Portugal e a NATO: A Política colonial do Estado Novo e os Aliados (1961-1968)
Portugal e a NATO
A Política colonial do Estado Novo e os Aliados (1961-1968)
[1]
Pedro Manuel Santos
*
Este artigo analisa a forma como a diplomacia portuguesa actuou na Aliança
Atlântica em defesa da política colonial do regime e quais os obstáculos
encontrados ao longo da década de 1960, logo após o eclodir da luta armada em
Angola. Destaca também o papel que as duas administrações norte-americanas
(Kennedy e Johnson) tiveram no seio da Aliança Atlântica e qual a influência no
rumo da política colonial de Portugal e as opiniões dos restantes aliados.
Palavras-chave: NATO, Estado Novo, política colonial, Estados Unidos
Portugal and NATO. The colonial foreign policy of «Estado Novo» and the allies
(1961-1968)
This article analyses the way Portuguese diplomacy worked trough NATO to defend
the regime’s colonial policy, as well as the obstacles it faced during the
1960’s after the beginning of the armed conflict in Angola. It also emphasizes
the role of Kennedy and Johnson administrations in the Atlantic Alliance and in
the Portuguese foreign policy development as well as the allies’ perception on
Portuguese behaviour.
Keywords: NATO, “Estado Novo”, colonial policy, United States
A posição de Portugal na NATO caracterizou-se desde a formação do Pacto, em
1949, por um anacronismo latente. Era o único aliado cujo regime nunca escondeu
a admiração pelos regimes depostos na II Guerra Mundial e cuja filosofia
política não se compaginava com a das democracias ocidentais. Foram questões de
ordem geopolítica e estratégica que ditaram o convite à adesão de Portugal
[2]
. As duas consequências imediatas da entrada de Portugal na NATO verificam-se
nos acordos assinados com os Estados Unidos em 1951. Em Janeiro, assinou-se o
acordo de «Auxílio Mútuo para a Defesa de Portugal e Estados Unidos da América»
e em Setembro do mesmo ano o «Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados
Unidos». Apesar de as disposições do tratado não preverem a utilização do
armamento NATO fora da área do Atlântico Norte, Portugal consegue incluir um
anexo secreto aos acordos de 1951 que salvaguarda, ainda que ambiguamente, uma
possível utilização daquele armamento nas colónias portuguesas. Nas palavras do
historiador António Telo, a «participação portuguesa na NATO é um "mal
necessário", mas que não vai alterar os conceitos de defesa existentes,
pelo que se mantém a prioridade à Península e ao império»[3]. A política
colonial do Estado Novo continuaria, portanto, a ser um dos vectores da
política externa portuguesa.
Ao contrário do que acontecia no fórum das Nações Unidas, a política colonial
portuguesa nunca foi alvo de ataques dos aliados no seio da Aliança. A NATO
funcionava como um refúgio dos ataques internacionais. Salazar tentou optimizar
esta situação, garantindo para Portugal apoios que pudessem contrariar os
«ventos de mudança» que se adivinhavam em África.
Este artigo tem por objectivo mostrar a forma como a diplomacia portuguesa
actuou na Aliança Atlântica em defesa da política colonial do regime e quais os
obstáculos encontrados ao longo da década de 1960, logo após o eclodir da luta
armada em Angola. Também se destacará o papel que as duas administrações norte-
americanas (Kennedy e Johnson) tiveram no seio da Aliança Atlântica e até que
ponto é que isso influenciou o rumo da política colonial de Portugal e as
opiniões dos restantes aliados.
A SOLIDARIEDADE ATLÂNTICA E AS VOTAÇÕES NA ONU
Após o início das revoltas nacionalistas em Angola, a 4 de Fevereiro e a 15 de
Março de 1961, Portugal continuava a debater-se com as resoluções
anticolonialistas na ONU. Na mesma altura, a Libéria apresentava uma queixa
contra a política colonial portuguesa no Conselho de Segurança. Na sessão do
Conselho do Atlântico Norte, a 3 de Março de 1961, Portugal procura concitar o
apoio atlântico para as votações em Nova York. O objectivo português era criar
um «bloco NATO» que desse garantias de não fazer aprovar as resoluções contra a
política colonial do Estado Novo. Ante este desígnio, Averell Harriman[4] foi
claro: «seria mau promover um bloco NATO», uma vez que não existem «blocos de
países», mas sim «países individuais cada qual com o seu ponto de vista
particular». Após esta tirada, acrescentou que «Portugal não podia contar que
todos partilhassem plenamente o seu ponto de vista, tal como os Estados Unidos
não esperavam que as suas atitudes merecessem sempre o apoio dos restantes
aliados». Temendo a posição desfavorável da novel Administração norte-
americana, António de Faria, embaixador de Portugal na NATO, lança um repto a
Harriman: «Se alguma das nossas províncias ultramarinas viesse a ser atacada e
a tivéssemos de perder em face da indiferença dos nossos aliados, seriam
inevitáveis acontecimentos de maior gravidade em Portugal e nenhum Governo
poderia manter-nos na Aliança Atlântica.»[5] Estava iniciado o debate sobre a
solidariedade atlântica, ou a falta dela, nas questões referentes a assuntos de
um aliado NATO.
O problema colonial português não passou despercebido no Conselho. O embaixador
holandês na NATO, Dirk Stikker, aconselhou António de Faria a procurar
«elementos americanos importantes e influentes capazes de melhor compreensão»
da política externa portuguesa. Era o caso de Dean Acheson, com quem Portugal
«deveria entrar em contacto e que agora presidia [a um] grupo nomeado por
Kennedy para estudar a posição americana e eventuais reformas na NATO»
[6]
. Por último, o embaixador aconselhava Portugal a não fazer nada que
comprometesse a segurança e defesa da Europa e que nem sequer pensasse em sair
do Pacto. Esta advertência fazia-a como amigo de Portugal.
Os restantes aliados sentiam que a hostilidade americana podia ser
contraproducente e a votação americana na ONU, em Março de 1961, não deixou
ninguém indiferente na NATO. No dia 20 de Março de 1961, Casardi, secretário-
geral interino que substituíra Spaak após o pedido de demissão do belga, em
Fevereiro de 1961, perguntava a Faria se Portugal estava interessado em levar a
questão de Angola a discussão no Conselho da NATO ou se preferia o embaixador
português que fosse ele a levantá-la
[7]
. Tudo isto porquê? Porque o embaixador italiano considerava que os Estados
Unidos não tinham respeitado as disposições contidas no parágrafo 3.º, alínea
c, do «Relatório dos Três Sábios». Nesta alínea encontra-se a seguinte
disposição: «Nenhum governo deve adoptar uma política definitiva ou fazer
declarações políticas marcantes sobre questões importantes para a Aliança ou
para um qualquer dos seus membros sem a consulta prévia, excepto se houver
impossibilidade material demonstrável.»[8] Ou seja, os Estados Unidos deviam
ter consultado previamente os países membros da Aliança. Isso dava garantia
moral e jurídica ao apoio que Portugal necessitava para discutir a questão no
Conselho da NATO.
