O búfalo, o urso e o jumento
O búfalo, o urso e o jumento
David Castaño
Jonathan Fenby.
Aliança. A Verdadeira História de como Roosevelt, Estaline e Churchill Venceram
uma Guerra e Iniciaram outra.
Lisboa, Quidnovi, 2008, 544 páginas
Este livro do antigo jornalista Jonathan Fenby propõe-se contar não a
verdadeira história da vitória aliada sobre o Eixo, como erradamente sugere a
tradução do subtítulo da versão portuguesa, mas revelar os seus bastidores. Com
base na imensidão de material disponível para consulta sobre este período,
Fenby constrói uma narrativa que se focaliza na acção dos três líderes das
potências aliadas e procura sublinhar a importância do relacionamento pessoal
no destino da guerra e da paz que se seguiu. Mais do que «a verdadeira
história», somos tentados a ler esta obra como mais um valioso contributo para
a análise e interpretação deste período fundamental da história mundial do
século xx.
Não se esperem pois grandes novidades nem revelações, embora o livro esteja
repleto de pormenores que nos relembram, por exemplo, que a expressão «cortina
de ferro» imortalizada por Churchill no seu discurso de Fulton em Março de
1946, tinha já sido usada por Goebbels quando o Exército Vermelho chegou a
Viena, ao avisar os alemães para não deixarem de combater porque «uma cortina
de ferro cairá sobre este enorme território controlado pela União Soviética,
para lá da qual vão ser massacradas nações» (p. 453), e que essa expressão
seria ainda utilizada antes de Fulton pelo primeiro-ministro britânico em
Potsdam, na presença de Estaline, que respondeu dizendo que isso eram «contos
de fadas» (p. 481).
OS MARTINIS DE ROOSEVELT
O que Fenby faz neste livro é uma nova abordagem que se desenvolve com base num
triângulo em cujos vértices se encontram personalidades tão distintas como o
«búfalo» americano (Franklin Roosevelt), o «urso» russo (José Estaline) e o
«jumento» inglês (Winston Churchill), adicionando ao já conhecido triângulo
geoestratégico e geopolítico uma até agora esquecida vertente amorosa. É essa
vertente que o autor procura revelar ao relatar, por exemplo, o primeiro
encontro de Churchill com Roosevelt, antes do qual o primeiro-ministro, «tal
como um amante que vai, finalmente, encontrar-se com o objecto das suas
atenções sentia-se nervoso relativamente à impressão que iria causar»,
questiona «se ele [Roosevelt] gostará de mim» (p. 55), ou quando Estaline manda
trazer de avião para Ialta um limoeiro carregado de limões da sua Geórgia natal
para que Roosevelt possa preparar os seus martinis (p. 417).
Como qualquer triângulo amoroso, a sua geometria não é fixa, assemelhando-se a
um triângulo escaleno em constante mutação. Os seus ângulos são variáveis bem
como a distância entre os seus vértices que ora fazem com que o «jumento» se
aproxime do «urso» (questão da divisão da Roménia e da Grécia por percentagens,
pp. 377-400), ou que o «búfalo» tente cativar o «urso» (veja-se a descrição da
Cimeira de Teerão e o modo como Roosevelt usou todos os meios ao seu alcance
para cativar Estaline e levar a urss a aderir à nova organização que projectava
para o pós-guerra, chegando a fazer troça de Churchill, p. 301), ou que o
«jumento» e o «búfalo» caminhem lado a lado. Esta relação, o mais sólido lado
do triângulo, reforçado pela herança comum e pela partilha dos valores
democráticos, tinha, contudo, os seus pontos de atrito que faziam com que
também esse lado tivesse sofrido mutações no seu comprimento, ora afastando,
ora aproximando os vértices ocidentais que unia.
