A construção da escola democrática. Uma reflexão com base em Jacques Delors et
al., Licínio Lima e Jaume Carbonell Sebarroja
A construção da escola democrática. Uma reflexão com base em Jacques Delors et
al., Licínio Lima e Jaume Carbonell Sebarroja
Arlinda Cabral
*
Delors, J. et al. (1996). Educação - Um tesouro a descobrir. Porto: Edições
ASA.
Lima, L. (2000). Organização escolar e democracia radical: Paulo Freire e a
governação democrática da escola pública. São Paulo: Cortez Editora.
Carbonell Sebarroja, J. (2001). A aventura de inovar. A mudança na escola.
Porto: Porto Editora.
A procura da construção da escola democrática apresenta-se como um tema
pertinente na medida em que se fundamenta na possibilidade da concretização de
uma instância educativa que favoreça e oriente para o desenvolvimento da pessoa
em toda a sua plenitude, contemplando a aquisição, a compreensão, a
operacionalização e o desenvolvimento dos conhecimentos necessários para estar
apto a acompanhar o actual «mundo em mudança» (Delors et al., 1996, p. 77) e de
forma a tornar-se um actor social enquanto construtor e produtor de mudanças
que contribuam para a alteração da realidade social na qual se insere. Contudo,
devido à complexidade do que é esperado da educação, as incertezas sobre como
procurar construir a escola democrática estão presentes, sendo por esse motivo
necessário enfrentar as dificuldades e encará-las como desafios que poderão
contribuir para uma construção colectiva que se espera positiva.
A presente reflexão, tendo como referência as três obras supra referenciadas,
tem o intuito de afirmar a necessidade de concretização da escola democrática
com base numa educação crítica que tenha como pressupostos a participação
activa, a discussão e o diálogo, assente no princípio «aprender a democracia
pela prática da participação» (Lima, 2000, p. 34), o que implica sujeitos
capazes de preconizar transformações sociais e com competência para a
realização de projectos comuns, alcançada através da percepção da
interdependência e da procura permanente da compreensão do outro, e sujeitos
capazes de, segundo Jaume Carbonell Sebarroja (2001), na esteira do pensamento
de John Dewey, compreender a democracia como, acima de tudo, «uma forma de vida
e um processo permanente de libertação da inteligência e não um regime de
governo» (p. 105).
Numa perspectiva individual, para a educação de sujeitos capazes de produzir
pensamento crítico e agir após reflectir, o que se traduz na educação na e para
a democracia, é conveniente atender ao pensamento de Delors et al. (1996),
presente na obra Educação – Um tesouro a descobrir, mais concretamente no
capítulo 4, «Os quatro pilares da educação», onde se defende que, perante as
actuais exigências sociais, a educação deve organizar-se em torno de quatro
aprendizagens fundamentais e estruturantes: (i) aprender a conhecer, que
consiste em adquirir os instrumentos da compreensão, sendo simultaneamente um
meio para aprender a compreender o mundo e uma finalidade enquanto prazer de
compreender, conhecer, descobrir, despertar da curiosidade intelectual e
estímulo do sentido crítico, faculdades que permitem compreender o real
mediante o desenvolvimento «de autonomia na capacidade de discernir» (p. 78);
(ii) aprender a fazer, indissociável do aprender a aprender, que tem como
finalidade a preparação para agir sobre a realidade envolvente, caracterizando-
se actualmente pela noção de competência pessoal, a qual inclui o saber, o
saber fazer e o saber ser, e pela aptidão para as relações interpessoais, sendo
exigências o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipa e o
desenvolvimento de projectos e a capacidade de iniciativa, de comunicar e de
gerir e resolver conflitos, na prossecução do «compromisso pessoal do
trabalhador considerado como um agente de mudança» (p. 81); (iii) aprender a
viver em comum, que visa a participação e a cooperação em todas as actividades
humanas, caracterizando-se por um dos maiores desafios da educação, na medida
em que tem como princípio conceber uma educação que permita evitar conflitos ou
resolvê-los de maneira pacífica, perante a tendência para «a prioridade ao
espírito de competição e sucesso individual» (p. 84), o que implica a
necessidade de o contacto interpessoal se concretizar num contexto igualitário
e a existência de objectivos e projectos comuns para que «os preconceitos e
hostilidades po[ssam]desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais serena» (p.