A 20 de Abril, numa longa exposição ao Conselho, António de Faria comunica aos
restantes parceiros a mágoa e a desilusão do seu país relativamente às votações
na ONU. Relembrou aos presentes que à questão da ONU, se Portugal administrava
algum território que se enquadrasse na definição de território não-autónomo, o
Governo português respondera sempre que não. Esses territórios eram parte
integrante da Nação, logo, qualquer interferência das Nações Unidas seria vista
como ingerência nos assuntos internos do país, o que ia contra a Carta das
Nações Unidas. As províncias ultramarinas, na óptica do Estado Novo, davam
garantias económicas e condições geoestratégicas para uma defesa contra o
comunismo mundial. Esta posição ficou atestada nas palavras do representante
português: «nós recusamos esta demissão [abandono da defesa das possessões
africanas], esta traição dos valores morais, aos quais desejamos ficar
agarrados.» Segundo Faria, adoptar posições que conduzissem a «novos Congos»
era o que os Estados Unidos estavam a fazer quando propugnavam pela
autodeterminação dos povos africanos. No final da sua exposição, o
representante português lançou um apelo em nome do seu Governo para que «os
países amigos e aliados não assumam uma posição de hostilidade para com
Portugal». Caso «não lhes seja possível votar a seu favor, ao menos que se
abstenham e que os seus representantes evitem fazer declarações públicas
desfavoráveis»[9].
Em suma, Portugal passava assim o ónus da questão para os seus parceiros
atlânticos: a defesa do Ocidente começava com a coesão da Aliança e para tal
teriam de ser os aliados a mostrar que desejavam tanto essa defesa como
Portugal. Com esta declaração, António de Faria reiterava a ideia de que se os
aliados não estivessem de acordo com a política ultramarina portuguesa, pelo
menos deviam abster-se de a criticar publicamente sob pena de isso violar o
espírito de coesão e unidade da Aliança.
O embaixador americano, Thomas Finletter, contraria esta visão, dizendo que as
posições recentes da administração americana tinham como propósito último
«contribuir para um Portugal mais solidamente estruturado» e «fortalecer a
Aliança, colectiva e individualmente». Este paradoxo evidente apenas se sentia
na maneira como os objectivos eram alcançados, uma vez que o princípio era o
mesmo. A NATO constituía o «fecho da abóbada da política americana, mas os
americanos eram também obrigados a tomar em consideração as outras pedras»
[10]
. Tornava-se claro que os Estados Unidos ampliavam o jogo da Guerra Fria a uma
escala global. O embaixador português «ataca» as declarações de Finletter com a
citação de um princípio geral da consulta entre os países da NATO apresentada
pelos Estados Unidos, no qual se diz que «o processo de consulta política
requer a aceitação do facto de que possa haver alturas em que os aliados têm
que "concordar em discordar", actuando aquele com a máxima discrição,
maturidade e consideração pelos outros»[11]. Ironiza mesmo a falta de tacto dos
americanos por não terem usado um princípio seu em Nova York. Conclui a réplica
com o apelo à solidariedade dos aliados, que era o mínimo que podiam fazer.
De todos os parceiros, o americano era aquele que mais evidenciava afastamento
face à política ultramarina de Portugal. Dentre os parceiros, aqueles que mais
apoiavam Portugal pareciam ser a França, a Itália e a Bélgica. Isto indiciava
que o equilíbrio de poderes na Aliança se definia entre as potências
continentais europeias e a potência do outro lado do Atlântico, tendo o Reino
Unido um papel de fiel da balança. Os britânicos manifestaram-se sempre
prudentes e esperaram sempre para ver que consequências se retirariam da
situação criada.
O FALHANÇO DO MULTILATERALISMO
Depois de comunicada a Salazar a nova orientação política para África da
Administração Kennedy, em Março de 1961, os norte-americanos procuraram reunir
apoio político na Europa. Não esquecendo a solidariedade atlântica, os Estados
Unidos encetaram diligências junto dos governos nacionais da França e do Reino
Unido. Para esse apoio ser efectivo, os governos francês e britânico deviam
fazer o mesmo que o Governo americano fizera: demarcar-se do apoio à política
colonial portuguesa. A razão da abordagem a estes dois parceiros europeus não
tem só que ver com a sua posição na NATO, mas também se deve ao facto de
pertencerem ao Conselho de Segurança da ONU. Dado que os Estados Unidos queriam
conjugar as posições destas duas organizações internacionais, seria mais fácil
pôr em prática um plano de coacção política se esta se fizesse através de
aliados, mormente no fórum da NATO, obtendo para isso o apoio dos países mais
importantes na Aliança.
É de iniciativa norte-americana o encontro tripartido, em Londres, a 4 de Maio
de 1961, que marca o início do desencontro de posições dentro da Aliança.
Washington convoca a França e o Reino Unido para um encontro onde se possa
concertar uma posição comum a apresentar no próximo Conselho Ministerial da
NATO, que decorreria no dia 8 de Maio, em Oslo. O objectivo deste encontro era
congregar um apoio político que se pudesse manifestar através de démarches
privadas da política colonial portuguesa. Para isso, os Estados Unidos
«contavam com o Reino Unido e a França, com toda a sua experiência em matérias
africanas, para melhor aconselhamento». O Reino Unido mostrou-se prudente na
decisão de condenar a política colonial de Portugal, o seu mais antigo aliado,
e a França revelou um cepticismo, senão mesmo oposição à ideia americana de se
demarcar politicamente de um aliado na Europa[12].
A pretensão dos Estados Unidos centrava-se no papel que cabia à ONU na
resolução do conflito colonial na África portuguesa. Para o representante
norte-americano, a intervenção da ONU era «inevitável» caso «a situação se
deteriorasse na África portuguesa». Mas antes de se chegar a esse ponto, era
necessário que a França e o Reino Unido fizessem valer a sua influência
política em Lisboa e mostrar a Salazar a premência das reformas nas colónias.
Tornava-se óbvio que os Estados Unidos não queriam utilizar o fórum da NATO
para discutir o colonialismo do Estado Novo, pois o bloco afro-asiático na ONU
estava a ser aliciado pela URSS. Era mais fácil agora o Ocidente aproximar-se
dos novos países africanos, saídos do jugo colonial, e procurar minimizar as
consequências no futuro do que confrontá-los directamente com um apoio a um
país colonialista. Isto mesmo é comunicado aos aliados neste encontro
tripartido: «Se o Ocidente tentar e falhar em manter o assunto Angola fora da
ONU, então perderemos muita da influência sobre a situação.»
[13]
Como era de crer que Portugal dificilmente aguentaria uma guerra em Angola sem
o apoio dos principais aliados, era preferível aproximarem-se desses países
africanos, apoiando os movimentos nacionalistas, por forma a anteciparem-se à
URSS. Caso isto não acontecesse, os Estados Unidos preconizavam mesmo um
«severo revés» nas relações com os países africanos[14].
