Os caminhos da NATO: O que foi, o que é, o que deve ser
Os caminhos da NATO.O que foi, o que é, o que deve ser
António José Telo
[1]
As visões americana e europeia quanto aos objectivos da NATO são distintas
desde a sua formação em 1949. A revisão do conceito estratégico da NATO em 1991
e 1999 e o documento aprovado em 2006 demonstram os ajustamentos que a
organização teve que fazer face às alterações ocorridas no sistema
internacional. Ao avaliar a evolução da nato nos últimos sessenta anos conclui-
se que a Aliança deve transformar-se numa organização política, motor de um
entendimento privilegiado entre a Europa e a América.
Palavras-chave: NATO, União Europeia, Estados Unidos, relações transatlânticas
NATO's paths ' what it has been, what it is and what will be
The American and European visions of the main goals of NATO are distinctive
since its formation in 1949. The revision of the strategic concept in 1991 and
1999, and the document of 2006 show us the adjustments that the organization
has had to make facing the changes in the international system. The evaluation
of NATO's tendency through the last sixty years allows concluding that NATO
should grow to a political organization, support of a privileged understanding
between Europe and America.
Keywords: NATO, European Union, United States, transatlantic relations
O QUE FOI
É normal dizer-se que a NATO é uma organização político-militar, querendo com
isto sublinhar-se que ela é fundamentalmente política. Na realidade, outra
acepção não seria possível, pois não se compreende que o uso militar da força
não esteja subordinado a uma política. Este entendimento seria válido em
qualquer circunstância de composição, mas é particularmente importante tendo em
conta que os membros actuais da NATO são todos democracias pluralistas de tipo
ocidental – o que não era o caso quando da sua fundação.
A dúvida pode estar somente em saber a que política obedece a NATO e a resposta
não é simples. Uma primeira constatação é que tem obedecido, não a uma política
central única, mas sim à conjugação de múltiplas políticas, ao ponto de
encontro flexível da anulação de políticas sempre divergentes, quando não
contraditórias. Uma segunda constatação é que a política oficial raramente é a
real, ou, dito de outro modo, as reais intenções e objectivos dos seus membros
raramente podem ser expressos com todas as letras em documentos públicos.
Para compreender melhor estas duas constatações, vou utilizar como exemplo a
situação quando da formação da NATO, em 1949. Nesta altura, a visão estratégica
global dos Estados Unidos era expressa sobretudo pelas análises do National
Security Council(NSC), que apontavam para uma realidade perturbadora:
desenhava-se uma rivalidade global incontornável com a URSS e eram possíveis
dois cenários. O primeiro, partia do princípio que os Estados Unidos conseguiam
manter no seu sistema de alianças três dos quatro centros industriais e
tecnológicos do planeta (os quatro centros eram os próprios Estados Unidos, a
URSS, a Europa Ocidental e o Japão), o que significava que o tempo jogava a seu
favor; o segundo cenário, considerava a possibilidade de a Europa Ocidental
cair total ou parcialmente para o lado soviético, o que significava que o tempo
estaria contra os Estados Unidos, ou seja, que o peso relativo dos pratos da
balança se iria inclinar com o tempo para o lado soviético.
É bom recordar que, nesta altura, não era claro como iriam evoluir os
principais estados da Europa Ocidental. O continente estava em crise, sofria
ainda os efeitos da devastação da guerra, os partidos comunistas eram a segunda
força mais votada na França e na Itália, o Exército soviético estava em Viena,
Berlim e Praga, e a Alemanha não existia.
A conclusão do NSC era que, caso o primeiro cenário se concretizasse, os
Estados Unidos deviam apostar numa estratégia de longo prazo no conflito com a
URSS, pois o tempo acabaria por jogar a seu favor; caso o segundo cenário se
concretizasse, então os Estados Unidos deviam provocar a guerra de imediato, de
modo a aproveitar as grandes vantagens relativas (nomeadamente o monopólio do
arsenal nuclear) antes destas desaparecem (o que viria a acontecer dentro em
breve). Tudo dependia, em resumo, da Europa Ocidental continental e de saber
para que lado se iam inclinar a França e a Itália, pois ninguém duvidava da
posição do Reino Unido. Disto dependia igualmente o futuro da Alemanha.
A resposta americana foi digna da dimensão do desafio. A primeira opção foi a
de apostar tudo numa estratégia de longo prazo e só caso esta falhasse por
completo adoptar a alternativa. A segunda, foi a de lançar três gigantescos
programas para trazer a Europa Ocidental para o seu sistema de alianças: o
primeiro foi o Plano Marshall, que visava reorganizar a economia global
favorecendo a recuperação europeia e o comércio atlântico, algo essencial para
a economia americana ultrapassar a estagnação por falta de exportações que
enfrentava; o segundo foi um plano multifacetado centrado na esfera política
que visava refazer o tecido político europeu e, em particular, o alemão,
favorecendo o crescimento dos partidos e organizações democráticos. Os
resultados destes dois projectos, um público e divulgado pela propaganda, outro
discreto e oficialmente inexistente, excederam as expectativas: o «milagre
económico europeu» arrancou, as democracias cristãs tornam-se os partidos
dominantes da Alemanha e da Itália, os partidos comunistas tradicionais recuam
em todos os campos, inclusive no domínio do movimento sindical, não tardando a
surgir o «eurocomunismo» e a Europa não ocupada pelo Exército soviético
envereda de forma clara pelo caminho do crescimento económico acelerado e da
democracia tipo ocidental.
A NATO foi o fecho da abóbada desta grande estratégia, o terceiro programa, que
completava os outros dois e lhes dava a conclusão lógica. O seu principal
objectivo na visão americana era o de ancorar militarmente a Europa no bloco
ocidental, transformando as forças armadas da Europa no processo. Isto passava
por uma imensa «americanização» das forças armadas europeias, com um gigantesco
programa de «ajuda militar», que servia igualmente para favorecer o arranque da
indústria pesada europeia. O projecto foi extremamente bem-sucedido: em poucos
anos as forças armadas europeias adoptam no essencial o figurino americano,
aceitam a lógica de subordinação ao poder político das democracias, isolam os
núcleos radicais no seu seio e passam a funcionar com as técnicas, armamento,
métodos, práticas e, em larga medida, mentalidades americanos.
A alavanca que justificava todo o processo era a necessidade de provocar um
crescimento dos efectivos militares que compensasse a superioridade evidente
soviética em forças convencionais. Este pretexto era, como se imagina, muito
popular entre os militares, o que fazia deles os grandes defensores da adesão à
NATO em todos os estados – nomeadamente em Portugal, onde a direcção política
tinha fortes dúvidas e reservas.
A NATO, assim que se forma, elabora planos para resistir a uma ofensiva
convencional da URSS, em diferentes linhas na Europa mais ou menos avançadas.
Simplesmente, durante toda a década de 1950, os reais planos de guerra
americanos, que não eram comunicados aos europeus, apontavam para a
impossibilidade de defender a Europa Ocidental (com a excepção do Reino Unido)
perante uma ofensiva em força da URSS, o que significava que as forças
americanas estacionadas no continente eram para sacrificar. Os reais planos
americanos colocavam como inevitável nos primeiros seis meses de guerra um
recuo generalizado na Europa e no Médio Oriente, que levaria as forças
soviéticas até Lisboa, ao canal da Mancha e ao canal de Suez, sendo só duvidoso
se conseguiriam ocupar a totalidade da Arábia (grande parte do Médio Oriente,
incluindo o Iraque e o Irão, cairia nos seis meses iniciais). Neste período, a
prioridade americana era a de mobilizar a sociedade e fazer crescer as forças
próprias, que seriam concentradas nas bases da futura contra-ofensiva: no Norte
de África e Índia. No Reino Unido seriam colocadas somente forças que apoiassem
a sua defesa, mas considerava-se que não era uma base apropriada para a contra-
ofensiva futura. Os Estados Unidos iniciariam igualmente nos primeiros seis
meses a ofensiva aérea estratégica nuclear e convencional, graças à qual se
esperava destruir cerca de 30 por cento da capacidade industrial soviética (o
arsenal nuclear americano era então muito reduzido).
Só numa segunda fase, muito provavelmente no segundo ano, seria possível
desencadear as primeiras contra-ofensivas terrestres e estas seriam lançadas no
Médio Oriente e não na Europa. Estes eram os reais planos americanos em caso de
guerra, que pouco tinham a ver com os planos NATO e não podiam ser comunicados
aos aliados europeus (com a excepção do Reino Unido) por razões evidentes.
