Qual pós-positivismo?
Qual pós-positivismo?
Filipe Canas da Silva* e L. G. Freire**
*canas.filipe@gmail.com
**lgfreire@gmail.com
José Pedro Teixeira Fernandes afirma que a disciplina das Relações
Internacionais é hoje dominada por uma «nova ortodoxia» resultante da viragem
pós-moderna que ocorreu no final dos anos de 1980
1
. Essa situação foi, segundo o autor, motivada por processos exteriores à
disciplina, nomeadamente a popularização de abordagens pós-positivistas noutros
campos, o que motivou uma transformação radical na forma de se estudar a
política internacional. Teixeira Fernandes vê esta viragem como algo
extremamente negativo para a produção académica nas Relações Internacionais.
Esta mudança preocupa Teixeira Fernandes, que termina o seu artigo com uma
declaração de missão para toda a disciplina. De acordo com o próprio, a
desconstrução da ortodoxia pós-moderna «é a principal tarefa com que se
confronta a Teoria das Relações Internacionais no início do século XXI»
2
.
Não podíamos deixar de elaborar este comentário, dado entendermos que Teixeira
Fernandes faz uma leitura incorrecta do que é o pós-positivismo, confundindo-
o com pós-modernismo e multiculturalismo, conceitos que, embora relacionados,
não se sobrepõem inteiramente. É com base nesta confusão conceptual que
Teixeira Fernandes acaba por retratar todo o póspositivismo como a «nova
ortodoxia» nas Relações Internacionais.
A falha de Teixeira Fernandes em propor uma definição útil de «positivismo» e o
facto de o termo ser frequentemente usado mais como uma ofensa
3
do que como qualquer outra coisa (inclusive por alguns «pós-positivistas»)
colocam em xeque a inteligibilidade de um argumento construído em torno de
binárias como pós-positivismo/pós-modernismo e positivismo/ciência
4
. Essas binárias parecem ser a única aproximação a uma definição de
«positivismo», «ciência» e «pós-positivismo» que se pode encontrar no texto.
Dessa confusão conceptual recorrente resultam, pelo menos, dois problemas.
Em primeiro lugar, ao contrário do que Teixeira Fernandes sugere, nem todo o
positivismo é ciência e nem toda a ciência é positivista. O apego metafísico
dos comteanos à leitura positivista da história ' chegando a constituir uma
religião humanista, a «igreja positivista» ' ilustra que o positivismo não é
necessariamente científico e, muito menos, a base da única concepção de
«ciência» possível. Por outro lado, existem diversas metateorias não
positivistas que, ao distinguirem entre ciência e outras formas de
conhecimento, ilustram bem a possibilidade de ciência não positivista. No plano
metateórico, podem citar-se os casos da metodologia dos programas científicos
de pesquisa de Lakatos e a teoria realista da ciência de Bhaskar
5
. Nas Relações Internacionais, os casos dos «pós-positivistas» Wendt, Colin
Wight e tantos outros
6
.
Em segundo lugar, nem todo o pós-positivismo é pós-moderno e multiculturalista,
como o próprio Teixeira Fernandes parece reconhecer quando afirma que existem
«diferentes versões» 7 de abordagens pos‑positivistas. Todo o seu argumento,
porém, depende desta divisão. O autor refere que as «concepções da
"epistemologia multiculturalista" [ ], grosso modo, são as mesmas que
sustentam as abordagens pós-positivistas das Relações Internacionais»
8
. A construção da binária pós-positivismo/pós-modernismo (e pos‑positivismo/
multiculturalismo) por Teixeira Fernandes serve a função de homogeneizar o
«pós-positivismo», eliminando potenciais anomalias que resistiriam ao seu
argumento. É somente através desta simplificação que o autor consegue criticar
o que ele chama de «pós-positivismo» por intermédio de uma crítica ao
multiculturalismo. Ora, de acordo com os moldes utilizados, nos quais pós-
positivismo equivale a pós-modernismo, a rejeição do pós-positivismo significa,
na prática, a eliminação de uma série de abordagens teóricas e metateóricas
que, embora pós-positivistas, não são nem pós-modernas nem multiculturalistas
9.
