A Rússia, a Europa e o legado de 1989: conflitos de interpretação
Na área da investigação académica, conhecida como análise do discurso, existe
um argumento que nos ajuda a compreender o modo como os discursos políticos são
estruturados. Defende que os acontecimentos que seleccionamos para construir
uma narrativa sobre nós próprios são de extrema importância. Cada actor
político fundamenta a sua subjectividade em determinadas "histórias"
indispensáveis para a sua construção da identidade. Como Judith Butler afirma,
se começarmos uma história antes ou depois de um determinado momento, toda a
identidade do "sujeito falante" e a sua relação com os outros sujeitos pode ser
reconsiderada ou reconstituída
1
. O tempo é, portanto, uma categoria politicamente contestada, uma vez que a
selecção de pontos de referência temporais (momentos formativos) predetermina
os significados ligados às entidades dos sujeitos políticos.
É precisamente este ponto de vista que utilizarei como base para o presente
ensaio. Por "legado de 1989" entendo a reactualização discursiva do fim da
Guerra Fria. As mudanças que ocorreram entre 1989 (a queda do Muro de Berlim) e
1991 (a desagregação da União Soviética) poderiam receber a designação de
"evento", termo usado por Alain Badiou; algo que desloca as estruturas
estabelecidas de relações de poder e torna possível o que parecia inexequível
ou impensável algum tempo antes
2
. Os eventos são moldadores de identidade e diferenciadores; por isso mesmo,
são também contentores de diversidade temporal. O que importa é o modo como as
datas históricas são transformadas em símbolos, e o tipo de fronteiras
imaginário-mentais que induzem.
À primeira vista a Rússia e a maioria dos países europeus diferem drasticamente
na sua respectiva simbolização do legado de 1989. Após a presidência de
Gorbachev - conhecido pelos seus conceitos-chave de perestroika e glasnost - a
Rússia não voltaria a desfrutar de um acolhimento tão entusiástico por parte do
Ocidente. Para a maior parte dos países da Europa Central e de Leste os vinte
anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim foram duas décadas de
experiência democrática recém-adquirida. Na Rússia, contudo, o balanço político
dos acontecimentos pós-1989 é muito mais controverso.
Talvez isso possa ser explicado pelo facto de as liberdades do final dos anos
1980 terem dado rédea solta não só a forças liberais/pró-ocidentais, mas também
a forças conservadoras/tradicionalistas do nacionalismo e do nativismo que eram
- e ainda são - inimigas da abertura da Rússia a uma integração na comunidade
internacional. No que diz respeito ao Kremlin, este tira, de forma bastante
pragmática, todo o partido possível dos benefícios políticos que a Rússia
obteve com a queda do Muro de Berlim (incluindo as relações "especiais" entre
Moscovo e Berlim) sem, no entanto, prestar o devido reconhecimento às forças
que tornaram possíveis os acontecimentos de 1989.
Mas, a um nível mais profundo de análise, esta assimetria de percepção mais ou
menos visível entre a Rússia e as nações europeias levanta dois problemas
cruciais para a minha análise. Primeiramente, a discrepância de discurso entre
a União Europeia (UE) e a Rússia sintetiza-se em formas drasticamente
diferentes de reactualização das questões da identidade. Alguns dos autores
liberais russos defendem que é perfeitamente natural para qualquer identidade
sã desafiar o seu "não-ser" social, ou uma espécie de estado de barbárie dentro
de si própria
3
. Na Europa esta abordagem foi apresentada através da referência ao conceito de
"o passado como outro", radicalmente diferente da percepção holística dominante
na Rússia, que vê na sua história algo de divino e axiomaticamente glorioso,
que atesta a grandeza da nação.
Esta diferença de percepções só pode ser complementada por disposições mais
acentuadamente políticas que tiveram lugar no rescaldo do fim da Guerra Fria.
Discutivelmente, a entidade europeia do pós-Guerra Fria assenta implicitamente
na ideia de que os europeus foram bem-sucedidos no cumprimento das suas
obrigações; portanto, a subjectividade da UE é actualmente construída através
de uma espécie de oposição aos perigos emanados do exterior: "A Europa que se
costumava definir a si própria através de uma revisão crítica da sua história,
vê agora o seu passado em casa dos seus vizinhos mais próximos."
4
Escusado será dizer que esta mudança de rumo discursiva só veio alargar o
fosso que separa a Rússia da Europa.