Quer a França quer o Reino Unido mostraram-se relutantes em aceitar uma
intervenção da ONU, pois consideravam-na contrária à Carta. Para eles, os
acontecimentos em Angola eram da competência interna de Portugal e «[uma
intervenção da ONU em territórios portugueses]só tornaria as coisas piores».
Para os Estados Unidos, esta posição só favoreceria os soviéticos, pois deixava
«toda a iniciativa e acção para os países africanos. Isto, consideravam os
Estados Unidos, não é uma decisão acertada». Todavia, ficou acordado por todos
que por ora não se devia pressionar os portugueses no Conselho do Atlântico
Norte. Ou seja, os três aliados de Portugal preferiram deixar na penumbra as
resoluções deste encontro por forma a não beliscar a coesão e unidade da
Aliança, já que entre eles não se conseguiu chegar a um acordo unívoco, e isso
mesmo foi cumprido na cimeira da NATO, em Oslo. Neste encontro, Portugal
conseguiu o benefício da dúvida na resolução dos conflitos em Angola, contando
inclusivamente com o apoio militar da Aliança.
O ARMAMENTO NATO E A CIMEIRA DE OSLO
A primeira prova de fogo de Franco Nogueira – que entrara para os Negócios
Estrangeiros, a 4 de Maio de 1961, no seguimento da remodelação governamental
após o golpe falhado de Botelho Moniz no mês anterior – deu-se em Oslo, na
cimeira realizada entre os dias 8 e 10 de Maio de 1961. Era a reunião
ministerial da NATO e Portugal apresentava aos aliados a concretização das
diligências necessárias para a retirada temporária das suas tropas afectas à
NATO. Esta cimeira foi fundamental para a execução da política externa
portuguesa por duas razões. Em primeiro lugar, a nível bilateral com os Estados
Unidos, Portugal confirma o novo rumo dado à política externa da Administração
Kennedy, reiterada pelo secretário de Estado, Dean Rusk, num encontro ocorrido
à margem da reunião com o novo ministro português. Em segundo lugar, pelo
consentimento dado pelos aliados à retirada temporária do armamento NATO. Para
tal foi importante a argumentação utilizada por Portugal nas suas declarações
aos aliados.
Numa sessão anterior à Cimeira de Oslo, a 3 de Maio de 1961, António de Faria
comunicava aos aliados que o Governo português, «por razões imperiosas de ordem
nacional», se viu obrigado a alterar a sua contribuição militar e a desviar «as
escoltas oceânicas reservadas e afectas ao SACLANT» para África, bem como
algumas forças (subunidades militares) afectas ao SACEUR. Reafirmando sempre o
carácter provisório destas medidas, Faria concluiu a sua declaração destacando
«a urgência em nos defendermos contra as acções exteriores e garantir a paz em
determinadas partes do território nacional ultramarino». Houve por parte dos
aliados um consenso quanto a esta questão. Segundo o embaixador, «nenhum
representante permanente fez comentários»[15]. Estava gerado um consenso
momentâneo à volta da questão ultramarina portuguesa.
Dias depois, na cimeira ministerial, em Oslo, Franco Nogueira confirmou estes
dados e citou os exemplos recentes da França – na Argélia e da Bélgica – no
Congo – para justificar por si só o uso do armamento afecto à NATO numa
situação de claro perigo de insegurança para uma nação aliada
[16]
. Ou seja, estando iminente a degradação de uma situação que poderia degenerar
em perigo para a segurança de um país aliado, Portugal reclamava a igualdade de
direitos dos aliados: o que se aplicava a um, devia aplicar-se a todos[17].
Nesta cimeira, Nogueira não esconde o desagrado português relativamente à ONU,
chegando ao ponto de considerar ridículo que mais de metade do financiamento
daquela organização viesse de países da NATO. Segundo o ministro, esses países
fariam melhor em aplicar essas verbas em países subdesenvolvidos da própria
Aliança para uma melhor e mais eficaz defesa do Ocidente. Mais uma vez se nota
o interesse da diplomacia portuguesa em utilizar o fórum da NATO para
constituir um bloco de defesa em Nova York. O ministro critica directamente os
aliados na NATO que não têm dado o apoio que um parceiro atlântico por natureza
merece. «Não se pode falar de solidariedade atlântica quando ataques daqueles
do género da ONU são endossados por países da nossa Aliança.»[18] Isto é, o
ministro português joga emocionalmente com a questão da solidariedade
atlântica, não deixando de vincar aliás que uma Aliança sem coesão e unidade de
nada serviria ao Ocidente. Todas as fraquezas que os aliados pudessem
demonstrar seriam aproveitadas pela União Soviética. Por isso, tornava-se
necessário que todos se unissem e fossem solidários com um país aliado que se
dizia vítima de ataques de onde nunca suspeitariam que existissem.
Portugal desejava que a discussão sobre a questão ultramarina portuguesa fosse
desviada da ONU, onde lhe eram claramente desfavoráveis as suas posições, para
uma organização internacional onde tinha uma voz que era ouvida e onde sabia
que podia contar com fortes apoios. Assim, o Estado Novo consegue que o
Conselho do Atlântico conceda o seu aval ao apoio necessário para preservar a
segurança de um aliado. Este apoio provém da habilidosa argumentação portuguesa
que concita os dois maiores medos dos parceiros atlânticos: a falta de coesão
numa decisão que envolve um aliado, que poderia ser aproveitada politicamente
pela URSS, e a repetição de novos focos de instabilidade em África, caso não se
agisse imediatamente em prol da segurança do território.
A POSIÇÃO DOS ALIADOS NO SEIO DA NATO
Os Estados Unidos, ou melhor, a Administração Kennedy, constituíram
indubitavelmente o principal obstáculo à prossecução da política colonial
portuguesa no início da década de 1960
[19]
. Num relatório elaborado por Dean Acheson, a pedido de Kennedy, sobre o papel
da NATO na nova política externa norte-americana, o antigo secretário de Estado
de Truman foi peremptório: «a inoperância da ONU na resolução dos problemas só
provocaria divisões na Aliança.»[20] Para Acheson, não hostilizar um aliado num
organismo internacional só beneficiará a coesão e unidade da Aliança. A melhor
maneira de resolver um problema de um aliado é trazê-lo à discussão no Conselho
do Atlântico e proceder a uma consulta genuína entre os contendores. Essa
consulta genuína «pode muito bem ser dolorosa e áspera», mas é a única maneira
de ser «coerente com os princípios de tornar a Comunidade Atlântica um
instrumento efectivo para uma acção comum»[21].
Um outro relatório é entregue a Kennedy na mesma altura. Apresentado a 12 de
Julho de 1961, o relatório do Grupo de Trabalho Presidencial (Presidential Task
Force on Portuguese Territories in Africa) explanava a situação interna das
colónias portuguesas e preconizava algumas medidas a adoptar pelos Estados
Unidos a fim de se resolverem os conflitos em Angola. De acordo com o
relatório, «os portugueses não iriam restabelecer a ordem nos próximos tempos»
e «as suas tropas não conseguiriam ter sucesso em eliminar a actividade rebelde
no Norte [de Angola]», onde se verificavam com maior intensidade os ataques dos
nacionalistas da UPA[22]. Este ponto era já sinónimo de que era urgente
pacificar a zona, pois o tempo corria contra os Estados Unidos.