84), através do respeito mútuo como consequência da descoberta progressiva do
outro, após a descoberta de si próprio, levando à valorização do que é comum e
consequentemente transformando «tensões em solidariedade através da experiência
e do prazer do esforço comum» (p. 85); e (iv) aprender a ser, que integra as
três aprendizagens precedentes, defendendo que a educação deve contribuir para
o desenvolvimento total da pessoa, concretizado através da capacidade de
elaboração de pensamentos autónomos e críticos e da formulação de juízos de
valor, de modo que seja possível «descobrir por si mesmo como agir nas
diferentes circunstâncias da vida» (p. 86) com base em linhas orientadoras
intelectuais que permitam conhecer a realidade de forma a assumir
responsabilidade e ser interveniente de forma responsável e justa, apostando
num desenvolvimento que tem por objectivo a realização completa do homem, quer
enquanto «indivíduo, membro de uma família e de uma colectividade, cidadão e
produtor, inventor de técnicas e criador de sonhos» (p. 87).
De acordo com Delors et al. (1996), a percepção da interdependência e a
compreensão do outro permitem a realização de projectos comuns e a preparação
para gerir conflitos no respeito pelos valores do «pluralismo, compreensão
mútua e paz» (p. 88), sendo «o confronto através do diálogo e da troca de razão
um dos instrumentos indispensáveis à educação do século XXI» (p. 85). Desta
forma, é necessário aprender a ser para melhor desenvolver a personalidade e
estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia,
discernimento e responsabilidade pessoal, sendo de realçar que «importa
conceber a educação como um todo» (p. 88) para que todo e qualquer
interveniente se assuma como responsável e sujeito activo na procura da
construção de um mundo mais democrático.
No intuito de fazer a ligação entre o plano individual e o plano colectivo, é
de referir que, segundo Lima (2000), na obra Organização escolar e democracia
radical: Paulo Freire e a governação democrática da escola pública, a escola
democrática é uma «construção […] jamais terminada» (p. 50) e somente
edificável em «co-construção» (p. 42), justificando-se, desta forma, a
necessidade de sujeitos críticos e reflexivos que na prática persigam
transformações sociais. Na visão deste autor, a escola deve promover uma
educação para a decisão e para a responsabilidade social na procura de sujeitos
que «se tornem presenças marcantes no mundo» (Freire, 1997, citado por Lima,
2000, p. 87). Assim, a escola democrática deve ter por base a «reinvenção
participativa e autónoma da escola» (Lima, 2000, p. 87) para que seja possível
a construção de uma realidade social e histórica com base na ética pedagógica
definida como tendo por pressupostos a humildade, o bom senso, a tolerância, a
rigorosidade, a curiosidade e a criticidade, aliados à acção enquanto
concretização desses pressupostos.
Numa perspectiva mais abrangente, recorrendo ao pensamento de Lima (2000), a
construção da escola democrática tem de assentar numa pedagogia democrática,
numa prática dialógica e na procura de uma governação democrática que possam
influir na sua própria reconstrução e recriação, o que só se torna
concretizável através de processos democráticos traduzidos em «tomadas de
decisão livres, conscientes e responsáveis» (p. 82). Desta forma, os princípios
básicos para a concretização da democracia da escola identificados por Lima
(2000) - participação e descentralização - implicam autonomia num contexto de
democracia participativa.
Referindo-me particularmente ao capítulo 2 da obra, «Democratização da escola,
participação comunitária e cidadania crítica», é de referir o facto de a escola
ser considerada uma «estrutura democratizante» (p. 39), enquanto espaço público
que se quer de decisão crítica, participação e cidadania democráticas,
concretizada através da «prática dialógica» (Freire, 1989, citado por Lima,
2000), com base na real participação dos pais, dos professores e da comunidade
na vida das escolas, na medida em que «só se decidindo se aprende a decidir e
só pela decisão se alcança a autonomia» (Freire, 1991, citado por Lima, 2000).
Segundo Lima (2000), a escola democrática deve enfrentar o risco de se abrir à
participação comunitária para concretizar o exercício da cidadania crítica,
visto que a construção da escola democrática só é edificável em co-construção,
assumindo-se contra a centralização das tomadas de decisão em prol de promover
o seu potencial de intervenção social e cívico, o que implica compreender que
para se concretizar a democracia é necessário redescobrir e partilhar,
desenvolver e transferir o poder. Desta forma, só é possível democratizar a
escola se se entender a democracia na escola enquanto uma «invenção social»
(Freire, 1994, citado por Lima, 2000), o que se traduz numa construção
colectiva caracterizada por um amplo processo participativo nas decisões e
acções. Na esteira do pensamento de Paulo Freire, Lima (2000) refere que «só se
muda a escola com a participação de todos» (p. 44), o que demonstra que o
conceito de co-responsabilização está enraizado na procura da construção de uma
escola democrática, traduzido na ideia de «ensinar e aprender a decidir através
da prática de decisões» (p. 91), com base na redistribuição de poderes de
decisão, a par de uma «estruturação democrática de regras e relações sociais de
interdependência e de diálogo» (p. 101).
Tendo presente que a existência de objectivos confere à educação o seu carácter
directivo, de forma que seja «uma forma de intervenção no mundo» (Freire, 1996,
citado por Lima, 2000), é de referir que a escola democrática deve ter como
objectivo a democracia enquanto prática de cidadania, de autonomia e de
participação activa, utilizando como métodos a discussão, o diálogo e a co-
responsabilização. Desta forma, a construção da escola democrática tem como um
dos princípios fundamentais a democracia participativa, o que traduz o respeito
e a crença em cada sujeito considerado como igual, com igual capacidade crítica
e com igual possibilidade de transformar a realidade em benefício de todos.
De acordo com Carbonell Sebarroja (2001), na obra A aventura de inovar. A
mudança na escola, a democracia só se pode lograr através da educação, com base
na razão, no método científico e na constante reorganização e reconstrução da
experiência. Desta forma, partindo do princípio enunciado por este autor de que
a democracia e a educação são inseparáveis e influenciam-se mutuamente, é
defendido que a educação ganha em intensidade quanto maior for a presença da
ética democrática na educação e na medida em que quanto mais públicas e
democráticas forem as escolas, mais sólida e profunda é a democracia social.
Segundo Carbonell Sebarroja (2001), uma escola realmente democrática entende a
participação como a possibilidade de pensar, de tomar a palavra em igualdade de
condições, de gerar o diálogo e acordos, de respeitar o direito das pessoas de
intervir na tomada de decisões que afectam a sua vida e de comprometer-se na
acção. Assim, o ideal de escola democrática circunscreve-se, desta forma, a uma
maior atenção aos interesses e às necessidades dos alunos, a um incremento das
interacções e à criação de um clima de aula mais acolhedor para a aprendizagem,
projectando-se e comprometendo-se com a comunidade e procurando combater as
desigualdades sociais e as suas causas e gerando novas oportunidades educativas
para toda a população.
Perante a questão «Como se concretiza o ideal democrático da educação para
tornar cada vez mais pública a escola pública?» (p. 106), Carbonell Sebarroja
(2001) apresenta alguns significados e características da escola democrática:
(i) a democracia só se concretiza mediante o equilíbrio entre a liberdade e a
igualdade; (ii) a democracia é em simultâneo um direito e um dever, um desejo e
uma necessidade, que nos ajuda tanto a defender uma causa justa como a
modificar uma relação que não nos satisfaz; (iii) a democracia não é uma porta
aberta à tolerância e ao relativismo, mas um acesso que conduz ao respeito
crítico e activo; (iv) a democracia favorece a autonomia baseada no diálogo e
na colaboração e não no individualismo e no isolamento; (v) a democracia tem de
ser eficaz, isto é, obter a máxima eficiência ao serviço da comunidade e
capacitar as pessoas para que possam participar com ideias e argumentos no
debate e na tomada de decisão. Contudo, segundo o autor, a escola pública
actual está bastante distante do ideal democrático, visto que «a escola é um
reflexo mais ou menos fiel da sociedade na qual se insere, com problemas, com
tensões, contradições, solidariedades e possibilidades» (p. 107).
Em relação ao «défice democrático na escola pública», Carbonelll Sebarroja
(2001, p. 108) refere que é igualmente certo que hoje em dia a escola é um dos
espaços públicos privilegiados para levar a cabo o ideal democrático, na medida
em que é um dos poucos espaços onde é possível construir comunidades
democráticas que sirvam de referente e estímulo a outras instituições
educativas e que influenciam directamente a dinâmica geral da sociedade.
No que respeita aos paradoxos que dificultam o processo democratizador e
inovador, é referido por este autor que existem «espaços e oportunidades» (p.
109) que podem abrir-se nas escolas para a educação democrática enquanto
espaços de participação, deliberação e acção cooperativa. A título de exemplo o
autor refere: (i) «o debate, a opinião e a aprendizagem da argumentação» (Paulo
Freire, 1969, citado por Carbonell Sebarroja, 2001, p. 110), partindo do
entendimento de Paulo Freire de que a análise da realidade e a sua problemática
não podem iludir a discussão criadora e constante que, mediante a escuta, a
pergunta e a investigação, nos levam a procurar, desvendar e a dizer a verdade
(Educação como prática da liberdade), na procura da concretização de uma
educação com base no binómio indissociável liberdade e responsabilidade; (ii) a
assembleia como referente da coesão democrática, com base na pedagogia de
Celestin Freinet, em que a assembleia é colocada como um espaço privilegiado
para a prática da democracia, pois caracteriza-se por ser uma experiência
democrática que se inicia no «diálogo enquanto participação igualitária e
respeitosa» (p. 112); (iii) a liderança democrática da direcção escolar,
centrando-se sobretudo em procurar construir um clima adequado para a
comunicação e a participação democráticas, a elaboração, revisão e aplicação do
projecto educativo, o desenvolvimento de inovações educativas e a relação e
colaboração de mães e pais e comunidade (p. 113).
O autor refere igualmente a necessidade de espaços conjuntos de colaboração da
cidadania com a escola, chamando a atenção para propostas e experiências
integradas em projectos inovadores e com um certo grau de coerência e
organização que têm sido desenvolvidos: (i) os círculos de cultura e os
conselhos escolares, impulsionados por Paulo Freire enquanto Secretário de
Educação do Estado de São Paulo, que se traduziam em «aulas urbanas em que o
diálogo e o debate substituíam a aula tradicional» (p. 115), convertendo-se num
instrumento autónomo e não meramente deliberativo das classes populares para
intervir na construção de uma escola diferente; (ii) as comunidades de
aprendizagem, inspiradas no modelo das escolas aceleradas, tendo por objectivo
concretizar uma educação integradora, permanente e fortemente participativa,
reclamando a colaboração dos pais e mães e outros elementos da comunidade para
discutirem entre todos «a escola sonhada» (p. 115) e, a partir dessa
descoberta-construção conjunta, estabelecer prioridades e iniciativas; (iii) o
«orçamento participativo» (p. 116), que funciona há alguns anos na cidade de
Porto Alegre e supõe um ambicioso projecto de descentralização educativa e
mobilização popular para que a cidadania discuta e faça propostas acerca da
distribuição do dinheiro público destinado ao ensino, fixando prioridades,
afectando a construção e manutenção dos estabelecimentos, a qualidade do
ensino, os projectos de inovação educativa e o modelo de escola que se vai
pensando continuadamente; (iv) a «cidade educadora» (p. 117), que procura
responder ao desafio de conseguir a transferência e o uso da cultura escolar
para o quotidiano e em simultâneo a incorporação das vivências e da cultura do
meio na escola, o que se traduz na procura da incorporação de forma coerente,
no processo de ensino-aprendizagem, da riqueza da chamada «educação sistémica e
extra-escolar» (p. 117), cada vez mais influente e de carácter mais disperso e
vivencial, e da educação formal ou escolar, mais influente mas mais ampla,
sistemática e segura, procurando articular adequadamente as qualidades
positivas de uma e outra modalidade educativa.
Em conclusão, as três obras atrás referidas e que serviram de base para a
construção da presente reflexão, referem que a democracia na escola tem de
contar com a participação de todos, desde o momento da organização até à tomada
de decisões, o que, no pensamento de Paulo Freire (1997, citado por Lima,
2000), se traduz na «teoria crítica e garantia de democracia» (p. 15) ou na
«teoria da participação democrática radical» (p. 33). No entanto, o compromisso
da comunidade tem de se traduzir na reivindicação da participação de
professores, família, comunidade, poder central e poder local e de todos os
intervenientes no processo educativo não enquanto tais mas como cidadãos e
cidadãs, tendo presente que «a escola pública não é do Estado, nem dos
professores, nem dos pais, mas sim da comunidade, que tem o direito de
participar na escola e de intervir no controlo do serviço público de ensino»
(Carbonell Sebarroja, 2001, p. 114). Desta forma, para que a escola seja
democrática é necessário que pratique democracia num contexto democrático,
mediante a sua afirmação e actualização continuadas, de modo a permitir a sua
real concretização, e que, simultaneamente, se reforce, com base na
distribuição e redistribuição de poderes, o que pressupõe o reconhecimento da
igualdade e saber trabalhar em projecto o que implica a cooperação, o respeito
mútuo e a participação colectiva no intuito de se manter permanentemente na
busca e contribuindo para a construção inacabável de uma sociedade mais
democrática.
*
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