Perda Irreparável
Perda Irreparável
Meu caro Stoer,
Não sei por que mefistofélica ou divina coincidência, eu estava no mesmo ponto
da rodovia entre Uberaba e São Paulo e exactamente no mesmo sentido, em que
ouvi, pela primeira vez, o maravilhoso CD que você me presenteara, quando tive
a notícia do seu falecimento. Quedei-me tão transtornado que o silêncio foi tão
forte que doeu em meus ouvidos.
Abriu-se-me, então, espaço para saudosas rememorações: sua elegante e esguia
figura que me lembrava sempre Clint Eastwood, no melhor de suas
performancescavalheirescas; sua gentileza, compartilhada com Fernanda e David,
em me receber em sua casa, oferecer-me um almoço inesquecível, presentearem-me
com um maravilhoso livro sobre António Nobre, levar-me até à pedra em que este
gigantesco poeta lusitano teve um poema eternizado e ainda conduzir-me, em sua
"carrinha", do Porto até Braga.
Destes felizes incidentes tenho fotos. Não que fosse apagá-los do registro
indelével de nossa memória, mas eu não queria que outros deixassem de usufruir
o que considero, para mim, momentos de mágico privilégio.
Estimado Steve, Stephen ou Stoer - talvez, Estêvão, já que você, na sua
aventurosa trajetória de vida, teve tantas (merecidas) cidadanias -,
recordo-me bem do dia em que fui apresentado a você, embora o conhecesse antes,
pelos brilhantes textos: aquele homem alto, com um andar de cowboy, que trazia
na fisionomia um sorriso gentil, quase infantil, que destoava da possível
sugestão de dureza. Não vou me esquecer da primeira impressão. Não me
esquecerei tampouco da solenidade de homenagem a Luiza Cortesão, realizada em
Los Angeles, quando você colocou todo seu talento a serviço da reconstituição
da trajetória de uma de suas mais importantes companhias intelectuais, com a
qual você trilhara tantos conceitos pedagógicos, sem cair nos encómios
gratuitos, próprios das amizades incondicionais. Nem me esquecerei também, meu
caro Steve, da discussão que mantivemos no Seminário Internacional promovido
pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), em São Paulo. A elegância de suas
contestações a algumas das ideias que defendíamos levou-nos a rever várias
delas. Afinal, a tranquilidade de suas posições não deixou de provocar minha
admiração de aprendiz. Ao término da sessão de que participámos, caminhámos,
com você, pelas ruas movimentadas desta megalópolis latino-americana, em
direção ao hotel em que você se hospedara, sorvendo mais um pouco de sua doce
sabedoria, compreendendo um pouco mais como podemos ser firmes em nossas
concepções, sem jamais perder a ternura.
Sabe Steve? Como membro do Conselho Universitário da UNINOVE, tive de relatar
um processo da área de saúde, cujo objecto era a doença celíaca. Somente a
partir dos estudos que realizei para elaborar o parecer no processo é que pude
aquilatar a dimensão de sua luta contra a ingestão de glúten, que pode estar
escondido no mais prosaico molho de Ketchup. Mas, caríssimo Steve, nem você nem
nós, seus amigos, podíamos suspeitar que lhe espreitava uma ameaça mais grave,
que você seria, mais uma vez, surpreendido por um destino inexorável, ou, como
diria Marx, pelas circunstâncias. De facto, somos sujeitos de nossos próprios
projectos de vida... Contudo, sempre dentro das circunstâncias. Algumas delas,
porém, por mais conscientizadas que estejam em nosso processo de decisão, são
tão poderosas que não adianta construir os diques, com nossa virtù, para conter
as trapaças da fortuna, como dizia Maquiavel. Como o César Bórgia do escritor
florentino, você tombou diante da força gigantesca da fortuna, que agiu por
meio de um instrumento avassalador. Por mais que você lutasse - e como
lutou, como pude testemunhar no último encontro que tivemos, no lançamento de
seu livro e de Magalhães, na Universidade do Porto - o infortúnio era
mais forte que qualquer força humana. Diferentemente de quando você, Fernanda e
David superaram juntos a tragédia que atingiu este último, esgotaram-se,
certamente, as forças que você reuniu para que o filho de sua companheira
recuperasse o sentido da vida, por mais que isto significasse abandonar um
projecto de uma perspectiva de uma terceira idade tranquila.
Querido Steve - e penso que posso chamá-lo assim, já que não o teremos
mais entre nós e o querer tê-lo torna-o muito querido entre nós -, onde
quer que você esteja, saiba que muito me honrou prefaciar um livro seu e de seu
outro parceiro intelectual, António M. Magalhães... Saiba que esta minha
participação em sua obra foi uma das que mais enriqueceram meu curriculum,
especialmente pelo que aprendi com a leitura cuidadosa que tive de fazer de sua
obra. O debate que tivéramos, em Lisboa, sobre temas correlatos, ao lado de
António Teodoro, Michel Wiewiorka e do próprio António Magalhães, convenceu-me
de que, dos países de tradição imperial, nem sempre vêm os conquistadores, mas,
muitas vezes, esforçados aliados da descolonização epistemológica. As matrizes
analíticas que você e Magalhães me emprestaram abriram-me os olhos para os loci
da enunciação, fazendo-me superar a resistência dura que eu já manifestara a
Mário Soares, no mesmo palco de debates da Universidade Lusófona de Humanidades
e Tecnologias, em Lisboa.
Estimadíssimo Steve - retomo aqui o modo carinhoso com que você me
tratava nos e-mails, em que combinávamos, entusiasmados, a edição brasileira de
seu livro e de Magalhães -, sei que não poderemos mais contar com sua
talentosa contribuição para os desafios teóricos que temos pela frente, mas
tenho a certeza de que ao levantarmos a pedra" dos parágrafos densos de
seus textos, encontraremos debaixo, as pistas das alternativas para nossas
perplexidades.
Por tudo isso, muito obrigado.
São Paulo, 5 de janeiro de 2006.
José Eustáquio Romão
Revista Lusófona de Educação
Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeiEF)
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