Depois desta pequena explicação do que era realmente a NATO quando da sua
criação, podemos voltar às teses iniciais, pois elas agora podem ser melhor
entendidas. A NATO era global, na perspectiva americana. O que estava em jogo
era, com a aparência de criar uma organização regional, decidir para que lado
alinhava a região que era decisiva e o mais importante na equação global. O
sucesso dessa grande estratégia iria decidir não só a ordem global futura, mas
também a atitude de fundo perante a URSS (guerra imediata ou confrontação de
longo prazo). A NATO era assim pensada em termos globais desde o seu
nascimento, embora oficialmente fosse regional. A NATO, em segundo lugar,
visava transformar as forças armadas europeias de acordo com o figurino
americano, obtendo ao mesmo tempo o seu crescimento numérico. O que a NATO não
visava era justamente aquilo que dizia pretender: defender a Europa de uma
ofensiva militar da URSS. Os planos da NATO eram «políticos», eram feitos pelos
militares americanos para moralizar os aliados europeus, mas sabendo-se à
partida que, em caso de conflito, não eram para executar. Em resumo, a NATO era
um produto da grande estratégia, que, para ser eficaz, não podia ser tornada
pública. Isto era a visão americana, sendo óbvio que existiam igualmente
múltiplas visões europeias sobre o assunto, nas quais não vou entrar por não
serem importantes para a linha central do artigo.
A NATO continua a ser hoje exactamente o mesmo, só que em circunstâncias
drasticamente alteradas.
O QUE É
A NATO passou por várias «crises existenciais» nos seus já longos sessenta
anos, sendo a maior de todas a que viveu depois da queda do Muro de Berlim. De
então para cá houve dois importantes momentos de transformação: um em 1991 e
outro em 1999-2006.
A PRIMEIRA MUDANÇA, 1991
Até 1990 o paradigma da NATO estava muito marcado em termos formais pelo artigo
5.º, que apontava para uma defesa colectiva de resposta a ataques contra os
estados-membros que ocorressem numa área limitada. O artigo 6.º definia que
esta área eram os territórios dos membros na Europa e na América a norte do
Trópico de Câncer, considerando como única excepção os «Algerian Departments of
France», enquanto estes existiram. Significava isto que, por exemplo, o artigo
5.º não podia ser invocado perante um ataque da URSS a uma colónia europeia da
África ou da Ásia. A excepção eram os departamentos argelinos da França e os
Estados Unidos só aceitaram a sua inclusão porque eles eram essenciais nos
planos próprios como base da futura contra-ofensiva em caso de conflito, coisa
que a França ignorava.
O que foi realmente importante para a NATO não foi tanto esta formulação
teórica, mas sim dois processos: a efectiva padronização de procedimentos, de
logística, de tácticas e de doutrinas que se deu logo na década inicial, sob a
influência da imensa ajuda militar americana; a criação de um sistema político
de consultas regulares e de uma estrutura de comando permanente. É certo que
esta estrutura de comando elaborava planos perfeitamente irrealistas em caso de
guerra durante todo o período inicial, mas isso pouco importava porque a guerra
não estalou. O que importava é que existia um elo efectivo entre os estados-
membros que padronizava as suas estruturas militares de acordo com o figurino
americano. Depois do desaparecimento do Pacto de Varsóvia, mais nenhuma aliança
tem isso.
Foi isso que fez que, quando a URSS implodiu, ninguém pensasse seriamente na
extinção da NATO e essa hipótese nem sequer se tivesse colocado fora do campo
da especulação académica. A aliança tal como existia era um pólo de ordem que
excedia em muito as suas funções oficiais e todos sabiam, ou sentiam, isso.
O que aconteceu foi que, mais uma vez, como era de regra, as funções reais da
NATO excederam em muito a formulação oficial dos documentos. A primeira
reformulação oficial foi feita pelo «conceito estratégico» de 1991. Segundo
este, a NATO era chamada a responder a vagas ameaças «de natureza multifacetada
e multidireccionadas, o que as torna difícil de prever» (ponto 8); estas
imprecisas e indefinidas «ameaças« já não provinham principalmente de uma
eventual agressão ao território dos estados-membros, «mas de consequências
adversas da instabilidade que podiam decorrer de sérias dificuldades
económicas, sociais e políticas» (ponto 9). Pela primeira vez, era dito
igualmente que a paz na periferia «sul» da Europa era importante para a aliança
(ponto 11). Mais importante ainda, era dito logo em 1991 que os riscos mudaram
e que era necessário considerar como riscos importantes a proliferação das
armas de destruição maciça, «os recursos vitais» (havia algum pudor em dizer
petróleo) e as acções terroristas.
Uma outra grande novidade do documento de 1991 era a redefinição dos valores da
NATO, que agora passava a existir «baseado em valores comuns de democracia,
direitos humanos e estado de direito» (artigo 16.º), o que não correspondia de
modo nenhum à formulação de 1949, embora isso não fosse acrescentado. O
documento de 1991 acrescentava que a NATO precisava de articular a sua acção
com «outras instituições europeias como a CE, UEO e a CSCE»que «também têm as
suas funções para exercer» (artigo 21.º). De forma tipicamente optimista era
mesmo referido: «A criação de uma identidade europeia de segurança e defesa irá
evidenciar a preparação dos europeus para adquirirem um grande sentido de
responsabilidade da sua segurança» (artigo 21.º). Um importante componente da
defesa colectiva era a capacidade de evitar crises ou fazer a sua gestão
(artigo 30.º), dentro de uma aproximação que visava manter o quadro geral de
segurança, onde a tónica mais do que nunca estava na política – «a abordagem
política da segurança irá tornar-se mais importante» (artigo 30.º).
O documento de 1991 é notável, pois indica de forma correcta o que seriam as
grandes mudanças de NATO nos próximos dezoito anos e aponta para alterações que
alguns ainda hoje consideram polémicas. No entanto, é preciso acrescentar que o
documento, seguindo a tradição da NATO, não indica de forma clara as reais
razões da sua aprovação, nem as estratégias globais que lhe estavam por detrás.
A verdade era que, com o desaparecimento da URSS, a NATO tinha adquirido uma
nova função principal que, mais uma vez, para ser eficaz não podia ser dita.
Era uma função dupla: por um lado garantir a segurança externa dos principais
estados do antigo Pacto de Varsóvia que procuravam uma rápida evolução com
integração nas instituições europeias; por outro, e talvez ainda mais
importante, facilitar a evolução destes estados para uma democracia pluralista
de tipo ocidental, muito em particular a subordinação dos militares ao poder
político e a aceitação das regras da vivência democrática. A NATO foi muito
importante para as transições democráticas no antigo «leste» europeu, tal como
tinha sido para Portugal e para a Grécia nos anos de 1970.
Esta nova função fez a NATO adoptar oficialmente a noção que a instituição se
baseava «nos valores comuns da democracia», o que excluía a aceitação de
qualquer Estado não democrático. São conhecidas as etapas atribuladas do
alargamento a Leste, que sempre provocou fortes reservas e mesmo protestos por
parte da Rússia. Estas alcançaram um tom diferente quando o alargamento
ultrapassou os antigos estados do Pacto de Varsóvia, para incluir alguns
estados da ex-URSS. Mesmo assim, a adesão dos estados bálticos, com as suas
tradições históricas europeias e ocidentais, com um passado de democracia e com
um reduzido peso militar, não levantou grandes problemas. Situação diferente é
a da eventual adesão da Ucrânia e da Geórgia.
A SEGUNDA GRANDE MUDANÇA, 1999-2006
O caminho percorrido nos anos de 1990 leva à aprovação de um novo conceito
estratégico em 1999, que retoma muitos dos pontos de 1991. Era repetido que a
NATO «é baseada nos valores comuns da democracia, direitos humanos e estado de
direito» (ponto 6), o que correspondia à formulação anterior, mas sublinhava-se
agora que, para obter a segurança, a organização se devia envolver na gestão de
crises e promover partenariados. A visão de segurança era diferente do passado,
pois dizia-se: «A Aliança está empenhada numa abordagem de segurança mais
ampla, que reconheça a importância de factores políticos, económicos, sociais e
ambientais juntamente com a indispensável dimensão de defesa» (ponto 25). A
NATO continuava, porém, a ter como objectivo central a edificação de uma
«arquitectura de segurança europeia» baseada no entendimento entre as duas
margens do Atlântico. Os partenariados apresentados como prioritários era com a
Rússia, a Ucrânia e a área do Mediterrâneo.
O 11 de Setembro altera significativamente a postura, nomeadamente no que diz
respeito a operações fora de área. O documento mais relevante que incorpora a
evolução posterior é o «Comprehensive Political Guidance», aprovado na cimeira
da NATO de Novembro de 2006.
Este documento refere expressamente como base da sua elaboração o conceito
estratégico de 1999, para indicar depois as mudanças que se deram. Agora, a
principal ameaça para a NATO «dos próximos 10 a 15 anos» é identificada como o
terrorismo internacional e a difusão das armas de destruição maciça, no que é
uma típica aproximação posterior ao 11 de Setembro, ainda em pleno período
Bush. Uma diferença notória é que já se aceitam as operações fora de área,
dizendo-se: «os futuros ataques podem ser originados fora do espaço euro-
atlântico e envolverem formas não convencionais de ataques armados» (ponto 5).
Nesta perspectiva, a Aliança declara-se preparada para desencadear operações
«não artigo 5.º» de gestão de crises, mesmo fora de área.
Um outro ponto importante do documento de 2006 é a referência à necessidade de
manter capacidades full range, desde a alta à baixa intensidade, sem esquecer
as operações de estabilização e de apoio militar depois do conflito, para o que
se tornava necessário desenvolver os mecanismos de cooperação com a ONU, a
União Europeia (UE) e organizações não governamentais. O documento, em resumo,
incorpora e aprova o que era já a prática da NATO no Afeganistão e refere que a
nova situação cria exigências acrescidas, dizendo no ponto 11: «a NATO poderá
manter um maior número de pequenos pedidos e operações diversas, e a Aliança
deverá manter a capacidade para conduzir operações em larga escala e de alta
intensidade.»
Quais as ameaças assimétricas encaradas em 2006? O documento era
propositadamente vago, sublinhando a necessidade de adaptação e flexibilidade
para responder ao inesperado. O seu ponto 16, porém, elenca um conjunto de
novas capacidades a desenvolver, onde destaco quatro pela sua novidade: a
protecção dos sistemas de informação contra ciberataques; a capacidade de
identificar e eventualmente eliminar elementos hostis, mesmo em zonas urbanas,
com um mínimo de danos colaterais ou não intencionais; a capacidade de
coordenar operações complexas que envolvem agentes de muitos tipos e
nacionalidades, de dentro e de fora da Aliança; a capacidade de desenvolver
operações de estabilização.
O documento de 2006 não avança ainda para um novo conceito estratégico, mas
incorpora na prática o que eram os principais eixos de evolução da NATO depois
do 11 de Setembro e chama a atenção para as debilidades mais sentidas neste
campo. É já dado como assente a necessidade de adoptar um conceito alargado de
segurança, de conduzir operações fora de área, de dominar todo o tipo de
operações e de desenvolver respostas para as debilidades mais sentidas,
nomeadamente no que diz respeito a «operações de estabilização». É também
evidenciado o longo caminho que a NATO tinha percorrido desde 1990, mas ainda
havia muitas áreas em aberto, resultantes em larga medida das diferentes
perspectivas e da rápida evolução em curso. Esta é a nossa base para tentar
responder à pergunta central deste artigo: o que deve ser a NATO? Muita coisa
mudou de fins de 2006 para cá, apesar do pouco tempo que decorreu.
O QUE DEVE SER
UM ENQUADRAMENTO GERAL
Para compreender o que a NATO deve ser, o primeiro passo é entender o que mudou
e, sobretudo, o que vai mudar. Vou abordar muito resumidamente este ponto de
grande complexidade [2].
Vivemos já, não no pós-Guerra Fria, nem sequer no pós-11 de Setembro, mas sim
num mundo apolar posterior a 2008. São os primeiros e ainda incertos passos de
uma mudança acelerada a muitos níveis. É a antecâmara de uma complexa crise
civilizacional, que se vai prolongar por algum tempo, turbulenta e agitada,
antes de se alcançar uma nova estabilidade com base em soluções que ainda não
estão equacionadas. Estes anos difíceis de transição serão marcados por uma
diluição das lideranças, uma pulverização do poder, um aumento do número de
agentes de centenas para milhares, um rápido crescimento dos agentes não
estatais, um aparecimento de novos desafios que tendem a tornar-se os
principais. É um mundo que passou de vertical a horizontal, de hierárquico a
rede, de redondo a plano, de distante a próximo, de regional a global, de
simples a muito complexo, de previsível a imprevisível, de seguro a perigoso,
de estável a explosivo – um mundo com tensões imensas acumuladas e em
crescimento, com novos desafios e ainda sem novas soluções. É o mundo apolar,
onde os antigos pólos se diluem cada vez mais e os novos ainda não nasceram,
pelo simples motivo que só podem nascer quando se equacionarem as novas
soluções.
É um mundo onde as antigas ameaças (que são as posteriores ao 11 de Setembro,
embora já sejam «antigas») continuam, mas onde as ainda mais antigas vão
renascer (nomeadamente os conflitos entre estados, exacerbados pelos escassez
de recursos para uma população em rápida expansão) e novas vão aparecer. Neste
mundo já não é correcto dizer, como acontecia em 2006, que o terrorismo e a
difusão das armas de destruição maciça são as «principais ameaças». Elas
continuam, mas perante os desafios emergentes são pequenas e até mesmo
insignificantes. Na realidade, nem sequer é muito correcto falar em «ameaças»;
o que há, são desafios emergentes de grande envergadura que, em si, não são
ameaças e não podem ser «eliminados» no sentido militar do termo, mas podem dar
origem a ameaças gigantescas de vários tipos se não forem bem geridos. Os
desafios emergentes ainda dão somente os primeiros passos, mas são de tal modo
importantes que já foram suficientes para refazer toda a ordem económica global
– ela é hoje diferente do que era antes da crise financeira de 2008? –, sem que
novos equilíbrios se tenham criado.
Os desafios emergentes são múltiplos. Cito somente dois que se vão desenvolver
rapidamente e subordinar a si muitos outros problemas, que hoje ainda são
sentidos como mais importantes: a escassez dos recursos perante o crescimento
da população e da classe média (desde a água, à energia, matérias-primas e
alimentos) e a mudança climática. O primeiro destes desafios é a materialização
mais visível da crise civilizacional de um modelo de desenvolvimento não-
sustentável; o segundo é a materialização mais visível de uma crise ainda mais
importante e primária, a da relação do homem com o ecossistema de sustentação
da vida que se chama Terra. Se as coisas forem encaradas desta forma, o que
ainda não acontece numa escala significativa, facilmente se entende que,
perante estes desafios emergentes, tudo o mais é pequeno, se apaga e perde
importância.
O primeiro destes desafios assume diversas formas de imediato e possivelmente
outras num futuro próximo. Em 2008 surgiu, por exemplo, sob a forma de uma
crise energética que atingiu o ponto mais alto em Maio, para depois se assistir
a uma rápida queda do preço do petróleo e alimentos. Mas, a seguir à crise
energética, surgiu a explosão da bolha do imobiliário nos Estados Unidos,
antecâmara de uma crise financeira e económica global. É algo diferente do
passado, pois o que está em causa é o «modelo virtuoso» que alimentou a
economia global nos últimos vinte anos. Era um modelo marcado pela rápida
transferência da indústria para os poderes emergentes, que cresciam a taxas de
dois dígitos, enquanto os estados mais ricos absorviam as suas exportações. Os
estados ricos tinham taxas de crescimento muito mais baixas e, mesmo estas,
eram alimentadas por um endividamento geral, que abarcava todos, desde os
particulares ao Estado central. Os poderes emergentes, por seu lado, desviavam
parte dos fundos imensos provenientes da explosão das exportações para
alimentar o aumento do endividamento dos estados mais ricos. Era um sistema de
vasos comunicantes. Foram a China, a Índia, os poderes árabes e outros que
alimentaram por muitos anos o alegre endividamento dos estados mais ricos, o
que era imprescindível para exportarem nas quantidades necessárias. Ao mesmo
tempo, a «economia paralela ou clandestina» crescia e também ela contribuía
para alimentar o endividamento geral, ao gerar fluxos financeiros imensos, que
correspondiam a um quarto ou a um terço da «economia oficial». Este «modelo
virtuoso» sofreu um abalo imenso em 2008 e não haverá verdadeira recuperação
sem que um outro o substitua, embora não seja ainda claro qual vai ser.