Um desses pontos era a questão da autodeterminação das colónias. Como Fenby
relata, desde o primeiro encontro entre os dois, Roosevelt revelou as suas
ideias sobre a necessidade de pôr fim ao colonialismo, e Churchill, apesar de
notar que o Presidente estava «a tentar acabar com o Império Britânico», vê-se
obrigado a reconhecer «que o senhor é a nossa única esperança» (p. 81),
colocando-se numa posição de subserviência. A leitura da obra leva-nos,
contudo, a olhar com cautela para a bondade desta posição do Presidente norte-
americano. Um dos pontos fundamentais do esquema que Roosevelt desenhara para o
pós-guerra era o fim do sistema preferencial de comércio e a aplicação do
comércio livre que, uma vez aplicado, tornar-se-ia, nas palavras do seu
secretário de Estado, «uma faca para abrir a casca de ostra que é o império»
(p. 78), tendo o próprio Roosevelt dito a Morgenthau, quando tomou conhecimento
do estado calamitoso da situação financeira britânica, que iria «tomar posse do
império britânico» (p. 358). Este aspecto, que não deve ser desligado dos
acesos debates travados entre as chefias militares norte-americanas e
britânicas sobre as frentes de guerra a estabelecer na Europa, é apenas mais um
que o autor tem em conta ao analisar este relacionamento tripartido.
Além das desconfianças mútuas existentes neste já complexo triângulo, elas são
ainda ampliadas pelo constante receio de que qualquer uma das partes cometa
adultério com uma quarta parte (leia-se, fazer uma paz separada ou «uma paz
suave» com a Alemanha), hipótese que não era assim tão remota como revelava o
anterior affair do «urso» com os nazis e a política de -appeasement do
antecessor do «jumento».
É neste quadro de receio de traições, de ciúmes e de constante desconfiança que
se ergue uma improvável aliança cujo único laço, como defendeu Churchill, era o
seu ódio comum (p. 442), e que devia a sua existência à constatação de que,
dada a interdependência existente entre os três países, era a melhor forma de
cada um conseguir alcançar os seus objectivos (pp. 45-46).
Não nos devemos no entanto enganar pela aparente leveza de uma obra que não
deve ser confundida com romance de cordel. Jonathan Fenby apoia-se numa
impressionante quantidade de estudos, biografias, memórias, diários e fontes
primárias para descrever com grande precisão os preparativos, os argumentos e
as discussões dos três líderes e dos seus conselheiros. Além da preocupação
demonstrada na recolha e confrontação das fontes quando se trata de descrever o
lado mais técnico das negociações e da preocupação em fazer retratos fiéis do
modo de ser e de agir de cada um dos intervenientes, o autor relata com uma
precisão quase cinematográfica os aspectos logísticos desses encontros. As
viagens intercontinentais, o vestuário, a alimentação, a descrição dos espaços,
as festas e os jantares, os brindes e as bebidas, são descritos de forma a
transportarem o leitor para as salas onde se discutiu a vida de milhões de
pessoas.
Desde o início da obra somos constantemente interpelados por uma questão: qual
a verdadeira importância do relacionamento pessoal entre os dirigentes mundiais
nos processos históricos? Ou, neste caso particular, qual foi o impacto dos
contactos directos entre Roosevelt, Churchill e Estaline no desenrolar da
guerra e no novo sistema mundial que dela emergiu?