Não obstante os Estados Unidos reconhecerem que a sua «influência em Portugal e
dentro da NATO é limitada»
[23]
, a atitude africana devia ser acarinhada sem que se pusesse em perigo o uso da
Base das Lajes. É este o maior óbice dos Estados Unidos. Segundo as
prospectivas militares do relatório, uma oposição frontal e hostil a Portugal
provocaria graves danos políticos à coesão da Aliança Atlântica, podendo mesmo
dar-se o caso da retirada de Portugal da NATO e a perda da Base das Lajes. Esta
situação traria graves consequências para o dispositivo militar norte-americano
de defesa da Europa e do Médio Oriente. A solução deste dilema passava pela
congregação de apoios, no seio da NATO, dentre aqueles países que condenavam
publicamente o colonialismo e apoiavam a autodeterminação dos povos africanos e
os países escandinavos pareciam ser os parceiros ideais, pois tinham sido
unânimes em apoiar a resolução da ONU, que condenava a actuação portuguesa em
Angola, e a votar favoravelmente na Assembleia Geral contra a política colonial
portuguesa
[24]
.
Os grandes aliados da Administração Kennedy no seio da Aliança foram os
nórdicos. Importantes sectores da política norueguesa e dinamarquesa defendiam
publicamente a saída de Portugal da NATO. Na Noruega, os jornais afirmavam que
«Portugal comprometia os seus aliados com a sua política em Angola» que «não
promovia a paz e a segurança [no continente africano]». Para os noruegueses, «a
Carta da NATO devia ser revista para tornar uma tal política incompatível com a
participação [de Portugal] na Aliança Atlântica»[25]. Os dinamarqueses, por seu
turno, pronunciavam-se «em termos francamente violentos contra a presença de
Portugal na Aliança Atlântica, criticando a política seguida por este governo
tanto na ONU como na NATO». Havia mesmo nos círculos governamentais quem
defendesse a expulsão de Portugal da NATO, justificando que o «relativo
enfraquecimento militar da Aliança, resultante da exclusão de Portugal, seria
compensado pelo reforço moral que à mesma adviria de tal exclusão, dado que a
moral é mais importante do que os canhões»[26].
Contrariando estas posições extremadas, a Bélgica e o Reino Unido apresentaram
quase sempre uma «neutralidade benévola» no que dizia respeito à política
colonial de Salazar. Por exemplo, o embaixador belga, Spaak, era da opinião de
que Portugal devia «fazer todo o possível por liquidar o terrorismo em Angola
antes da próxima Assembleia das Nações Unidas, de maneira a poder anunciar até
lá reformas sociais, económicas e políticas nos territórios ultramarinos». Se
Portugal instituísse reformas nas suas colónias, Spaak supunha mesmo «que a
maior parte dos membros da NATO, que têm sido adversos, mudariam de atitude
colocando-se ao nosso lado»
[27]
.
O embaixador britânico, Stanley Tomlinson, afirmava não ser «provável que o seu
Governo se associasse às críticas exageradas feitas contra Portugal», por cujas
dificuldades tinha «uma profunda simpatia». Para o Reino Unido, a questão
colonial portuguesa era «delicada», uma vez que «a apreciação britânica da
natureza e do poder das forças em África divergia da apreciação feita por
Portugal». O que estava em causa não era o apoio a um aliado, mas sim o apoio a
uma política diferente da de um aliado. Quando Franco Nogueira anunciou as
reformas ultramarinas, em Setembro de 1961, o embaixador britânico afirmou que
estas «seriam insuficientes para pôr termo ao estado actual de agitação se não
fossem seguidas de outras com objectivo político». Mais uma vez se comprova a
maneira subtil de como os britânicos defendiam uma maior autonomia política
para as colónias sem o afirmarem abertamente. Esta posição ambígua do Reino
Unido iria pautar toda a actuação diplomática ao longo da década de 1960
[28]
.
É um propósito egoísta e calculista que está na base do apoio francês a
Portugal: De Gaulle queria autonomizar o poder do seu país em oposição à
supremacia exercida pelos Estados Unidos no quadro da aliança e para tal usou
Portugal como referência em África e possível ponto de apoio estratégico na
Europa. O apoio diplomático francês na NATO foi visível durante toda a década
de 1960. Esta união política entre De Gaulle e Salazar, ambos defensores de
estratégias e objectivos muito próprios, prosseguiu pari passu durante os
esforços diplomáticos portugueses para a defesa dos seus interesses em África.
Após o deflagrar dos conflitos em Angola, quando Portugal reclamava nas
reuniões do Conselho solidariedade para com um aliado que estava a ser atacado
no seu território, a França expressou-lhe todo o seu apoio. Às críticas dos
aliados de que Portugal praticava um regime de opressão nas colónias, o
representante francês na NATO dizia que «era absurdo pretender» tal coisa.
Portugal praticava sim um regime de «integração multirracial». O embaixador
francês relembra ao Conselho que a França apoiara na ONU a argumentação
portuguesa, pois acreditava que, «nos termos actuais da Carta, não se podia
obrigar Portugal a prestar informações sobre as suas províncias ultramarinas»
[29]
. Em síntese, estes dois aliados convergiram na opinião de que algo tinha de
ser feito para se alterar o quadro político e defensivo da organização numa
fase importante da Guerra Fria. França e Portugal estiveram sempre lado a lado
nas reuniões do Conselho da NATO, reflectindo a aliança desenvolvida desde o
final dos anos de 1950. Até à queda de Salazar, a França foi indubitavelmente o
grande apoio externo das campanhas portuguesas em África[30].
Um outro apoio importante à política colonial do Estado Novo na década de 1960,
mas que não se manifestou abertamente na NATO, foi a República Federal da
Alemanha (RFA). Este aliado nunca mostrou um apoio militante à política externa
de Portugal nos conselhos da NATO, ao contrário da França. A actuação alemã
pautava-se mesmo pela neutralidade quando em causa estavam as críticas à
política colonial de Salazar. Face às invectivas dos parceiros no Conselho, os
representantes alemães fizeram sempre de fiel da balança, uma vez que tinham a
consciência de que Portugal era um aliado demasiado valioso para se enxovalhar
diplomaticamente. O representante alemão, Von Plenke, argumentava numa reunião
do Conselho que as divergências existentes entre os parceiros atlânticos não se
deviam mostrar publicamente para não beneficiar os adversários. Declarava mesmo
que o seu país «nada faria para criticar publicamente Portugal», atitude que se
prolongaria por toda a década de 1960[31].
Grosso modo, estas eram as posições mais vincadas entre os aliados. Para
Portugal, a falta de solidariedade dos aliados traduzia-se na prática num
isolamento no seio da NATO. Esta ideia é confirmada por Salazar quando lhe
chega às mãos um relatório, classificado de muito secreto, dos serviços
portugueses de informação versando a política ultramarina portuguesa e a NATO.
Aí ficamos a saber que os «Estados Unidos já informaram vários países da NATO
acerca da proposta da Noruega no sentido de ser revista a permanência de
Portugal como membro daquela organização». Esta informação, sublinhada a lápis
azul por Salazar, indica o quão distante Portugal se encontrava das posições de
alguns parceiros atlânticos. Também o Reino Unido, a Dinamarca e a Holanda
tinham sido informados pelos Estados Unidos da intenção norueguesa de afastar
Portugal da NATO, enquanto que a Turquia manifestava aos próprios Estados
Unidos o pesar pelo descrédito de o Pacto «se continuar a identificar com
países profundamente "colonialistas"», acentuando que é «favorável a
uma revisão dos Estatutos da organização se houver interesse em que continue
como membro»
[32]
.
A ADMINISTRAÇÃO JOHNSON E O SUAVIZAR DE POSIÇÕES
O abrandar da pressão americana sobre a política colonial de Salazar acontece
durante a Administração Johnson. Uma das suas causas foi o maior envolvimento
militar e político dos Estados Unidos no Vietname. Portugal viu nesse facto uma
excelente oportunidade para fazer vingar o seu argumento de que era preciso
combater o comunismo internacional em toda a extensão do globo. Durante os
quatro anos da Administração de Lyndon Johnson (1964-1968) – não incluindo aqui
o período subsequente à morte de Kennedy, em Novembro de 1963 – não se
registaram grandes diligências diplomáticas, se compararmos com aquelas que se
registaram durante a Administração Kennedy, para inflectir o rumo da política
externa portuguesa no que toca a África. A única tentativa digna desse nome foi
o Plano Anderson, apresentado em 1965, pelo embaixador americano em Lisboa,
George Anderson, a Salazar[33].
Os americanos logo depreendem que, «num futuro imediato, nenhuma probabilidade
de mudança» existia «na atitude e determinação do Governo português»
relativamente às colónias africanas. Perante este cenário, o embaixador
Anderson recomendava que os Estados Unidos não forçassem a imposição e optassem
por ser «tão liberais quanto possível na autorização de licenças de exportação
para equipamento militar destinado a Portugal, à excepção de armas letais e
aviões de guerra»[34]. Esta posição do embaixador americano foi sendo moldada
e incrementada pelas visitas oferecidas pelo Estado português às colónias
africanas, tornando-se este diplomata a posteriori um defensor da política
colonial de Salazar. O historiador americano David Dickson concretiza: «a
entrega de armamento continuava a aumentar e a política da Administração
[Johnson] começou a girar em torno da aceitação da persistente influência
política dos portugueses»[35].
Johnson não perdeu então muito tempo com a questão colonial do Estado Novo. Em
Julho de 1964, a Embaixada em Lisboa dava o mote: «parece haver pouco a ganhar
e algo a perder em pressionar muito insistentemente com uma linha de análise
que os portugueses não estão preparados para acreditar ou aceitar».
[36]
Recorde-se que os Acordos dos Açores tinham sido suspensos por Salazar no
final de 1962 até que a política norte-americana fosse mais favorável a
Portugal. Constatando que o regime português era impermeável à argumentação a
favor da descolonização, a Administração Johnson preferiu não desgastar mais o
seu capital político junto de Salazar, numa altura em que os Estados Unidos
procuravam sensibilizar os aliados da NATO para o problema do Vietname.
Esse esforço diplomático estendeu-se ao Conselho do Atlântico. A argumentação
diplomática para reclamar apoio na NATO era quase uma cópia dos argumentos
utilizados pelos portugueses no início das insurreições em Angola, em 1961.
Veja-se o caso na cimeira da NATO, em Londres, em Maio de 1965, quando Dean
Rusk criticou «com aspereza a falta de solidariedade global dos membros da
Aliança que enfraquece esta perante a ameaça global aos membros da Aliança»
[37]
. Ou seja, os americanos utilizavam o argumento da solidariedade dos aliados
para reclamar apoio numa altura em que, segundo eles, defendiam os interesses
do mundo livre no Sudeste Asiático. A Aliança ouvia pela segunda vez e num
espaço de quatro anos a mesma argumentação. Portugal sentia que os norte-
americanos afinavam pelo mesmo diapasão e isso não deixou de ser reclamado como
uma vitória da diplomacia salazarista. Em Portugal, transmitia-se oficialmente
a ideia de que os americanos, «tão rígidos na interpretação da letra do Pacto»,
procuravam o apoio dos aliados na NATO «para as dificuldades com que se
deparavam no Vietname», ainda que tal apoio não se concretizasse. Criticava-se
mesmo a atitude dos Estados Unidos que, agora, por necessitarem de apoio para a
prossecução da sua política no Vietname, utilizavam o «critério da
solidariedade global e universal como único meio para fazer frente com sucesso
a uma ofensiva global e universal»
[38]
.
Em meados de 1966, a hostilidade americana face à política colonial portuguesa
desaparecera por completo. Uma das explicações para tal comportamento pode ser
corroborada pelo relatório produzido nesse ano pelo segundo-secretário da
Embaixada em Lisboa, Everett Briggs. Neste relatório, a recomendação principal
prendia-se com o abandono de qualquer iniciativa em relação a Portugal e às
suas colónias – os Estados Unidos deviam optar pela aproximação pragmática em
detrimento da aproximação ideológica no que tocava às questões africanas. Os
últimos anos das relações luso-americanas tinham sido manchados pelo confronto
ideológico de duas posições antagónicas com prejuízo para os Estados Unidos, já
que o Acordo das Lajes não fora renovado. Segundo Briggs, «a insistência na
autodeterminação como solução prática para a África portuguesa era inútil e
irrealista». A solução passava pelo reconhecimento público das mudanças
introduzidas pelos portugueses em África, logo após as insurreições
nacionalistas. Isso seria certamente valorizado pelo Governo português e a
Administração americana readquiriria o capital político necessário para a
renovação dos Acordos dos Açores. A recomendação de Briggs inspirava-se nos
resultados das tentativas pretéritas para inflectir o rumo colonial de Salazar,
desde as restrições à venda de armamento militar, passando pela posição
assumida pelos Estados Unidos nas Nações Unidas, que a nada conduziram. Em
última análise, o que os Estados Unidos deviam fazer era assegurar que Portugal
preparava as colónias para um futuro melhor, quer do ponto de vista económico
quer do ponto de vista social, sem se preocuparem «excessivamente com o
desenvolvimento político dessas áreas no presente»[39].
A EXTENSÃO DO TRATADO AO ATLÂNTICO SUL
A extensão geográfica do Pacto ao Atlântico Sul foi sempre invocada por
Portugal desde 1949. Durante as negociações para a adesão, Salazar procurou
integrar na área de defesa o Atlântico Sul, tendo em vista designadamente os
portos de Angola e o arquipélago de Cabo Verde e consequente defesa das
possessões europeias em África
[40]
. Mas a proposta portuguesa para a inclusão das colónias africanas na zona de
aplicação do tratado foi recusada durante as negociações. Os aliados europeus e
norte-americanos não estavam dispostos a patrocinar essa defesa do império
colonial português
[41]
.
O problema dos limites geográficos do Pacto não foi exclusivo dos portugueses.
Também a França e a Bélgica se fizeram ouvir na NATO. No caso da Bélgica, a
crise no Congo levou Bruxelas a utilizar a retórica dos «interesses comuns de
segurança consagrados no Pacto na esperança de que os outros aliados, incluindo
o líder da Aliança, fosse solidário e apoiante [no restabelecimento da ordem
numa zona fora do tratado]». Tal como invocou a França durante a crise do Suez,
em 1956
[42]
.
O que importa salientar aqui é a insistência com que Portugal utilizou o
argumento da extensão geográfica do tratado. Numa altura em que o armamento já
tinha sido enviado para África, Vasco da Cunha comunicava aos seus pares que
Portugal se vira obrigado «por motivos imperiosos de ordem nacional a reduzir
consideravelmente os seus compromissos NATO». Esta decisão ponderada pelos
governantes portugueses tinha por móbil a defesa da «integridade nacional» de
Portugal. O embaixador não deixou de referir também que todo o esforço que
Portugal estava a fazer fora do tratado «tend[ia] a preservar para o mundo
livre as regiões que em tempos de guerra seriam da mais alta importância do
ponto de vista estratégico»
[43]
. A ideia de que o Atlântico Sul devia ser guarnecido militarmente, por forma a
não permitir qualquer avanço das forças comunistas pelo flanco sul, era uma
ideia continuamente utilizada por Portugal.
Houve um momento na história da Aliança em que este argumento chegou a ser
considerado. Na sequência da crise dos mísseis de Cuba, em Outubro de 1962, foi
produzido um relatório (Documento MC100) pela Comissão Militar da NATO com uma
estimativa de ameaça a longo prazo. Neste documento, apontavam-se «as áreas do
oceano Atlântico como uma linha de comunicações vital para os membros da
Aliança» e alertava-se para o perigo de os soviéticos conseguirem uma
supremacia em áreas que naquele momento estavam nas mãos de aliados
[44]
. Era clara a referência à importância das bases portuguesas no Atlântico Sul
em caso de guerra. Depois da crise de Cuba, os altos comandos da NATO
ponderavam todas as hipóteses e Portugal aproveitou este facto para mais uma
vez reivindicar o valor estratégico das suas possessões em África. Por esta
altura, o tom das críticas dos aliados revelava-se cada vez mais fugaz e
intermitente. Já não havia a pressão diplomática que houvera logo após a
irrupção nacionalista em Angola.
Em 1964, Portugal expunha mais uma vez as suas reflexões estratégicas no que
diz respeito ao Atlântico Sul, relembrando que nunca impôs limites geográficos
à acção da NATO e que era em defesa dos valores ocidentais, os mesmos que os
Estados Unidos reclamavam na guerra do Vietname, que os portugueses combatiam
em África. Reclamava-se, então, uma alteração dos estatutos da Aliança que se
«deveriam inspirar nos valores» ocidentais, cuja crise de mentalidade no
Ocidente não lhes permitia ver o perigo evidente, pois «havia falta de coragem
para assumir a defesa desses valores»
[45]
. Esta tese foi debatida ad nauseam entre os aliados. Portugal concluía que «a
Aliança, tal como existia, tinha uma utilidade muito restrita», utilidade que
podia vir a ser irrisória «se o comunismo conseguisse levar avante a vasta
manobra de flanqueamento […] através da Ásia e da África»
[46]
. Este acenar do perigo comunista, aliado à conjuntura do momento, começou a
ganhar alguma aceitação e permitiu mitigar os ataques à política colonial de
Salazar dentro da organização.
A INSTALAÇÃO DO IBERLANT EM 1967
A instalação do IBERLANT (Iberian Atlantic Command / Comando Ibérico do
Atlântico), em Lisboa, em Fevereiro de 1967, constituiu talvez o maior endosso
político da Aliança ao regime de Salazar após o início das guerras de África.
Um ano antes, Salazar tomara conhecimento das duras críticas de De Gaulle ao
comando militar da Aliança e à forma como aquela estava a lidar com a ameaça
nuclear soviética. No relatório entregue ao ditador, duas hipóteses são
aventadas para as objecções francesas à NATO: primeira, as ameaças que o mundo
enfrentava, em especial a Europa, e que estiveram na génese do Pacto, em 1949,
eram de outra natureza; e segunda, os aliados deviam manter as suas obrigações
militares do Pacto face à ameaça comum, mas «não são necessárias nem desejáveis
a existência de uma força integrada e uma estrutura de comando»[47].
O endurecimento militar norte-americano no Vietname viera confirmar as
fragilidades da Aliança num momento crítico e De Gaulle aproveitou essa janela
de oportunidade para reclamar um maior protagonismo na Europa para a França. O
general queria, entre outras coisas, que o seu país tivesse um maior ascendente
político nos comandos da Aliança. Um subterfúgio utilizado por De Gaulle foi o
argumento da transferência do comando das bases americanas em França para os
franceses.
Dada a impossibilidade de ver cumpridos os seus desejos, o chefe de Estado
francês informa o Conselho no dia 12 de Março de 1966 que a França se retirava
da estrutura militar da NATO, embora se mantivesse como membro da aliança
política. «Estremece[u] o mundo ocidental»
[48]
, nas palavras de Franco Nogueira. À primeira vista, e fazendo fé no comentário
do ministro português, Portugal vê na decisão francesa uma consequência
terrível e inevitável da evolução política da Aliança ao longo da década de
1960. Em Junho do mesmo ano, num encontro realizado em Bruxelas, os catorze
aliados voltavam a debater o problema da França e fica decidido a transferência
da sede da NATO para a Bélgica. Para os britânicos e americanos não fazia
sentido a França integrar o quadro político da Aliança sem estar integrado no
sistema de defesa militar. A esta observação contrapuseram-se Portugal, Canadá,
Itália e os países escandinavos. Franco Nogueira confrontou mesmo os restantes
aliados com a actual crise da Aliança, dizendo que esta era «uma consequência
natural da crise política» existente na NATO e que «se traduzia na ausência de
solidariedade revelada entre os aliados em quase todos os problemas» fora do
âmbito do tratado[49].