Até lá, a crise financeira e económica vai estar no centro das atenções e será
o pano de fundo de um qualquer quadro de segurança. O Vice-Presidente Joseph
Biden foi muito claro no discurso que fez recentemente em Munique (Fevereiro de
2009): «Our physical security and our economic security are indivisible». Em
resumo, a «segurança económica» vai estar nos próximos tempos no centro do
pensamento da segurança e defesa, embora ainda não seja claro o que se entende
por isso. A crise financeira e económica, porém, mais não é que um dos
primeiros passos da crise de um modelo de crescimento não sustentável, mais
complexa, mais importante, mais difícil de gerir, de mais longo prazo.
É necessário fazer uma prevenção importante. Um leitor apressado poderia
concluir das linhas anteriores que tenho a visão de um caos ou catástrofe
iminente. Não é assim. A crise do modelo não sustentável de desenvolvimento
começou agora e será longa – estou a falar de décadas e não de anos. Ela não se
vai traduzir num colapso súbito, num esgotamento rápido dos recursos, mas será
lenta e gradual, como uma corda de seda que se aperta suavemente à volta do
pescoço. Significa isto que não estamos na iminência de um caos ou de uma
catástrofe generalizada, sendo mesmo normal que a situação melhore bastante
assim que os efeitos piores da crise financeira tenham cumprido o seu papel de
destruição. Estamos, isso sim, nos primeiros passos de uma crise de longa
duração (décadas), imprevisível no seu ritmo e no seu desenvolvimento concreto.
A segunda vertente da crise civilizacional que se agudizou em 2008 é resumida
na expressão «mudança climática». A expressão é simples, mas a sua abrangência
é imensa. Para quem ainda não o entendeu, é o maior desafio da humanidade no
século XXI. Trata-se de uma verdadeira caixa de Pandora da qual tudo depende,
desde a mudança do nível dos mares, a migrações das populações na ordem dos
milhares de milhões, drásticas alterações dos recursos alimentares, pandemias,
novas rivalidades (com destaque para a água), novas zonas de conflitos
(Árctico, por exemplo) e muitas outras. As suas implicações para a segurança
são gigantescas, embora seja impossível prever o ritmo, intensidade e direcção
da mudança em termos exactos. Trata-se de um assunto de que se fala há cerca de
vinte anos, tendo-se revelado a maior parte das previsões científicas como
muito modestas perante a realidade – quem acreditava em 2007 que, em 2008,
ambas as passagens do Árctico seriam navegáveis?
A crise económica e financeira e a mudança climática são, em resumo, as duas
maiores novidades que alteram o quadro geral de segurança em 2009 e as suas
implicações são imensas, embora com uma evolução imprevisível. As ameaças
posteriores ao 11 de Setembro, entre as quais o terrorismo, bem como as
anteriores, continuam a existir, mas os novos desafios são simplesmente de
outra escala, algo muito mais importante e abrangente. Tudo isto no quadro de
um mundo mais complexo, mais vasto, mais ligado, menos liderado, mais
«asiático» e com ideias mais confusas, onde quase ninguém percebe qual o fio
condutor, onde está o céu e a terra e, sobretudo, onde está a espada que pode
cortar o nó górdio. É este, em poucas palavras, o novo quadro de segurança em
2009. É perante esta mudança imensa que a NATO deve evoluir.
A HERANÇA A PRESERVAR
Que se deve fazer perante este quadro de um rápido desmoronar dos equilíbrios
passados, com a criação de um mundo mais perigoso e incerto?
Em primeiro lugar, devem-se reforçar os centros de estabilidade, de lógica e de
ordem, muito em particular aqueles que têm uma dimensão suficiente para serem
significativos numa escala global. A NATO é potencialmente o mais importante de
todos, mas para tal deve evoluir. O que é necessário é não mais uma pequena
adaptação, mas uma reformulação ampla dos seus princípios, valores,
prioridades, métodos e organização, ou seja, um verdadeiro renascimento que
responda aos novos desafios.
Algumas coisas há, contudo, que devem ser mantidas e preservadas, enquanto
outras se alteram ou são acrescentadas. Entre os elementos a manter, saliento
cinco:
A NATO deve continuar a ser uma aliança defensiva, o que é a única formulação
possível num entendimento entre democracias.
A NATO deve continuar a representar no essencial o elo de base entre a Europa
Ocidental e a América do Norte. Em conjunto estas duas regiões representam
somente 11,5 por cento da população mundial, mas são mais de dois terços da
riqueza mundial, continuam a ser o principal centro tecnológico e de inovação
do planeta, são a maior acumulação de força militar e de capacidades essenciais
que podem ter efeitos decisivos na criação de uma nova ordem mundial, desde que
usadas com visão e uma política comum. Poderá haver quem pense que um
alargamento a outras regiões ou à periferia da Europa teria o efeito de
aumentar ainda mais o peso da NATO. Na minha opinião um tal alargamento
contribuiria sobretudo para diluir a coesão já periclitante, para impedir a
elaboração e aplicação de qualquer política comum minimamente coerente e
operativa, ou seja, tornaria os imensos recursos inúteis. O problema não é a
dimensão, nem sequer a falta de forças ou de recursos; o problema central é a
falta de um pensamento, de uma teoria aplicável que distinga o secundário do
importante, a espuma das coisas da sua essência. A Europa Ocidental e a América
do Norte têm uma coesão única à escala mundial em termos do tipo de regime, dos
valores defendidos e da evolução histórica. A inclusão de outras sociedades que
não partilhem deste legado comum seria paralisante para a NATO. O núcleo
central da NATO deve, em resumo, ser preservado sem mais alargamentos
significativos, enquanto o seu âmbito de acção aumenta através de parcerias e
acordos diversos.
A NATO deve continuar a ter uma formulação flexível, e algo ambígua, das
obrigações efectivas. Deve manter a obrigação da defesa comum, mas deve ser
flexível em termos do que se entende exactamente por isto, até porque esse
entendimento tem variado e continua a variar muito depressa. Vivemos numa época
em que a flexibilidade das definições é a chave do sucesso e a preocupação
escolástica com o rigor e a exactidão é o caminho mais seguro para o fracasso.
O alcance pleno do terceiro ponto só se entende no seguimento deste texto,
mas é preciso acrescentar que a NATO deve continuar a assegurar uma defesa do
território, pessoas e bens dos estados-membros. Isso é necessário, mas está
longe, muito longe, de ser suficiente.
A NATO deve manter e aprofundar os seus dois principais instrumentos de acção
herdados do passado: uma padronização comum de procedimentos, logística,
tácticas e métodos e uma estrutura de comando permanente. A primeira assegura a
capacidade de operações conjuntas e combinadas, algo essencial; a segunda
garante a flexibilidade necessária para montar uma operação mesmo de grande
envergadura em pouco tempo.
Isto é o que se deve manter a todo o custo, a herança positiva do passado que
não pode ser erodida ou destruída. Mas muitas outras coisas devem ser alteradas
ou acrescentadas.
OS PILARES DA MUDANÇA
A primeira mudança diz respeito aos objectivos. O objectivo essencial da NATO
de defesa colectiva era expresso no artigo 5.º, alterado no seu significado
pelas revisões dos conceitos posteriores a 1990. A NATO deve manter como
objectivo central a defesa, mas entendida numa acepção moderna. Isto significa
em termos simples que se trata não de uma defesa do território, vidas e bens
(embora isso seja necessário), mas sim da defesa de valores comuns e de uma
forma de vida.
A diferença é imensa. Se adoptamos a primeira acepção estamos a falar de uma
defesa passiva e reactiva, que se esgota na preparação da resposta a uma
eventual agressão vinda do exterior contra um território que é determinado à
partida. Pelo contrário, se adoptarmos a segunda acepção, estamos a falar de
uma defesa activa, que se exerce numa escala global contra desafios e ameaças
multifacetados, venham de onde vierem.
Mas, quais são os valores a defender numa escala global? Numa primeira
aproximação poderíamos ser tentados a pensar que se trata de «valores
democráticos», pois todos os membros da NATO são democracias semelhantes na sua
lógica básica. Ao fim e ao cabo, já os conceitos estratégicos de 1991 e 1999
referem que a NATO «baseado em valores comuns de democracia, direitos humanos e
estado de direito». Assim é efectivamente em termos dos regimes dos actuais
estados-membros. Simplesmente, uma coisa é constatar isto, outra muito
diferente é dizer que a NATO deve defender os valores da democracia numa escala
global. Dar esse passo seria, na minha modesta opinião, um erro colossal.
Seria um erro colossal por vários motivos. O primeiro é que daria a impressão
ao mundo que a NATO pretende exportar a democracia como sistema de governo, ou
seja, impor esta forma política a outras sociedades. Ora, a democracia não se
exporta e tentar fazê-lo só pode conduzir ao desastre. A democracia de tipo
ocidental é o resultado final de uma evolução secular, que moldou a sociedade
ao longo do tempo. Ela não é estável sem uma dada estrutura social e sem as
inerentes mentalidades, que não se decretam nem improvisam com campanhas de
formação rápidas. Tentar impor o regime político da democracia a uma sociedade
que não tem uma coisa ou outra é o caminho certo para o desastre e, ainda mais
importante, é antidemocrático. A democracia, em resumo, conquista-se, ganha-se
e defende-se, mas não se exporta.
A NATO não pode pois basear a sua acção global na ideia de expandir ou exportar
a democracia. Defender os valores da democracia em relação aos estados-membros,
sim; exportar para o mundo, não.
O grande erro da NATO e do Ocidente nos últimos anos foi justamente o de pensar
que a democracia se «exporta» e se impõe pela força, como se fosse uma questão
de tirar um dirigente do poder e colocar um outro. Mas não é. A democracia é
resultado de uma evolução e, se não for isso, é uma pantomina e uma aberração
que só a força mantém e, logo, será de curta duração em termos históricos. A
força das «revoluções democráticas» é que elas partem de dentro; quando isso
não acontece, não são revoluções, são invasões. Um dos grandes erros da
Administração Bush foi o de adoptar a ideia que a democracia e os seus valores
eram uma aspiração geral e imediata da humanidade e eram a solução de aplicação
geral a todas as sociedades, por mais diferentes que fossem.
A fonte de muitos dos problemas actuais no Iraque e no Afeganistão está em se
ter passado das operações de objectivos limitados e realistas dos anos de 1990,
para as operações de objectivos totais, as operações de «exportação da
democracia» do século XXI, que passavam pela mudança drástica da sociedade
imposta a partir do exterior, com a destruição do Estado existente e a
reconstrução de um outro. Como se o que fosse bom para uns, fosse bom para
todos; como se não houvesse diferenças, num mundo que tem cada vez mais
diferenças. As operações de objectivos limitados e realistas produziram bons
resultados com poucos recursos e quando isso não aconteceu (como na Somália)
permitiram uma retirada rápida sem traumas excessivos. As operações de
objectivos totais, de «exportação da democracia» à força, produziram atoleiros,
sorvedouros de recursos imensos, sem fim à vista e sem saída fácil, que
contribuem para a perda de prestígio dos regimes democráticos. A diferença é
imensa e quem não o entenda não entende o que é a democracia.
Historicamente temos poucos casos de «exportação da democracia» à força bem-
sucedidos. Os dois mais evidentes são a Alemanha e o Japão depois da II Guerra
Mundial, mas as condições eram muito especiais: foi no fim da mais intensa
guerra da humanidade, com o esmagamento total e completo da força armada desses
estados, com a destruição de grande parte da sua economia, com a quebra da
vontade de resistir. Mesmo assim, o sucesso final só foi possível porque eram
sociedades economicamente desenvolvidas, urbanizadas, com numerosa classe média
e, pelo menos num caso, com uma experiência anterior de regimes democráticos de
tipo ocidental. Apesar disso, foi preciso uma ocupação militar de décadas e um
imenso investimento de recursos a muitos níveis para estabilizar a democracia a
partir do exterior nestes estados. Ninguém hoje pode ou está disposto a pagar
esse preço, pelo simples motivo que os problemas reais são outros e são muito
mais fortes e importantes. Não entender isto é um erro colossal.
Em resumo, a NATO deve continuar a ser uma aliança baseada internamente nos
valores comuns da democracia, mas sem os pretender exportar ou fomentar pela
força. Os valores comuns que a NATO deve defender para o exterior, para ser uma
organização de dimensão regional mas de mensagem universal são outros. É
correcto que a NATO não aceite a adesão de membros que não sejam democracias
plenas, mas não é correcto que considere a exportação deste regime e dos seus
valores como a sua mensagem universal, a sua forma de estar no mundo, o eixo da
sua acção global. A diferença entre uma coisa e outra é imensa.
A NATO na sua acção global deve defender a médio prazo os valores de um quadro
de segurança humana ligado a um desenvolvimento sustentável, equilibrado e em
segurança. São estes valores e não quaisquer outros que representam a mensagem
universal dos próximos tempos e, quem não o entenda, pouco percebe do que se
está a passar. Há uma muito importante nuance a introduzir. De momento, ainda é
cedo para dizer «um quadro de segurança humana ligado a um desenvolvimento
sustentável, equilibrado e em segurança», por vários motivos que não vou
desenvolver. De momento, deve dizer-se somente que a NATO promove os valores de
um quadro de segurança humana, baseado nas leis e regras de aceitação
internacional. A diferença das poucas palavras que faltam é muito importante e
é justamente por causa disso que penso que actualmente ainda não se pode
adoptar a primeira formulação – serão precisos mais alguns anos e a evolução da
crise civilizacional que agora começa para que seja possível a transição de uma
formulação para outra.
Que é «um quadro de segurança humana, baseado nas leis e regras de aceitação
universal»? É vago, indefinido e histórico e ainda bem que assim é, pois o
tempo presente o exige. Os valores de um quadro de segurança humana são, em
primeiro lugar, universais e aplicam-se a todos os tipos de regime, pelo que a
NATO assume como sua uma linguagem global. Isto é básico e fundamental, pois dá
legitimidade, credibilidade e aceitação às operações que se venham a
desencadear. Em segundo lugar, os valores de um quadro de segurança humana, são
globais e não regionais. Em terceiro lugar, o quadro de segurança humana é
obrigatoriamente multifacetado, implicando uma acção conjugada em múltiplas
vertentes, o que obriga a NATO a crescer e a desenvolver-se para além dos seus
parâmetros de acção actual. A NATO, em resumo, deve preservar os valores da
democracia no território dos estados-membros através da defesa dos valores de
um quadro de segurança humana para o resto do mundo.
VERTENTES A DESENVOLVER
Uma das consequências de dizer que a NATO deve defender na acção externa os
valores de um quadro de segurança humana é que as prioridades da sua actuação
se alteram. Dizia-se que a NATO era uma aliança político-militar. Se os novos
objectivos forem plenamente assumidos, a NATO passa a ser uma aliança política,
que utiliza para alcançar os seus objectivos uma ampla panóplia de
instrumentos, sendo um deles o militar. A ferramenta da força militar passa a
ser somente uma das vertentes da acção, o que, seja acrescentado, é já hoje a
realidade em larga medida. Ninguém exige, por exemplo, a um carpinteiro que só
use serras para fazer um móvel, pois isso é impossível.
No momento presente, há duas vertentes da segurança humana prioritárias. A
primeira é a «segurança económica», como já se podia deduzir do discurso citado
do Vice-Presidente dos Estados Unidos.
Que se entende por isso em termos concretos? Por enquanto é vago e indefinido.
Por exemplo, ninguém duvidará que o combate à pirataria tal como se faz sentir
nas costas da Somália e do Extremo Oriente é um elemento da «segurança
económica». Isto não significa, porém, que a NATO deve montar de imediato
operações gerais de combate à pirataria em toda a parte. Não só isso seria
impossível, como iria contra um princípio básico da concentração de recursos
nas áreas prioritárias. O conceito de «segurança económica» é, porém, muito
mais vasto do que a liberdade de circulação. Ele inclui, por exemplo, a
necessidade de assegurar o acesso a recursos vitais de forma equilibrada ou o
combate a operações financeiras ilegais de larga escala que ponham em risco os
equilíbrios gerais. Mais uma vez são frases que, embora possam merecer o acordo
de muitos, nada dizem se não passarem pela peneira de uma estratégia de
aplicação concreta, com tudo o que isso implica – e muito é. O perigo aqui,
mais do que em qualquer outro campo, está nas aproximações «taleban». Dizer,
por exemplo, que se deve combater a economia ilegal (onde se inclui o
narcotráfico, o crime organizado, etc.) pode parecer algo correcto e louvável.
Mas, a verdade é que se, por um golpe de magia, a economia ilegal desaparecesse
do dia para a noite, isso representaria uma catástrofe económica global de
proporções incalculáveis. Não existe esse perigo, pois a economia ilegal já
alcançou uma escala global tal que a sua eventual destruição está muito acima
dos recursos e meios da NATO, mesmo que uma opção política disparatada
apontasse para esse objectivo. O sucesso da procura de uma «segurança
económica» depende da forma como se passa dos desejos pios à realidade; depende
da política para alcançar os objectivos da estratégia; depende de ter uma visão
de longo prazo.
Em última instância, quando se fala de uma «segurança económica» inserida num
quadro de segurança humana, estamos a falar nas regras da nova ordem económica
mundial, que deverá sair da crise do modelo económico e financeiro de 2008. As
novas regras vão-se erguendo e construindo aos poucos, num processo que está
longe de ser meramente de discussão académica ou debate científico. É um
processo essencialmente de força que aplica uma lógica numa escala global,
criando as alianças e entendimentos necessários para impor os novos valores da
ordem internacional. É o processo pelo qual se criam os pólos dos sistemas
internacionais e mundiais (não são a mesma coisa). Por enquanto estamos no
começo, nos primeiros e trémulos passos, pelo que ainda não é possível saber de
forma exacta quais as regras futuras. Penso mesmo que, a partir de determinada
altura num futuro não muito longínquo essas regras serão drasticamente
alteradas; será a altura em que passará a ser necessário promover os valores de
um modelo global de desenvolvimento sustentável – mas ainda é cedo, ainda não é
para agora. O que é necessário de momento é entender a necessidade de ter uma
acção activa, empenhada e numa escala significativa (a escala da NATO) na
definição e aplicação das regras futuras.
A outra vertente prioritária para criar um quadro de segurança humana é a
«segurança ambiental». Mais uma vez é muito difícil dizer o que se entende por
isto de forma exacta. No essencial e em termos simples, isto passa em primeiro
lugar por acordar em termos internacionais em princípios, procedimento e regras
de preservação ambiental e combate ao aquecimento global – uma fase curta, mas
com implicações imensas em termos sociais, de mentalidades e de formas de vida.
Num segundo momento, a segurança ambiental implica impor esses princípios
acordados, usando para tal vários instrumentos e criando uma organização global
eficaz na fiscalização e acompanhamento do processo. A força será, neste campo,
o último recurso. Mas, se, por exemplo, um Estado contrariar as regras
aprovadas internacionalmente, colocando em causa os equilíbrios ecológicos
planetários, penso que isso justificará futuramente uma intervenção da força
para impor os limites que a vida global exige e a NATO poderá ser o fórum
indicado para o fazer. Não já, até porque as regras e normas internacionais
ainda não existem numa escala significativa. Não já, mas num futuro próximo.
Há muitas outras vertentes envolvidas num «quadro de segurança humana», mas não
as vou mencionar. O ponto essencial que gostaria de salientar é que «defesa» já
não é o que era. Antes, quando da criação da NATO, era entendida essencialmente
como a preservação do território, das vidas e dos bens, pelo que a obrigação
principal resultante para a NATO era a de ajudar um membro que fosse vítima de
uma invasão do seu território ou de outra forma de ataque físico directo
proveniente do exterior. Hoje em dia uma tal possibilidade é remota, mas a
defesa é uma outra coisa. A «segurança económica» ou a «segurança ambiental»,
por exemplo, são elementos essenciais de um quadro de segurança humana, pelo
que um atentado a estas vertentes numa escala global é bem mais importante do
que uma «invasão física do território», na acepção do passado. O que está em
jogo desta vez é muito mais importante e básico, embora as aparências sejam o
contrário.
É por isto que NATO deve evoluir e preocupar-se com os valores alargados de um
quadro de segurança humana, equacionado numa escala global. É certo que eles
são vagos e imprecisos, mutáveis e em rápida evolução, sempre dependentes de
entendimentos flutuantes e nem sempre identificáveis como «ameaças» que
mobilizem a população. Mas o nosso tempo é assim e de nada serve olhar com
nostalgia para o passado.
Um outro aspecto a salientar é que quando a NATO se preocupa com um quadro de
segurança humana, está necessariamente a colocar-se num campo político e numa
dimensão planetária. Significa isto que terá de lutar pela edificação de regras
de aceitação generalizada para um quadro global de segurança humana, para em
seguida se preocupar com o seu acompanhamento, vigilância e, se necessário for,
imposição pela força.
A NATO, em resumo, deve evoluir para uma aliança política (e não político-
militar). Porquê? Porque a edificação de uma visão para um quadro moderno de
defesa ainda não está feita e é um trabalho essencialmente político e de
criação do pensamento; porque nenhuma outra instituição pode assumir tão bem o
entendimento entre as duas margens do Atlântico neste processo; porque esse
entendimento tem o potencial de ser de novo o eixo estruturante da futura ordem
global.
UMA ALIANÇA A VÁRIOS RITMOS
O grande problema da NATO é que ela cresceu muito – talvez demasiado – nos
últimos anos. Os novos membros têm preocupações diversas, sendo compreensível
que alguns ainda vejam a NATO como a garantia no essencial de uma defesa do
território e da soberania contra ameaças externas – sejam elas as da nova
Rússia ou outras. Alguns dos novos membros podem mesmo ser tentados a ver na
continuação do alargamento para Leste o objectivo principal da futura NATO,
pois isso reforça a sua sensação de segurança perante as ameaças tradicionais
sentidas.
Para muitos dos antigos membros o panorama global é mais diversificado e
complexo. O problema central não é garantir a preservação da soberania e do
território contra uma ameaça localizada (seja a Rússia renascida ou outra), mas
sim garantir a NATO como instrumento importante da criação de um quadro de
segurança humana que seja um pilar da nova ordem global e o instrumento da sua
edificação. São perspectivas diametralmente opostas, que facilmente se tornam
contraditórias.
A transição necessária será difícil e complexa, pois não há unanimidade nem vai
haver, pelo menos por enquanto. Este facto pode transformar a NATO numa aliança
a vários ritmos. É um perigo, mas é um perigo menor perante a alternativa da
paralisia ou da inacção. O pior que podia acontecer era a NATO não cumprir o
papel que só ela pode desempenhar no presente, de modo a ser uma organização
global com futuro. A aliança, em resumo, não pode ser o menor denominador comum
da sua composição alargada actual. A unanimidade deve continuar a ser
procurada, mas, quando não for conseguida, não deve impedir que se avance na
direcção necessária.
Se os membros que quiserem avançar forem em quantidade suficiente, eles devem
contar com o conjunto dos instrumentos ao dispor da NATO. Isto pode implicar
uma aliança a vários ritmos, tal como existe uma UE a vários ritmos, o que não
é o ideal, mas a alternativa da paralisia é bastante pior.
A NATO deve estar preparada, em resumo, para se assumir como uma aliança a
vários ritmos, em que um grupo com peso significativo pode avançar com acções
que não tenham um apoio unânime e contar os recursos centrais da Aliança para o
fazer – desde que pague o preço da sua utilização.
A COMPLEXA ARTICULAÇÃO
Um dos problemas mais difíceis de equacionar é o da articulação da NATO com
outras organizações a que alguns dos estados-membros pertencem, principalmente
com a UE, dentro da sua legítima preocupação de definir uma política europeia
de segurança e defesa. A NATO e a UE são obviamente complementares, mas a
dificuldade da sua articulação está em conseguir duas coisas: evitar
duplicações de capacidades muito caras e fazer com que os estados-membros não
ficam de mãos amarradas, caso alguma vez tenham de usar as capacidades comuns
para fins próprios, que alguns dos outros não partilham. É uma dificuldade
real, pelo simples motivo que, embora a Europa Ocidental e a América do Norte
partilhem muita da visão sobre a ordem internacional e os seus princípios,
continuam a ter estratégias próprias e não totalmente coincidentes, sendo que
do lado europeu existem muitas. O problema é ainda agravado pelo facto de
estados importantes (como a Turquia) só fazerem parte de uma das organizações.
A resposta tem de ser flexível e passa por vários desenvolvimentos que criam
uma arquitectura complexa, mas difícil de evitar. Em primeiro lugar, é preciso
ter em conta que no futuro próximo se vai afirmar a necessidade de desenvolver
rapidamente capacidades ainda embrionárias, tudo dentro do enquadramento de uma
rápida revisão dos valores.
Uma dessas capacidades, por exemplo, é a ciber-segurança, que não pode ser
equacionada somente no âmbito de um Estado. Na recente Guerra da Geórgia a
estabilização da situação e contenção dos estragos passou pela capacidade
americana de deslocar rapidamente uma equipa de ciberguerra e usar os recursos
próprios para assegurar que os principais sistemas da Geórgia não ficavam
paralisados, com o inevitável caos social ao fim de pouco tempo. Outras
capacidades, já identificadas no documento da NATO de 2006, são as ligadas às
operações de estabilização. Outras ainda passam pelo desenvolvimento do poder
espacial (antes era normal dizer aeroespacial), ligada aos múltiplos sistemas
residentes no espaço.
Penso que, se queremos que a NATO se afirme no futuro como organização global
com real capacidade de actuação é necessária uma aproximação integrada, mas de
arquitectura muito flexível, de modo a permitir os «vários ritmos» e
sensibilidades da organização e das outras organizações que com ela se
articulam. As arquitecturas políticas para o conseguir são muito variadas. Um
exemplo vem do passado e é dado por um projecto da NATO que funciona com
sucesso há muitos anos: a unidade de aviões radar E-3A Sentry, que funciona a
coberto das cores do Luxemburgo (um dos mais pequenos estados da NATO), mas com
uma composição internacional. É o caso de uma capacidade muito cara mas
imprescindível desenvolvida em comum com um chapéu-de-chuva que tanto pode ser
da NATO como da UE. Desde que os estados envolvidos tenham garantias que, em
caso de crise, esta capacidade comum pode ser utilizada por uma coligação
significativa que esteja disposta a pagar os custos, mesmo sem o acordo de
todos, não haverá a tentação da duplicação. O que é indispensável é ultrapassar
o paralisante estigma da necessidade da unanimidade e colocar as capacidades
comuns ao dispor de coligações de vontade parciais, desde que tenham a dimensão
necessária (há nisto um princípio muito simples: se conseguirem pagar o preço
da utilização concreta, então é porque têm a dimensão necessária).
Em termos da gestão de crises é necessário ultrapassar rapidamente a ideia de
uma gestão «civil» e outra «militar», muito ligadas ao conceito errado que
existe um soft power como entidade independente de um hard power. Deve avançar-
se, em primeiro lugar, para a ideia de uma gestão integrada, onde as várias
capacidades são utilizadas em todas as fases, embora numa composição que varia
de acordo com as circunstâncias concretas. Num segundo momento, deve avançar-se
para a ideia, defendida por Portugal durante a presidência da UE, que a gestão
integrada de crises se deve incorporar num conceito mais vasto de
«desenvolvimento em segurança», com tudo o que isso implica, sendo esse o
melhor caminho para a prevenção de crises. São poucas palavras, mas as
implicações são imensas.
NÚCLEO REDUZIDO E PARCERIAS ALARGADAS
As teses anteriores apontam para um aparente paradoxo: a NATO deve manter uma
composição regional, mas ter uma acção global. Uma coisa parece chocar com a
outra.
Penso que isso não acontece em termos práticos, pois a dimensão global é dada
pelos valores que defende e pelas teorias a eles ligadas, enquanto a composição
regional é essencial para assegurar a coesão mínima. A dificuldade está em
criar mecanismos operativos na ordem global, mantendo o núcleo regional. A
solução está no aprofundamento da política de parcerias, agora com um novo
conceito.
A NATO deve começar por promover a procura de regras, procedimentos e
princípios de aceitação geral para edificar um quadro de segurança humana,
dando prioridade aos problemas mais sentidos em cada região, o que é uma
arquitectura política. Deve, em seguida, promover a criação de parcerias nas
regiões prioritárias que defendem os princípios acordados, tendo em conta que
os seus substanciais recursos podem ser decisivos para a implementação das
soluções. As parcerias têm na base um entendimento regional, eventualmente
alargado de modo a incluir estados da NATO que fazem parte dessa região e, em
seguida, devem ser reforçadas com um acordo concreto com a NATO como um todo.
Dou um exemplo: um quadro de segurança humana do Mediterrâneo pode incluir os
estados mediterrânicos da NATO e deve ser reforçado com um acordo com a Aliança
Atlântica como um todo; o mesmo se diz em relação a um quadro de segurança
humana que abarque o Atlântico (incluindo o Sul).
A prioridade na criação destas parcerias vai para três regiões na periferia
imediata da NATO: o Atlântico Sul (a integrar num quadro de segurança humana do
Atlântico), o Mediterrâneo e a zona do Cáucaso e Ásia Central. A tónica na
edificação destas parcerias deve variar de acordo com as regiões consideradas,
pois os problemas prioritários são diferentes. No caso do Atlântico Sul, é
prioritária a criação de um quadro geral de segurança humana na região,
centrado no Brasil, que tenha como campos de acção principais a delimitação e
controlo das zonas económicas, a livre circulação, os desafios ambientais, o
controlo das migrações ilegais, o combate ao terrorismo, o apoio a estados
frágeis ou em colapso (quando tal se justifique) e a definição de regras de
acesso aos substanciais recursos da região. Já no caso do Cáucaso e da Ásia
Central, o quadro de segurança humana para a zona passa essencialmente pelo
problema energético e implica um entendimento de fundo e de longo prazo com a
Rússia.
Não se trata de «exportar democracias» ou valores democráticos; trata-se de
criar um quadro de segurança humana virado para a resolução não violenta dos
problemas mais sentidos actualmente. Não é uma resposta a «ameaças»; é uma
resposta a «desafios», o que é diferente. É a diferença entre o antes e o
depois de 2008.
No campo das parcerias o pilar europeu da NATO, muito em particular o núcleo
dos estados fundadores, tem grandes responsabilidades. Os estados europeus
fundadores devem ter o discernimento e a coragem para avançar de imediato,
mesmo sem um apoio generalizado. É particularmente importante a criação de um
quadro de segurança humana do Atlântico Sul e do Mediterrâneo. Portugal, em
particular, deve empenhar-se fortemente em ambos os campos onde pode ter um
importante papel apesar da reduzida dimensão, promovendo a liderança do Brasil
num dos casos e da França no outro. O que interessa não é a liderança
circunstancial e momentânea, até porque ela é cada vez mais diluída e
interligada. O que interessa é defender as teorias e ideias que garantam um
quadro de estabilidade mínimo num futuro que se adivinha conturbado e violento.
A TENTAÇÃO DA DISPERSÃO
Vivemos num mundo instável, imprevisível e perigoso e tudo indica que esses
factores vão acentuar-se no futuro imediato. As crises, de vários tipos e de
pequena ou grande dimensão, vão aumentar, seja por efeito das dificuldades
financeiras e económicas ou dos problemas ambientais, com a proliferação das
catástrofes naturais e humanitárias.
A NATO, ou qualquer outra organização de dimensão global, vai ter muitas
solicitações para intervenções dos mais variados tipos. Será impossível
responder a todas. O ponto essencial é ter uma política clara, saber onde estão
as prioridades, focar no que é essencial, perceber que as tendências futuras
ainda dão os primeiros passos e evitar as tentações de ambições excessivas.
Deve-se fugir das generalidades simplistas dos princípios ditos morais e basear
a acção numa compreensão das mudanças em curso e do seu sentido.
Um dos maiores perigos são as operações de «objectivos absolutos», aquelas que
visam algo praticamente impossível de alcançar, como seja mudar radicalmente
uma sociedade em pouco tempo, impor a «estabilidade» pela força ou impedir que
um Estado se torne um «santuário de terroristas», o que implica obviamente
mudar radicalmente a sociedade. Uma única destas operações pode ser um
sorvedouro imenso de recursos, que impede a sua concentração em áreas
prioritárias onde seriam mais produtivos, desgasta a imagem internacional da
NATO e cansa a opinião pública interna ao fim de muito pouco tempo. Estas
operações são «atoleiros», zonas de areia movediça, onde é muito fácil entrar e
muito difícil sair. São as operações típicas dos maus políticos, dos que
entendem o mundo a partir do olhar distorcido de uma visão dita moral, dos que
pensam que o que foi será, dos que odeiam a complexidade, dos que não entendem
a diferença, dos que acham que a força tudo pode, dos que não têm visão de
longo prazo. O Ocidente tem infelizmente um historial triste de «missões
impossíveis» deste tipo, tanto em termos de Portugal (antes do 25 de Abril),
como da França ou dos Estados Unidos.
A política tem de estar sempre no comando e deve haver uma consciência dos
limites do uso da força. Quando esta for necessária, os objectivos do seu
empenhamento devem ser claros, realistas e de curto prazo; deve evitar-se
sempre que possível a colocação de forças militares em ambientes com uma
geografia humana hostil. Em certo sentido, e digo-o apesar de saber que vou ser
muito criticado por isso, é necessário um regresso às operações de objectivos
limitados, ditas cirúrgicas e à distância, dos anos de 1990 (as tais que
funcionavam, lembram-se?), onde se aproveitava plenamente a vantagem da
superioridade tecnológica, evitando-se colocar a força militar no seio de
massas humanas hostis. Alguns leitores mais seguidores da moda dirão, talvez,
que é impossível evitar isso, sendo necessário colocar as «botas no terreno»,
mesmo quando o «terreno» é do mais hostil possível. Penso que não, ou, pelo
menos, não na esmagadora maioria dos casos. É tudo uma conjugação de objectivos
realistas com a visão de longo prazo e a consciência dos limites do uso da
força. O que não se pode é apontar para operações militares de «objectivos
absolutos», para a ideia de que a força militar tudo pode e tudo faz.
O problema central não é o de organizar muitas operações de modo a intervir em
todas as crises. Esse é o caminho do desastre certo. O problema central é o de
entender o que é importante e criar o quadro político que permita soluções
realistas para crises muito diferentes. Deve ser entendido que em certos casos
as crises têm de seguir o seu caminho, de modo a que o novo possa nascer, pelo
que uma intervenção que vise meramente «evitar a destruição» mais não faz do
que adiar e agigantar o problema, sem o resolver.
A política deve estar sempre no comando, as operações militares são sempre
político-militares e o fio condutor é a visão dos grandes objectivos
estratégicos e não a aplicação generalista de princípios ditos morais e
apresentados como universais. Quando não houver soluções militares claras e de
curto prazo, não se pede à força militar que faça milagres; adoptam-se
estratégias alternativas e deixa-se que o tempo faça o seu trabalho.
Estamos aqui no terreno entre a justificação oficial da política e a política
real, uma fronteira sempre muito difícil. Deixem que volte à parte inicial
deste artigo sobre o que era a política real americana em 1949 e a forma como
ela era apresentada publicamente. É um bom exemplo para compreender que a
política real não pode ser dita no momento em que é aplicada, sob pena de
perder eficácia, mas ai de nós se ela não existe. Quando isso acontece, caímos
nos atoleiros, nas zonas morais de areia movediça, nos becos sem saída que
causam os grandes traumas.
UM FACTOR ESTRUTURANTE DA NOVA ORDEM GLOBAL
A NATO tem o potencial para ser um factor estruturante da futura ordem global.
Nenhum dos seus componentes considerados de forma isolada tem esse potencial –
nem os Estados Unidos nem a Europa, independentemente de saber se estamos a
falar na Europa-NATO ou na Europa-UE, que não são completamente coincidentes.
É certo que num horizonte de médio prazo o centro da ordem global tende a
deslocar-se para Oriente, mas isso não significa que este se torne o eixo
estruturante da futura ordem global. Uma das dificuldades para que tal aconteça
é que o «Oriente» tem vários centros, desde a China, à Índia, ao Japão, à
Rússia e outros. O que é mais, estes vários centros não têm a coesão histórica,
de mentalidades e de partilha de valores da NATO, pelo que o entendimento entre
eles é muito mais difícil que no caso da bacia do Atlântico.
A transferência do centro do poder global para Oriente a todos os níveis é o
principal motivo porque a NATO deve assumir os valores universais de um «quadro
de segurança humana» e não os valores de um «sistema de democracias de tipo
ocidental».
A NATO deve transformar-se numa organização política, como sendo a base de um
entendimento privilegiado entre a Europa e a América. A NATO inicial era uma
forma de incluir a Europa Ocidental na grande estratégia americana dentro da
vertente militar; a NATO futura pode ser uma forma de incluir os Estados Unidos
na grande estratégia europeia numa vertente fundamentalmente política. O que
pretendo dizer com isto, é que a Europa deve ver na NATO o instrumento
fundamental para criar uma dimensão significativa em termos globais, agregando
a si os Estados Unidos. Isto é particularmente importante numa altura em que os
Estados Unidos podem ser tentados a alterar o seu posicionamento tradicional e
procurar os aliados principais do lado do Pacífico e não do lado do Atlântico.
Não se pretende com isto dizer que o entendimento com a China e os restantes
poderes da Ásia não seja positivo e importante. O que se pretende dizer é que,
do ponto de vista europeu, o entendimento central tem de continuar a ser com os
Estados Unidos e que a NATO, e só a NATO, tem actualmente o potencial para ser
um eixo estruturante da ordem futura, desde que ultrapasse os fantasmas do
passado.
A questão que continua em aberto é a de saber quais os princípios, as soluções
e os entendimentos que estarão na base da futura ordem, a que sairá da actual
desordem. Disto, que é essencialmente uma questão teórica, depende a formação
do eixo central da futura ordem. Se a Europa o entender bem, a janela de
oportunidade está aberta. Caso contrário, os Estados Unidos farão as opções
inevitáveis. A janela de oportunidade não vai permanecer sempre aberta.
SERÁ O QUE DEVE SER?
Será a NATO aquilo que deve ser? Em termos simples, não hesito em responder
«não». Pelo menos, no curto prazo não será. O peso do passado é demasiado
forte, tal como é demasiado forte o peso das adesões recentes. As pessoas ainda
não entendem o que se está a passar, ainda não perceberam que é algo de
radicalmente novo.
O que vai prevalecer no curto prazo – entendendo por isto a Cimeira de
Strasbourg, em 2009, e possivelmente a de Lisboa – será uma solução de
compromisso. A NATO vai evoluir, não para o que deve ser, mas para o que pode
ser.
Há várias e importantes reservas no seio da NATO para impedir um seu
renascimento imediato. Reservas por parte de quem continua a ver nela
essencialmente a garantia de uma defesa territorial contra agressões do Leste;
reservas por parte de quem encara a NATO como forma de avançar com estratégias
regionais próprias, a olhar para o Sul; reservas por parte de quem não entende
que a Europa ou será global ou não será; reservas por parte dos Estados Unidos,
ainda muito marcados pela arrogância da visão Bush, que ainda não entenderam
que precisam refazer o elo com a Europa para continuar a ser o eixo da futura
ordem global.
Tudo indica assim que vamos ter mais um compromisso no curto prazo. Vamos ter
não a mudança que os tempos pedem, mas uma pequena alteração, um passo no bom
sentido, mas ainda modesto e tímido. Será um ponto de encontro entre visões
muito diferentes, marcado pelos preconceitos herdados do passado.
E no médio prazo, será possível aproveitar a janela de oportunidade e
transformar a NATO num dos elementos estruturantes da ordem futura? Não o sei
ao certo e penso que ninguém o sabe. Depende sobretudo da velocidade da
evolução, das pessoas e do impacto das suas ideias e teorias. A janela de
oportunidade está aí e é real. Tudo depende de saber se prevalece uma teoria
global lúcida e flexível, ou as preocupações mesquinhas de curto prazo, sem
qualquer futuro, mas com muito presente.
Para que a NATO cumpra o seu papel precisa de uma profunda alteração, que não
será fácil nem simples. Precisa de passar de uma organização passiva para uma
activa; de regional para global; de político-militar para política; precisa de
avançar nas respostas aos desafios emergentes, com prioridade para a segurança
económica, ambiental, energética e das informações; precisa de ser mais rápida
nas respostas; mais flexível e projectável; precisa de assumir como seus os
valores universais da construção de um quadro de segurança humana; precisa de
consolidar o núcleo central; precisa de consolidar à volta deste núcleo
parcerias regionais, com as três prioridades referidas; precisa sobretudo de
entender a grande mudança em curso. Não vai ser fácil ou rápido, mas o que está
em jogo é a ordem global – é o «grande jogo» e as regras mudam muito depressa.
[1]Entendi este artigo como sendo de opinião pessoal. Significa isto que as
opiniões aqui expressas são exclusivamente pessoais e não comprometem qualquer
instituição a que possa estar ligado. Na minha opinião é assim que deve ser
quando os assuntos são polémicos, porque os riscos devem ser assumidos em
termos pessoais e não institucionais.
[2] Uma abordagem um pouco mais desenvolvida surge no artigo «Entre antigas
ameaças e desafios emergentes ' por mares nunca de antes navegados» (Nunca de
Antes – Anuário do IDN, a publicar em 2009).
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