Sendo que o pós-positivismo e o pos‑modernismo não são equivalentes, torna‑se
complicado avaliar o que constitui a «nova ortodoxia» que Teixeira Fernandes
afirma existir na teoria das Relações Internacionais. O autor afirma, com
razão, que desde os anos de 1980 o panorama teórico foi «pulverizado» por uma
multiplicidade de abordagens
10
. No entanto, postular que «a "desconstrução" desta nova ortodoxia,
de imitatio-postmodernum, e das suas estratégias ideológicas e epistemológicas
de legitimação, é a principal tarefa com que se confronta a Teoria das Relações
Internacionais neste início do século XXI»
11
parece-nos exagerado, até porque Teixeira Fernandes em nenhuma ocasião
demonstra que o pós-positivismo é a «nova ortodoxia» nas Relações
Internacionais.
Fazê-lo, aliás, iria contra a ideia de pulverização
12
. Além disso, a mera existência de novos manuais que mencionam diversas
abordagens pós-positivistas não é indicador seguro de que há uma «nova
ortodoxia» no campo. Diversos estudos mais detalhados sugerem o contrário, a
saber, que o campo gira e reproduz-se exactamente em torno da «velha ortodoxia»
13
.
O autor parece indicar que o problema da «nova ortodoxia» é, justamente, a
pluralidade de novas perspectivas, contrastando com a «relativa homogeneidade
teórica de um passado não muito distante». «Homogeneidade» corresponderia à
«fase científica» (ou imitatio scientia) da disciplina.
Associar a dominação de um determinado paradigma num campo a uma «fase
científica» é um juízo metateórico que nos remete à ideia de «ciência madura»
de Kuhn
14
, que, por sua vez, segundo a visão do próprio Teixeira Fernandes, poderia ser
classificado como um «pós-positivista»
15
.
Sendo assim, o autor depende de critérios metateóricos pós-positivistas para
protestar contra a pluralidade de perspectivas que caracteriza a «nova
ortodoxia» pós‑positivista.
Dado que pós-positivismo e pós-modernismo não são a mesma coisa, e tendo em
conta que o primeiro não é uma teoria das Relações Internacionais (mas sim uma
atitude metateórica), torna-se complicado avaliar o argumento de Teixeira
Fernandes no que respeita à ligação entre teoria e ideologia. O autor reconhece
que uma das principais críticas pós-positivistas ao «positivismo científico» se
refere ao facto de este «"mascarar" a sua ideologia e de legitimar o
status quointernacional, sob uma capa de "neutralidade" e de
"conhecimento científico"»16. Mais adiante, Teixeira Fernandes acusa
alguns autores pós-positivistas (sem especificar) de usarem «uma
"máscara" académico-científica»
17
já depois de ter citado Semprini, que define como principais características
do «pós-positivismo» (entendido, vale lembrar, como pós-modernismo e
«epistemologia multicultural») a celebração da multiplicidade de interpretações
subjectivas e o carácter político da produção de conhecimento. Tendo em conta a
descrição de Semprini, usada por Teixeira Fernandes, fará sentido acusar o pós-
positivismo (como um todo) de se procurar legitimar sob uma suposta
neutralidade ideológica? Até porque ' como é bem sabido ' nem todos os pós-
positivistas reivindicam conceitos de ciência18 e neutralidade
19
nas suas próprias abordagens.
Mais importante, todavia, é que Teixeira Fernandes depende do próprio argumento
pós-positivista (de que a produção intelectual positivista mascara um projecto
ideológico) para criticar o posicionamento pós-positivista, incorrendo numa
contradição performativa. Ou seja, admitir a validade da crítica pós-
positivista é condição fundamental para o sucesso do seu argumento20. Dessa
forma, o autor menciona mais um caso empírico que corrobora o argumento pós-
positivista de não neutralidade da produção académica, demonstrando o valor do
pós-positivismo enquanto crítica.
Teixeira Fernandes conclui afirmando que a nova tarefa da Teoria das Relações
Internacionais é desconstruir a «nova ortodoxia» pós-positivista. Tal
desconstrução, conforme o argumento ilustra, dependedo pós-positivismo.