Uma consequência directa para benefício português da retirada da França da
estrutura militar da NATO foi a instalação do IBERLANT, em Lisboa. Quando, em
1958, a NATO decidiu criar um novo comando para o Atlântico e mar Mediterrâneo,
a França e o Reino Unido disputaram entre si a sede e a chefia deste comando
naval. Como não se chegou a um acordo, a criação do IBERLANT ficou adiada e
passados oito anos a solução de compromisso passou pela entrega do novo comando
a um almirante americano, Edwin S. Miller. Era mais uma ferroada da Aliança na
ambição de De Gaulle. Os franceses tomaram esta decisão como uma afronta ao
prestígio militar das suas forças. A saída da França da estrutura militar da
NATO consumou-se com a retirada das forças militares francesas da RFA, a 1 de
Julho de 1966, dando De Gaulle um prazo até 1 de Abril de 1967 para as forças
americanas e canadianas se retirarem do território francês.
O comando do IBERLANT foi colocado em Lisboa[50] devido à sua posição
geográfica e por via de considerações políticas relativas às tensões no Norte
de África e mar Mediterrâneo. Mesmo aqueles aliados que sempre criticaram
Portugal – os nórdicos, por exemplo –, não se manifestaram contra esta decisão
da Aliança. Nada nos é transmitido dessas embaixadas, o que nos leva a supor
que esses países distinguiram os interesses gerais dos interesses particulares.
O que estava em causa na instalação do novo comando em Lisboa não era uma
cedência particular a um aliado, que desde o início da década se encontrava
marginalizado no seio da Aliança, mas uma estratégia funcional da própria
Aliança. Em todo o caso, é justo dizer que o IBERLANT funcionou como um
paliativo para as críticas mais ferozes dos adversários de Portugal.
CONCLUSÕES
Portugal beneficiou a todos os níveis do estatuto de parceiro atlântico. A
maior vantagem foi a utilização de armamento afecto às operações militares da
NATO nas repressões das revoltas nacionalistas, ocorridas no início da década
de 1960. Salazar confundiu as contas dos aliados enviando para África armamento
destinado aos planos defensivos da Aliança, bem como equipamento considerado
«obsoleto». Da parte dos aliados, poucos se mostraram empenhados em escrutinar
de perto essa situação. Sem essa tolerância, o País teria sentido muito mais
dificuldades em prosseguir com a guerra no ultramar.
Para além do contínuo fornecimento de armamento NATO, a política colonial de
Salazar conseguiu aguentar-se em África sobretudo graças aos apoios bilaterais
de países aliados, cuja plataforma de entendimento foi o fórum da Aliança.
Corroborando as palavras de António Costa Pinto, «a condição de membro da
Aliança Atlântica pode ter sido irrelevante e incómoda para os restantes
parceiros, mas foi um poderoso instrumento de estabilidade da Ditadura
portuguesa, oferecendo-lhe um escudo protector na sua derradeira aventura
colonial»[51].
As oportunidades de contacto e consulta oferecidas pela NATO permitiram a
Portugal fortalecer as relações bilaterais entre aqueles aliados que
partilhavam o seu ponto de vista acerca do ultramar e quiseram aproveitar esse
apoio para interesse próprio, como foi o caso da França do general De Gaulle.
Contrariamente à Administração Kennedy, os parceiros atlânticos nunca tentaram
influenciar o rumo da política colonial do Estado Novo através da Aliança. Com
Johnson no poder, essa intenção foi-se esvaindo ao longo da década e as últimas
diligências visando uma inflexão da política ultramarina de Lisboa revestiram-
se de um carácter mais discreto e bilateral.
Um aspecto que nunca chegou a ser equacionado por Salazar ao longo da década de
1960 foi a possível saída de Portugal da Aliança. Havia, no entanto, a
convicção de que a organização devia cumprir o que estava consignado – defender
o Ocidente da ameaça comunista nem que para isso fosse necessário combater em
África. A tentativa de defesa de Portugal em África traduziu-se desde o início
do Pacto no desejo de estender o tratado ao Atlântico Sul. Christopher Coker
também defende esta ideia: «Longe do desejo da retirada da NATO e dos seus
compromissos políticos e militares, Portugal desejava estendê-los.»[52] Como é
sabido, Portugal nunca foi capaz de persuadir os seus aliados da bondade dos
seus argumentos e a NATO – prudentemente – soube manter-se afastada dos seus
conflitos em África.
[1]
Este artigo é uma versão resumida da tese de mestrado em História das Relações
Internacionais apresentada e defendida no ISCTE a 8 de Janeiro de 2008.
[2] Cf. TEIXEIRA, Nuno Severiano – «Da neutralidade ao alinhamento: Portugal na
fundação do Pacto do Atlântico». In Análise Social. Vol. XXVIII, N.º 120,
1993.
[3] TELO, António José (org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição
Atlântica.Lisboa: Edições Cosmos, 1996, p. 89.
[4] Averell Harriman fora nomeado por Kennedy, em Janeiro de 1961, embaixador
itinerante (ambassador at large) e era assim o diplomata que tinha a
incumbência de preparar o terreno para a aplicação das políticas externas
norte-americanas. O encontro com António de Faria deu-se no dia 3 de Março de
1961, aquando da visita do americano à sede do Conselho do Atlântico, em Paris.
[5] Telegrama n.º 39, 4 de Março de 1961, transcrito em TELO, António José
(org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica, pp. 279-280.
[6] Telegrama n.º 51, de 14 Março de 1961, transcrito em TELO, António José
(org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica,, pp. 283-284.
[7] Aerograma n.º 1653, de 20 Março de 1961, transcrito em TELO, António José
(org.) – Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica,, pp. 286-287.
[8] In «Relatório dos Três Sábios sobre a Cooperação Não-Militar na NATO»,
Documento da NATO C-M(56)127(Revisto), de 10 de Janeiro de 1957. Disponível em:
http://www.nato.int/archives/committee_of_three/CT.pdf.
[9] Declaração feita pelo Representante Permanente de Portugal na Audiência
Privada do Conselho a 20 de Abril de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo
1421, maço 110.
[10] Ibidem.
[11] Aerograma n.º 1702, 26 de Abril de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO,
processo 1421, maço 116.
[12] PRO/FO 371/153445 (documento gentilmente cedido por Pedro Faria).
[13] Tripartite May 4, Entry 3093, Box 1. (Documento gentilmente cedido pelo
Prof. Luís Nuno Rodrigues).
[14] «Our relations with the rest of Africa would have suffered a severe
setback». Cf. Ibidem.
[15] Aerograma n.º 1718, 18 de Maio de 1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO,
processo 3350, maço 63.
[16] Para uma perspectiva global do impacto da independência do Congo Belga, em
Junho de 1960, e a posição da diplomacia portuguesa relativamente à mesma, cf.
subcapítulo «A independência do Congo Belga (1960) e as suas repercussões na
política externa portuguesa». In SANTOS, Pedro – Portugal e a NATO: Diplomacia
em Tempo de Guerra (1961-1968). Texto policopiado. Lisboa, 2007, pp. 31-38.
[17] Cf. COKER, Christopher – «The Western Alliance and Africa 1949-81». In
Africa Affairs. Vol. 81, N.º 324, Julho de 1982, p. 324.
[18] Declaração de Franco Nogueira, na reunião de Oslo, a 8 de Maio de 1961.
AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1000, maço 76.
[19] Luís Nuno Rodrigues documentou bastante bem o choque entre a Administração
Kennedy e Salazar no início da década de 1960. Cf. RODRIGUES, Luís Nuno –
Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961
e 1963.Lisboa: Editorial Notícias, 2002.
[20] Diz Acheson que os Estados Unidos «devem reconhecer que formalizar a
posição em votos terá pouca influência na resolução actual dos problemas
discutidos, e criará divisões no seio da Aliança que pode limitar a capacidade
em resolver esses problemas» («A review of North Atlantic problems for the
future, by Dean Acheson, March 1961». JFKL, NSF, caixa 20 (documento
gentilmente cedido pelo Prof. Luís Nuno Rodrigues).
[21] Ibidem.
[22] «Presidential task force on Portuguese territories in Africa», 12 de Julho
de 1961. NA. SDCF, 1960-1963, caixa 1816 (documento gentilmente cedido pelo
Prof. Luís Nuno Rodrigues).
[23] Ibidem.
[24] Cf. «Presidential task force on Portuguese territories in Africa», pp. 82,
12 de Julho 1962. Ibidem.
[25] Ofício PA/121, de 13 de Junho de 1961, da Embaixada de Portugal em Oslo.
AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 110.
[26] Ofício n.º 70, de 15 de Junho 1961, da Embaixada de Portugal em Copenhaga.
AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 1421, maço 110.
[27] Ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros enviado ao suplente
Magalhães Cruz, levando ao conhecimento da delegação o conteúdo da conversa
entre Spaak e o embaixador português em Bruxelas. AHD – MNE, Arquivo DELNATO,
processo 1421, maço 110.
[28] A posição britânica na década de 1960 face à política colonial do Estado
Novo pode ser consultada em OLIVEIRA, Pedro Aires – Os Despojos da Aliança, A
Grã-Bretanha e a Questão Colonial Portuguesa, 1945-1975. Lisboa: Edições Tinta-
da-China, 2007, pp. 217-352.
[29] Aerograma Ostensivo n.º 2015, 16 de Novembro de 1961. AHD – MNE, Arquivo
DELNATO, processo 1421, maço 111.
[30] Para uma melhor compreensão das relações luso-francesas durante a década
de 1960, cf. MARCOS, Daniel – Salazar e De Gaulle: A França e a Questão
Colonial Portuguesa (1958-1968). Lisboa: Colecção Biblioteca Diplomática do MNE
– Série D, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2007.
[31] O apoio germânico à política colonial de Salazar durante a década de 1960
encontra-se bem fundamentado no trabalho de FONSECA, Ana Mónica – A Força das
Armas: O Apoio da República Federal da Alemanha ao Estado Novo (1958-1968).
Lisboa: Colecção Biblioteca Diplomática do MNE – Série D, Ministério dos
Negócios Estrangeiros, 2007, p. 114.
[32] Informação n.º 1.605/61 – GU, Muito Secreto, AOS/CO/NE – 21 – 3, pasta 1,
fl. 1.
[33] Luís Nuno Rodrigues explana os contornos do «Plano Anderson» no seu
trabalho. Cf. RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança.
As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963, pp. 309-310.
[34] RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança.As Relações
Luso-Americanas entre 1961 e 1963, p. 310.
[35] DICKSON, David A. – «US foreign policy towards Southern and Central
Africa: the Kennedy and Johnson years». In Presidential Studies Quarterly. Vol.
XXIII, N.º 2, Primavera de 1993, p. 308.
[36] Relatório de Frank Devine citado em RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-
Salazar: A Crise de Uma Aliança.As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963,
pp. 307-309.
[37] NOGUEIRA, Franco – Salazar. Vol. VI. O Último Combate (1965-1970).Porto:
Livraria Civilização, 1985, p. 42.
[38] Estas críticas eram oficialmente veiculadas pelo Governo de Salazar. In
Separata do Boletim de Informações n.º 25, do Estado-Maior do Exército,
Fevereiro de 1968. AHD – MNE, Embaixada em Washington, processo 15,40, maço
373.
[39] RODRIGUES, Luís Nuno – Kennedy-Salazar: A Crise de Uma Aliança.As Relações
Luso-Americanas entre 1961 e 1963, pp. 311-312.
[40] «Choosing to rule its colonies on the basis of coercion, Lisbon tried to
win support for its contention that NATO´s southern flank could well be turned
if the Soviet Union were ever to gain access to the vast strategic area
stretching from the Azores to Cape Verde with its airfield on Sal and from
Guinea to Angola with the natural harbours along its 1800 km coastline.» In
COKER, Christopher – «The Western Alliance and Africa 1949-81». In Africa
Affairs. Vol. 81, N.º 324, Jul. De 1982, p. 324.
[41] Cf. PINTO, António Costa – O Fim do Império. A Cena Internacional, a
Guerra Colonial e a Descolonização, 1961-1975, Lisboa: Livros Horizonte, 2001,
pp. 14-15.
[42] STUART, Douglas T., e TOW, William – The Limits of Alliance. NATO Out-of-
Area Problems Since 1949. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990,
p. 4. Estes autores também analisam o caso português em África (cf.pp. 305-
311).
[43] Aerograma n.º 2024, anexo A, enviado por Vasco da Cunha, 28 de Novembro de
1961. AHD – MNE, Arquivo DELNATO, processo 3321, maço 63.
[44] O documento mencionado está inserto no relatório apresentado na reunião do
Secretariado de Defesa, a 8 de Maio de 1963. AHD – MNE, Arquivo DELNATO,
processo 1300, maço 93.
[45] Memorial da reunião em Otava, 12 a 19 de Setembro de 1964. AOS/CO/NE – 21
– 3, pasta 3, fls. 3-18.
[46] MIRANDA, Bonifácio de – «O futuro da NATO em face da
"descolonização"». Separata da revista Ultramar. Lisboa, N.º 17, Vol.
V (N.º1), 1964, p. 10.
[47] AOS/CO/NE – 17 – 2, pasta 27.
[48] NOGUEIRA, Franco – Salazar. Vol. VI. O Último Combate (1965-1970), p. 129.
[49] Ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, PA/3/66, 18 de Julho de
1966. AHD – MNE, Arquivo Embaixada em Washington, processo 15,40, maço 373.
[50] O comando ficou instalado em São Pedro de Penaferrim, no concelho de
Sintra, e foi inaugurado em Fevereiro de 1967.
[51] PINTO, António Costa – O Fim do Império. A Cena Internacional, a Guerra
Colonial e a Descolonização, 1961-1975, p. 27.
[52] COKER, Christopher – NATO, the Warsaw Pact and Africa. Londres: MacMillan,
1985, p. 53.
*
Licenciado em Filosofia pela FCSH ' UNL e mestre em História das Relações
Internacionais, pelo iscte, com a tese «Portugal e a NATO: Diplomacia em Tempo
de Guerra (1961-1968)».
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