A IMPORTÂNCIA DA «QUÍMICA PESSOAL»
O autor defende que «a Segunda Guerra Mundial foi uma luta pessoal entre
figuras de grande relevo» e que «estes homens tiveram uma influência vital não
apenas no curso da guerra, mas no mundo que dela emergiu» (p. 18). Não vamos
aqui debater a célebre questão de saber se são os grandes homens que lideram e
encabeçam os grandes acontecimentos ou se são os grandes acontecimentos que
catapultam para a ribalta lideranças que de outra forma não teriam deixado
grandes marcas, pois parece-nos que neste caso podem encontrar-se exemplos que
se adequam ora a uma, ora a outra formulação. A ênfase do livro não está aí,
mas sim na importância dada ao estabelecimento de relações pessoais, e nesse
aspecto o autor parece comungar com Churchill a crença na utilidade de tais
ligações ao afirmar que «a química pessoal era fundamental» (p. 46). O
primeiro-ministro britânico foi o grande impulsionador deste tipo de encontros
tendo tido 11 conferências bilaterais com o Presidente dos Estados Unidos,
atravessado seis vezes o Atlântico e visitado duas vezes Moscovo. A sua
primeira preocupação fora a de convencer Roosevelt a ultrapassar a política
isolacionista que vigorava deste a I Guerra no seu país e garantir que a
entrada dos Estados Unidos na guerra não se faria apenas no cenário do
Pacífico. No primeiro encontro entre os dois, em Placentia Bay no mês de Agosto
de 1941, Churchill não conseguiu que os americanos entrassem na guerra como
pretendia, mas conseguiu estabelecer a relação pessoal que pretendia com o
Presidente, como revela uma carta de Roosevelt a uma prima: «Gosto dele ' e
almoçarmos juntos, a sós, quebrou o gelo dos dois lados» (p. 72). Um ano
depois, Churchill aterrava em Moscovo. A sua missão era dizer pessoalmente a
Estaline que ao contrário do que havia sido previamente acordado não seria
aberta uma segunda frente na Europa em 1942. Mais uma vez a grande preocupação
do primeiro-ministro era conseguir um encontro a sós com Estaline, que se
realizou no fim da sua estada em Moscovo num jantar privado no apartamento de
Estaline no Kremlin, tendo exclamado exultantemente depois desse encontro ao
embaixador britânico em Moscovo: «Levou-me à família dele. Ficámos amigos» (p.
190). Mas, afinal, qual teria sido a diferença se, em vez de fazer uma viagem
com todos os riscos inerentes, Churchill tivesse elaborado, na sua escrita -
eloquente, um telegrama a Estaline a comunicar que o desembarque em França
teria de ser adiado?
No final do conflito o que contou não foram as relações pessoais estabelecidas
entre os três grandes mas a situação militar no terreno. Apesar dos esforços de
Churchill somos tentados a pensar que a América entraria mais tarde ou mais
cedo na guerra de forma a impossibilitar a formação de uma grande coligação do
Eixo que ameaçava os seus interesses ao estender-se da Europa à Ásia.
Relativamente à ideia de que graças aos acordos estabelecidos e ao
relacionamento criado, Estaline permaneceria um aliado fiel, os acontecimentos
na Polónia cedo revelaram que tal não iria acontecer (pp. 343-353).
A força moral de Churchill, indispensável na primeira fase da guerra, não podia
comparar-se nem à força material americana nem à força humana soviética que
desenharam o mundo saído do conflito. Em Janeiro de 1944, no regresso de
Teerão, o primeiro-ministro não tinha dúvidas em afirmar que liderava «uma
nação pequena», apesar de, entre o «urso» russo e o «búfalo» americano, o
«jumento» inglês ser «o único dos três que conhecia o caminho correcto para
casa» (p. 319). Aqui Churchill enganara-se. Todos sabiam qual o caminho, mas o
«jumento» era o único que apesar de ter conseguido chegar a casa ' o que já
fora uma vitória ' esgotara todas as suas forças durante o percurso. O
primeiro-ministro britânico pode ter conseguido algumas vitórias com a sua
diplomacia relacional como o adiamento da invasão da França (p. 158) ou a
vitória na Grécia (pp. 395-400); contudo, à medida que o tempo ia passando e se
avizinhava a vitória, adensava-se uma nuvem de incerteza sobre o futuro do
Império Britânico que, graças às eleições, o primeiro-ministro derrotado não
teve de enfrentar.
No entanto, apesar dos laços pessoais estabelecidos durante a guerra não terem
sido determinantes para o seu desfecho, talvez tenham desempenhado o seu papel
ao permitir que se tivesse evitado uma nova guerra, desta vez entre os aliados,
e nesse sentido poderá ser mais pertinente referirmo-nos ao período que se
seguiu à guerra como uma Paz Quente em vez de Guerra Fria, o que implicaria uma
alteração do subtítulo do livro para «Como Roosevelt, Estaline e Churchill
venceram uma guerra e impediram outra».
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