Teixeira Fernandes, ao fechar a porta ao pós-positivismo, na verdade abre a
janela. Eis uma desconstrução da desconstrução do autor sobre a desconstrução
dos pós-positivistas. O autor realiza um acto louvável, que é o de fazer menção
às teorias pós-positivistas. Contudo, não podemos concordar com a forma como
essas abordagens foram retratadas. O número da revista onde o artigo de
Teixeira Fernandes foi publicado é bem exemplar de que o pós-positivismo não
constitui uma nova ortodoxia na disciplina das Relações Internacionais como o
autor afirma. Acreditamos que o potencial do pós-positivismo supera em muito o
seu uso como mero instrumento de crítica e vemos a pluralidade teórica nas
Relações Internacionais como o caminho a ser seguido para que a disciplina
continue a ganhar relevância e, mais importante, para que esta nos ajude a
perceber melhor um mundo cada vez mais complexo, onde a multiplicidade de
eventos e de causas apenas pode ser compreendida com mais teorias e diversos
pontos de vista.
NOTAS
1 FERNANDES, José Pedro Teixeira ' «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das
Relações Internacionais». In Relações Internacionais. N.º 16, Dezembro de 2007,
pp. 75-82.
2 Ibidem, p. 82.
3 WIGHT, Colin ' Agents, Structures and International Relations: Politics as
Ontology. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 15-23.
4 FERNANDES, José Pedro Teixeira ' «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das
Relações Internacionais», p. 75.
5 LAKATOS, Imre ' The Methodology of Scientific Research Programmes:
Philosophical Papers, v.1. Cambridge: Cambridge University Press, 1978;
BHASKAR, Roy ' A Realist Theory of Science. 3.ª ed. Londres: Verso, 2008.
6 Cf. WENDT, Alexander ' Social Theory of International Politics.Cambridge:
Cambridge University Press, 1999, pp. 47-91; WIGHT, Colin ' Agents, Structures
and International Relations, pp. 23-61. O próprio Waltz critica diversos pontos
nevrálgicos do positivismo e considera-se um pós-positivista. Cf. WALTZ, K. N.,
HALLIDAY, F., e ROSE NBER G, J. ' «Interview with Ken Waltz». In Review of
International Studies. Vol. 24, n.º 3, 1998, pp. 379-386.
7 FER NANDES, José Pedro Teixeira ' «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das
Relações Internacionais», p. 81.
8 Ibidem, p. 80.
9 Cf., inter alia¸FINNEMORE, M. ' National Interests in International Society.
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1996.
10 Ibidem, p. 75.
11 Ibidem, p. 82.
12 Parece-nos complicado imaginar uma «ortodoxia pulverizada» onde coexistem
perspectivas como, por exemplo, Feminist standpointe Green Theoryque se opõem
em princípios fundamentais.
13 Cf., inter alia, TICKNER, A. B., e WAEVER, O. ' Global Scholarship in
International Relations: Worlding Beyond the West. Londres: Routledge, 2008.
14 KUHN, T. S. ' A Estrutura das Revoluções Científicas. 7.ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
15 O próprio autor reproduz essa classificação. Apesar do equívoco na grafia do
nome de Kuhn, trata-se da mesma pessoa. FER - NANDES, José Pedro Teixeira '
«Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações Internacionais», p. 79.
16 Ibidem, p. 76.
17 Ibidem, p. 81. Cf. p. 77.
18 Os pós-modernos, por exemplo, estão confortáveis com a ideia de que seu
discurso é «só mais um discurso» e de que as suas abordagens são tão
ideológicas quanto as abordagens positivistas. Cf. DER DERIAN, J., e SHAPIRO,
M. (eds.) ' International/Intertextual Relations: Postmodern Readings of World
Politics. Lexington: Lexington Books, 1989.
19 É difícil ser mais claro quanto a isto que Robert W. Cox, que, em 1981,
afirmou que «a teoria é sempre para alguém e serve sempre algum propósito».
COX, R. W. ' «Social forces, states and world orders: beyond international
relations theory». In KEO HANE, R. O. (ed.) ' Neorealism and its Critics. Nova
York: Columbia University Press, 1986, p. 207.
20 Interessante também é que Teixeira Fernandes parece acreditar que as teorias
têm capacidade de «transformar a realidade» de acordo com um determinado
programa político, o que nos parece ser uma posição pós-positivista por
excelência que pressupõe a interferência do sujeito no objecto. Cf. FERNANDES,
José Pedro Teixeira ' «Pós-positivismo e ideologia na Teoria das Relações
Internacionais», p. 81.
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt