e
consolidação duma escola nacionalista, tendo por fim preparar os novos homens e
as novas mulheres que irão servir a sociedade portuguesa, sustentada em três
pilares - Deus, Pátria e Família.
O quinto artigo, Os missionários da educação e o Instituto Ponte Nova da Bahia
, de Ester Fraga Villas-Bôas Carvalho do Nascimento, aborda a acção dos
missionários da Missão Central do Brasil, vinculados à Igreja Presbiteriana do
Norte dos Estados Unidos (PCUSA), que, entre 1871 e 1971, a partir da Bahia,
organizaram igrejas, escolas e hospitais em sua área de jurisdição - Sergipe,
Mato Grosso, Goiás e norte de Minas Gerais. Segundo a autora, o Instituto Ponte
Nova foi fundado pela Missão em 1906, a qual organizou e subsidiou até 1971,
além da escola, uma igreja e uma escola de auxiliar de enfermagem, a primeira
escola do gênero na Bahia, ao lado do Grace Memorial Hospital . O sucesso
daquele complexo institucional, organizado distintamente do modelo do Mackenzie
College, de São Paulo, integrando religião, educação e saúde, levou a Missão a
organizar um projeto denominado Escolas Ponte Nova, cuja memória é resgatada
neste artigo pela autora.
No sexto artigo, Compreender, Agir, Mudar, Incluir. Da investigação-acção è
educação inclusiva, Isabel Sanches apresenta uma reflexão sobre um paradigma de
investigação, considerado por alguns menos nobre, e a sua oportuna e
necessária aplicação no processo de construção de uma educação inclusiva. A
autora parte de uma breve fundamentação teórica sobre a investigação-acção como
estratégia de actuação que pode desencadear profissionais mais reflexivos, mais
intervenientes nos contextos em que se inserem e desencadeadores de práticas
pertinentes, oportunas e adaptadas às situações com as quais trabalham, para
chegar à explicitação de um modelo de actuação que usa a investigação-acção em
práticas de educação inclusiva.
O sexto artigo, Profissionais da educação e sua formação para atuação na
educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental , de Rosana Peixoto
Gonçalves, resulta de uma pesquisa realizada na Universidade Lusófona
conducente à obtenção do grau de mestrado. No artigo, a autora procede a uma
análise da situação (e das contradições) da formação de profissionais para a
Educação Infantil no Brasil, terminando por defender que o desafio da
qualidade apresenta-se como uma dimensão maior, pelo que se torna urgente que
maneiras regulares de formação e especialização, bem como mecanismos de
atualização dos profissionais, sejam assegurados e que essa formação seja
orientada pelos pressupostos e diretrizes expressos em políticas de Educação
Infantil atuais, significativas e contextuais.
O sétimo artigo, Entre a continuidade e a inovação. O ensino superior de
Enfermagem e as práticas pedagógicas dos professores de Enfermagem , de Fátima
Marques, resulta igualmente de uma pesquisa realizada no âmbito do mestrado em
Ciências da Educação da Universidade Lusófona, numa das suas linhas de
interface mais ricas e produtivas, ligando Educação e Enfermagem. A pesquisa de
Fátima Marques teve como objectivo identificar e caracterizar que mudanças a
integração do ensino de enfermagem no ensino superior politécnico desencadeou
nas práticas pedagógicas dos docentes de enfermagem. Os resultados evidenciaram
um discurso dicotómico polarizado à volta de duas ideias essenciais: o papel do
estudante e a concepção de enfermagem subjacente à formação. Uma das posições
defendia a inovação, com o estudante como actor da sua formação e com uma
concepção de enfermagem centrada na pessoa; enquanto outra, defendia a
continuidade no papel passivo do estudante e na concepção de enfermagem
centrada na doença. Esta bipolaridade de pareceres sugere algumas situações
dilemáticas que emergem na prática pedagógica dos docentes como uma escolha
difícil entre o que querem e o que fazem.
No oitavo e último dos artigos, Emancipação, ruptura e inovação: o focus
group como instrumento de investigação , Carla Galego e Alberto A. Gomes
procuram clarificar e reflectir sobre a génese e a natureza do focus group e
sobre sua aplicabilidade no campo investigativo das Ciências Sociais e em
particular da Sociologia. Os autores optam por uma descrição do focus group,
ou seja, dos aspectos históricos da sua concepção e da sua aplicabilidade
inicial, para, a seguir, realizarem uma reflexão sobre a sua inserção no quadro
das metodologias investigativas considerando as relações que se estabelecem
entre investigador e investigados. Neste sentido, cabe identificar se essa
alternativa pode ser considerada uma técnica ao serviço da investigação ou se,
por outro lado, ultrapassa esse limite e pode ser classificada como um método
de investigação. Por fim, apresentam uma reflexão acerca de sua
operacionalização no quadro das Ciências Sociais, tendo em vista a opção por
uma abordagem qualitativa dos fenómenos sociais.
A secção Documentos apresenta a Declaração de Fortaleza sobre a criação do
Espaço de Ensino Superior de Língua Portuguesa , seguida de um comentário de um
académico particularmente bem situado para o fazer: Fernando Santos Neves,
reitor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, que, no XII
Encontro das Universidades de Língua Portuguesa, realizado em Luanda em Maio de
2002, foi o precursor dessa proposta, dois anos mais tarde assumida pelos
governos dos países de língua portuguesa. Nesse comentário, com o pioneirismo e
o desassombro que o caracterizam, Fernando Santos Neves avança uma nova e
complementar proposta: que todos os países do espaço lusófono se associem,
desde já, ao espaço europeu de ensino superior, aliás à semelhança do que já
fizeram países tão significativos na cena mundial como a China e a Rússia.
Na Recensão Temática, Amélia Pereira, estudante de mestrado da Universidade
Lusófona, faz uma revisão bibliográfica de três obras de autores portugueses
sobre a temática da (in)disciplina na escola:Relação Pedagógica, Disciplina e
Indisciplina na Sala de Aula , de Maria Teresa Estrela (1992); Indisciplina na
sala de aula, de Ana Carita e Graça Fernandes (1997); e, Indisciplina e
Violência na Escola - Compreender para prevenir, de J. Amado e I. Freire
(2002).
A secção Recensão Crítica apresenta três olhares de estudantes de Ciências da
Educação, duas de Licenciatura e uma de Mestrado, sobre três obras que
trabalharam nos respectivos cursos na Universidade Lusófona. O primeiro olhar é
de uma jovem estudante de Cabo Verde, sobre a clássica obra de Paulo Freire, A
Pedagogia do Oprimido (1.ª ed., 1970); o segundo, é o de uma professora do
ensino básico portuguesa fazendo o mestrado, sobre o livro de Saul Neves de
Jesus, Motivação e formação de professores (2000); o terceiro, é também de uma
jovem estudante, mas desta vez de Angola, que analisa o livro-denúncia de Zoran
Roca, As Crianças de Rua em Angola. Um Estudo das Necessidades e dos
Potenciais para a Introdução do Ensino Básico Informal(2000).
Na secção Notícias apresenta-se o relatório final do projecto de investigação
Construindo a profissão docente no ensino secundário (1947-1974. Formação,
percursos, identidades , que teve como investigador responsável António Teodoro
e decorreu com um financiamento da FCT (Programa POCTI) entre 2000 e 2004. Dá-
se igualmente a conhecer o projecto de intervenção Cultura de Paz , iniciado em
Recife, Pernambuco, sob a coordenação de Vicente Celestino França, com o apoio
da UID Observatório de Políticas de Educação e de Contextos Educativos, bem
como se regista a participação científica de membros da UID em congressos e
seminários no segundo semestre de 2004.
Por último, em Dissertações, apresentam-se os resumos das dissertações de
mestrados defendidas entre Julho e Dezembro de 2004 no âmbito do mestrado em
Ciências da Educação da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, e
termina-se com o recapitular dos sumários dos quatro primeiros números da
Revista.
Lisboa, Fevereiro de 2005
António Teodoro
Notas
1A afirmação rigorosa dos autores é a seguinte: Somos assim levados a concluir
que a autonomia não pode ser considerada como o adequado ponto de partida - ou
a alavanca - de uma autêntica reforma estrutural do sistema universitário,
nomeadamente no nosso país. Por outras palavras: não cremos que a necessária
reforma da Universidade seja viável enquanto auto-reforma (J. P. Miller Guerra
& A. Sedas Nunes, A crise da Universidade em Portugal: reflexões e
sugestões. In A. S. Nunes, org., O problema político da Universidade,
Publicações Dom Quixote, Lisboa,1970).
2 Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice. O social e o político na pós-
modernidade. Porto, Edições Afrontamento, 1994. Ver capítulo 8, Da
universidade de ideias à ideia de universidade, pp. 163-201.
Revista Lusófona de Educação
Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeiEF)
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