Em segundo lugar, a forma como o mundo bipolarizado deixou de existir
influenciou enormemente a mentalidade e o comportamento das elites da política
externa russa.
Assim, o legado de 1989 é recuperado de cada vez que a Rússia tem de remodelar
as suas relações com os seus mais importantes parceiros internacionais,
incluindo os seus países vizinhos, e com as instituições internacionais, como a
NATO ou a UE. No entanto, o problema-chave é o facto de a interpretação da
Rússia acerca do fim da Guerra Fria ser bastante ambígua, e é essa incerteza
que desorganiza e divide a identidade internacional daquele país. Este é um dos
exemplos mais notórios da inconsistência da narrativa internacional da Rússia:
a Guerra Fria é maioritariamente vista como uma confrontação irracional e
dispendiosa baseada na ideologia. E, no entanto, o seu fim foi retratado por
Vladimir Putin como sendo a maior catástrofe geopolítica do século passado.
Entretanto, nas palavras de Sergei Lavrov, o final da confrontação bipolar
abriu novas possibilidades para a democratização de todo o sistema de relações
internacionais. A ideia da democratização neste contexto tem duas componentes
essenciais:
a) a construção da "ordem mundial genuinamente democrática", na perspectiva de
Dmitri Medvedev, está intimamente ligada à "desideologização da vida
internacional"
5
; e b) a democratização pressupõe o repúdio do princípio conhecido como "dilema
da segurança" ("não devemos construir a nossa segurança às custas dos outros"
6
). Contudo, tal como alguns diplomatas russos reconhecem, as expectativas
causadas pelo fim do conflito bipolar eram largamente infundadas: "Depois da
derrocada soviética tínhamos a esperança de entrar num período de paz e
prosperidade... Mas seria por pouco tempo, uma vez que os conflitos religiosos,
étnicos e geopolíticos substituíram a curta euforia do pós-Guerra Fria"
7
.
Segundo uma das interpretações "oficiais", a Rússia não só sofreu mais com o
regime comunista do que as restantes repúblicas soviéticas, como ainda
desempenhou um papel crucial na destruição da URSS, contribuindo assim para
evitar o confronto militar e para promover a paz na Europa. "O estabelecimento
da democracia nos três estados bálticos foi um resultado directo da
democratização da União Soviética. [ ] Foi a democracia russa que se tornou a
garantia da não-aplicação da força militar contra os novos estados
independentes"
8
, defende um académico russo. "A democracia russa não foi seguramente um
perdedor na Guerra [Fria]; a sua sensação é de que foi uma vencedora"
9
, salienta um outro analista.
Como é óbvio, esta versão entra em nítida contradição com a narrativa que
interpreta a desintegração da União Soviética como sendo o maior desastre
geopolítico do século xx. Assim, a Rússia deseja retratar-se simultaneamente
como a destruidora do comunismo e como a herdeira da União Soviética, consoante
pretenda substanciar as suas credenciais europeias ou a sua grandiosidade
geopolítica. Aparentemente, o papel de sucessora da União Soviética dá à Rússia
muito menos vantagens reais, principalmente por duas razões. Em primeiro lugar,
a forma como a Rússia inscreve a experiência soviética na sua actual identidade
parece ser inconsistente e enganadora. Tal como um grupo de autores suíços
observa, os diplomatas russos, por um lado, podem afirmar com orgulho
"assinámos a Acta de Helsínquia" e, por outro, insistem que os russos não
deveriam ser culpados pelas intervenções soviéticas nos estados bálticos, na
Hungria, na Checoslováquia e no Afeganistão
10
. Em segundo lugar, a solidariedade pós-soviética na arena internacional é
muito fraca e episódica. Para além disso, a insistência da Rússia na sua
"posse" do legado soviético é interpretada por países como a Ucrânia, a Geórgia
ou as repúblicas bálticas como uma prova da sua predisposição para reavivar as
políticas imperiais que visavam os seus vizinhos mais próximos.
Neste ensaio ilustrarei este e outros aspectos baseando-me em vários exemplos
notórios das relações conflituosas da Rússia com estados adjacentes pós-
soviéticos como a Estónia, a Geórgia e a Ucrânia. Alargarei posteriormente a
minha análise às relações controversas com a Grã-Bretanha e a NATO, e
terminarei abordando o caso do oblast de Kaliningrado. Na minha opinião, todos
estes casos são ilustrativos do seguinte: demonstram a dificuldade em
ultrapassar a herança soviética na política externa russa e o tipo de choques
que a inevitável reactualização desta herança poderá originar.
RÚSSIA-ESTÓNIA: DUAS ENTIDADES POLITIZADAS
Nas relações da Rússia com a Estónia, a questão da selecção de pontos de
referência temporal para a construção de narrativas fundacionais é um tema a
debater. Por exemplo, segundo um determinado autor, a perspectiva russa dos
acontecimentos de 1989-1991 como um "novo" ponto de partida nas relações
bilaterais "entrou em choque frontal com a doutrina estónia da continuidade
legal, que via no Tratado de Tartu, de 1920, a única base legítima para
relações políticas. Enquanto a maioria dos estónios viu no colapso da URSS o
momento do regresso à "normalidade" europeia, a maioria dos russos viu tudo
menos isso..."
11
.
O conflito de 2007 com a Estónia, provocado pela trasladação do monumento de
homenagem aos soldados soviéticos mortos na II Guerra Mundial da Baixa de Talin
para o cemitério militar, veio acentuar ainda mais o mútuo afastamento entre os
dois países.
Uma das principais fontes de controvérsia foi a tentativa russa de desempenhar
dois papéis simultâneos neste conflito: o de herdeira da URSS e o de país
alegadamente empenhado nos valores europeus. Ambos assentam na condenação das
tentativas de repensar e reescrever a parte do guião da II Guerra Mundial que
acusa explicitamente o fascismo.
Por um lado, a Rússia agiu como sucessora da União Soviética e defensora da sua
glória militar. O discurso oficial russo arcou com a responsabilidade de ter
questionado o papel libertador do Exército soviético em 1941-1945 e de ter
reabilitado a Alemanha fascista para as elites políticas dos três países
bálticos. Aparentemente, a Estónia foi a mais censurada pela sua relutância em
reconhecer o contributo excepcional da URSS na derrota da Alemanha nazi. Os
gestos simbólicos que visavam equiparar os papéis de Hitler e de Estaline ou
destruir a interpretação consensual sobre os resultados da II Guerra Mundial
foram recebidos em Moscovo com uma irritação ostensiva e foram interpretados
como a confirmação das alegadas transgressões da Estónia no plano dos
princípios fundamentais da constituição do pós-II Guerra Mundial.
Por outro lado, a Rússia usou esta situação como um exemplo acabado das
supostas intenções de alguns dos "novos europeus" representarem de forma
errada, ou até de corromperem, a ideia europeia. Com este pano de fundo, é
compreensível que no debate russo a Estónia seja comparada em contraste com a
União Europeia, a suposta autoridade definitiva que deveria obrigar aquele país
báltico a obedecer às normas dos direitos humanos.
Na sua política em relação à Estónia, a Rússia frisou de forma bem clara dois
marcos normativos, procurando desse modo representar-se como um país que
defende resolutamente os "verdadeiros valores europeus", que Talin alegadamente
desafia. Em primeiro lugar, a Rússia aderiu ao princípio da inviolabilidade da
condenação internacional do fascismo, tendo em mente aquilo que é visto como
uma tentativa por parte da elite política estónia de equiparar os papéis
históricos da Alemanha e da União Soviética durante a II Guerra Mundial. Em
segundo lugar, a Rússia fez referência a normas de protecção de minorias, um
gesto que aponta a insatisfação de Moscovo com o facto de uma parte
significativa das comunidades que falam russo nos estados bálticos estar
privada de direitos eleitorais.
A maioria dos comentadores russos acredita que a política oficial de Talin de
"distanciamento cultural" (para não falarmos em "vingança cultural")
relativamente aos residentes de língua russa da Estónia entra em conflito com
as normativas europeias. Um representante presidencial, referindo-se à política
russa da UE, apresentou o assunto de forma bastante crua: as autoridades
estónias
"a pouco e pouco levam os países europeus a repensar completamente as
consequências da II Guerra Mundial. As acções levadas a cabo pelas
autoridades estónias são um desafio às tradições políticas do pós-
guerra estabelecidas na Europa, incluindo as que apontam para a
negação do nazismo. Não pretendemos que os chamados neófitos, pessoas
com uma sobreavaliação exacerbada e com profundos complexos
históricos, afectem negativamente a opinião pública europeia"
12
.
Acusou assim os recém-entrados na UE ao expor o radicalismo político e "uma
russofobia bastante primária". Na sua opinião, estes países estão a tentar, de
forma activa, "dificultar o diálogo entre a Rússia e a UE", o que parece
contradizer os interesses dos "velhos residentes" da UE
13
.
A Rússia recorda de forma directa à UE que é suposto, de acordo com a percepção
russa, ela assumir a responsabilidade pelo comportamento dos seus novos
estados-membros.
Em 2004, a Duma declarou que na sequência da entrada da Letónia e da Estónia na
UE estes dois países reforçaram as suas atitudes anti-Rússia ao promulgarem um
conjunto de iniciativas que visavam fazer reivindicações materiais e políticas
à Rússia, e ao reconsiderarem os resultados da II Guerra Mundial (querendo com
isto referir-se a uma alegada tendência de reabilitação dos combatentes nazis)
14
. Com base neste cenário, as controvérsias estónio-russas têm de ser inseridas
no meio de dois contextos discursivos mais amplos: os da dicotomia de uma "Nova
- Velha Europa" e o seu respectivo "Europa falsa - verdadeira". A "Europa
falsa" inclui países com fortes sentimentos anti-russos, que perderam os
"genuínos valores europeus", ao passo que a "verdadeira Europa" é
discutivelmente povoada de nações amigas da Rússia que estão ligadas ao que a
Rússia considera "o espírito original da Europa". O que é significativo é um
nexo lógico entre os dois parâmetros diferentes, identificáveis na visão russa
através da dicotomia "verdadeiro-falso": presumivelmente é esta evaporação do
espírito nacional que faz com que certos países sejam incluídos na "lista
negra" da Rússia. Por outras palavras, algumas nações poderiam ser colocadas na
categoria "falsa" justamente porque se desviaram daquilo que a Rússia considera
ser a corrente normativa europeia.
A estratégia discursiva russa para delimitar fronteiras pode manifestar-se sob
a forma de atribuição aos estados bálticos do epíteto de "Europa falsa", o que
implica que aos olhos da Rússia, eles não coincidem com os critérios da
"verdadeira" Europa no que toca ao tratamento das minorias e à protecção dos
direitos humanos. Um dos resultados indirectos das duras polémicas da Rússia
com a Estónia foi a clara integração do tratamento dos monumentos da II Guerra
Mundial por parte das autoridades leste e centro-europeias num conjunto de
critérios que a Rússia se comprometeu a usar no futuro como forma de avaliar o
estado das relações bilaterais. Por exemplo, em contraste com os estados
bálticos, a Áustria e a Eslováquia poderiam ser mencionadas entre os países
que, aos olhos do entendimento russo, demonstram a necessária sensibilidade
relativamente às campas dos soldados soviéticos mortos durante a II Guerra
Mundial; como tal, esses países são designados como europeus "bons" e/ou
"construtivos".
Depois de espancar os "recém-chegados", a Rússia tenta dirigir-se à UE como um
definidor de normas. A "nova Europa" é representada como um grupo de
arruaceiros que perturbam tanto a Rússia como a própria UE. Através da ideia de
uma "verdadeira Europa", a Rússia tenta não só exibir a sua identidade europeia
mas procura também definir o seu "círculo de amigos". Poder-se-ia argumentar
que esta "complexa estrutura do mundo tal como é encarada desde a Rússia
permite sempre descartar determinadas posições políticas como sendo "falsamente
europeias" e insistir no papel do Estado russo como defensor dos "verdadeiros"
valores europeus"
15
. De certa forma, as reflexões acerca de uma Europa "verdadeira" e "falsa"
fazem parte de batalhas discursivas mais vastas para definir a essência da
Europa, sendo que cada parte envolvida afirma representar a "Europa genuína".
Este discurso salienta a presumível capacidade da Rússia para se tornar um país
capaz de cuidar da "verdadeira europeidade".
E quais são as maiores contradições consequentes, guardadas no seio destes dois
papéis que a Rússia procurar desempenhar? No que diz respeito ao primeiro, o
Kremlin queixa-se de que a Estónia vê (de forma errada, segundo eles) na Rússia
a extensão directa da URSS, um derrotado da Guerra Fria e um país que ainda
carrega a culpa histórica da ocupação dos estados bálticos. Esta percepção
entra presumivelmente em conflito com a autopercepção da Rússia como um país
que se livrou do comunismo exactamente da mesma forma que a Estónia. Segundo
esta interpretação da identidade russa, todos os países pós-soviéticos foram
vítimas da tirania comunista, e a Rússia merece o reconhecimento pelo seu
contributo decisivo para a destruição do regime soviético. Escusado será dizer
que este ponto de vista contradiz não só a narrativa estónia dominante mas -
paradoxalmente - também a narrativa da interpretação da identidade russa como
genealogicamente derivada das práticas da era soviética.
O segundo papel também não está isento de conflitos internos. Na sua reacção ao
que é considerado anti-russo discriminatório por parte das autoridades
estónias, a Rússia parece fazer referência/apelo de forma explícita às normas
europeias e, de certa forma, dá desesperadamente as boas-vindas à interferência
da UE de uma maneira ou de outra.
No entanto, tal como Viacheslav Morozov sugeriu, "no entanto, o facto de os
comentadores russos se arrogarem o direito de fazer julgamentos acerca dos
estados bálticos desde o ponto de vista de uma "Europa verdadeira" não quer
dizer necessariamente que o discurso da política externa russa se estruture em
termos europeus. A Rússia faz valer as normas da Europa mas estaca no momento
de aplicar essas mesmas normas à sua própria política"
16
, o que torna a posição da Rússia muito pouco convincente.
A estratégia russa de comparar pela negativa a Estónia com o resto da UE tem
uma outra falha importante, competentemente revelada por Alexandr Astrov
17
. Na sua perspectiva, na verdade, o Governo estónio não desafiou as normas
europeias. Pelo contrário, agiu em plena conformidade com a lógica da
europeização assente na construção gradual de uma leitura consensual das
memórias do passado através da despolitização das narrativas assentes na
história e da deslocação das interpretações alternativas para a esfera da "vida
privada". O paradoxo é que foi a suposta despolitização que desencadeou um dos
mais agudos conflitos políticos entre os estados pós-soviéticos.
Tendo desempenhado dois papéis em simultâneo - o de herdeira da União Soviética
e o de "verdadeira" nação europeia - a Rússia não conseguiu alcançar resultados
palpáveis: o estado das relações políticas entre Moscovo e Talin é marcado pelo
afastamento, a posição da UE foi mais favorável ao Governo estónio e a Rússia
não foi capaz de obter qualquer apoio significativo por parte de outros países
da CEI, embora houvesse soldados de diferentes origens étnicas entre as tropas
soviéticas. O facto de nenhum dos países da antiga URSS se ter posto ao lado da
Rússia é um bom indicador do isolamento político da Rússia e da fragilidade da
sua capacidade de apelo normativo, mesmo entre as nações do "estrangeiro
próximo".
RÚSSIA-GEÓRGIA: UM ECO DA DERROCADA DA URSS
O conflito Rússia-Geórgia, que culminou na guerra de Agosto de 2008, relaciona-
se com o legado de 1989 em dois sentidos. Primeiramente, a Rússia tratou os
confrontos militares entre a Geórgia, por um lado, e a Abcásia e a Ossétia do
Sul, por outro, como resquícios dos tempos da dissolução espontânea da União
Soviética. Mais uma vez, o Kremlin tentou fazer dois jogos em simultâneo:
recorreu a uma leitura "catastrófica" do desmantelamento da URSS e tentou jogar
a cartada do anticomunismo. Assim, não foi só Mikhail Saakashvili que recebeu o
epíteto pejorativo de "herdeiro de Estaline e de Beria"; segundo Putin,
"aqueles que insistem que a Abcásia e a Ossétia do Sul devem pertencer à
Geórgia são estalinistas, uma vez que apoiam a decisão tomada por Estaline"
18
. Este tipo de analogias políticas, extrapolado à Ucrânia, só pode reforçar a
narrativa anticomunista, uma vez que é sobejamente sabido que foi Kruschev que
tomou a decisão autoritária de transferir a Crimeia - uma península do mar
Negro povoada principalmente por falantes de russo e que estava em conflito com
as autoridades centrais de Kiev - para a possessão formal da Ucrânia.
Em segundo lugar, a operação vitoriosa contra a Geórgia foi implicitamente
retratada na Rússia como uma vingança por quase duas décadas de humilhação e
retirada geopolítica iniciada com a queda do Muro de Berlim. Explica em parte
as razões por trás das declarações de Medvedev sobre uma esfera de interesses
privilegiados da Rússia em Agosto de 2008. Um dos manipuladores de opinião do
Kremlin reconheceu abertamente que "ao termos cruzado a linha vermelha dos
desejos de segurança colectiva entrámos no mundo dos adultos e começámos a
falar a sua linguagem de idade madura"
19
. Numa declaração mais radical, um jornalista político afirmou que para a
Rússia não há qualquer benefício em jogar de acordo com as regras, já que neste
caso parecemos "idiotas sorridentes pró-americanos. [ ] Não há qualquer
vantagem em ser simpático. O que é que eles [o Ocidente] nos deram em troca por
termos sido dóceis?"
20
Em locuções destas é muito nítida a referência óbvia ao legado de 1989.
Segundo a interpretação oficial russa, a guerra com a Geórgia de Agosto de 2008
foi um acontecimento que serviu de marco para dividir o tempo entre o que foi o
"antes" e o que vem "depois". A Rússia interpretou esta guerra como uma
continuação lógica das suas tentativas desesperadas de se posicionar como uma
entidade internacional "normal". O entendimento russo de "normalidade" surge
(pelo menos) em três versões interligadas:
· anda a par com a capacidade de se defender de criminosos externos;
· considera uma imitação do comportamento de outras potências (nas
palavras do Presidente Medvedev, "na Ossétia do Sul fizemos o que
outros fizeram no Kosovo"
21
);
· pressupõe o poder de "normalizar" ("disciplinar e punir") os
vizinhos que causem problemas de segurança.
Neste contexto, o Presidente Medvedev apareceu para "reparar" a ineficaz (na
perspectiva russa) arquitectura de segurança europeia. Medvedev e Putin
questionaram os principais elementos institucionais da sociedade internacional:
o G8 foi apelidado de "organização deficiente", a Organização Mundial do
Comércio (OMC) não era tão instrumental como parecia, a NATO passou de
"parceiro" a "inimigo", etc. Contudo, em vez de fornecer um pano de fundo para
uma nova e mais coerente compreensão da identidade russa, a guerra tornou
difusas as linhas de identificação e levantou um conjunto de questões que ainda
permanecem em aberto. Quando analisada de perto, a Rússia auto-assertiva do
pós-guerra parece encontrar-se num impasse. Uma observação mais cuidada da
narrativa de guerra nos meios de comunicação social russos e no discurso
político dá-nos uma visão de um país em pedaços, dividido por múltiplas
controvérsias, tanto conceptuais como práticas.
Tal como nos tempos da União Soviética, a Rússia reactualizou uma longa
tradição de utilização do conceito de "Ocidente" enquanto o Outro constitutivo
da Rússia, perfeitamente dominado e manipulado pelos Estados Unidos. "A Europa
tem falta de vontade política - essa encontra-se apenas na posse da América"
22
, segundo considera um analista russo. Aos olhos de Putin, por vezes a Europa
age de forma demasiado branda na gestão de questões de segurança, e "alguns dos
países europeus desejam ardentemente servir os interesses externos (não
europeus)"
23
. Nas palavras de um jornalista russo, a Europa não se atreve a contrariar os
Estados Unidos, não tem uma voz própria internacional, não consegue levar a
cabo acções autónomas e demonstra incapacidade e até paralisia
24
.
E no entanto não é claro se a suposta unipolaridade que emanou do final da
Guerra Fria realmente existe aos olhos do Kremlin. Lavrov afirmou que o mundo
unipolar deixou de existir imediatamente a seguir a Agosto de 2008,
presumivelmente como consequência directa da vitória da Rússia contra a
Geórgia. Desta forma, a Rússia emerge da "realidade do mundo multipolar"
25
, que, de acordo com esta versão, já é um facto e como tal não necessita de ser
defendido. Portanto, o problema-chave não é a demolição da "hegemonia
americana" que presumivelmente terá amadurecido depois de 1989, mas sim qual o
tipo de ordem internacional que terá de substituí-la. Como o director do
Instituto de Avaliações Estratégicas, sediado em Moscovo, muito bem defendeu, a
resistência aos ditames de um poder isolado e o desejo de um "mundo multipolar"
são duas estratégias diferentes.
O que vem dificultar o entendimento do discurso do Kremlin é o facto de
Medvedev tender a encontrar as causas das actuais falhas da segurança
internacional quer nas "abordagens por blocos" quer na unipolaridade
26
. O problema lógico que começa a surgir nesta conjuntura é que se trata de dois
conceitos diferentes que dificilmente podem ser equiparados entre si num único
enquadramento de análise. Em certa medida, aquilo a que Medvedev chama
"abordagem por blocos" - que necessita de pelo menos dois grupos de estados
aliados em competição e que representa uma forma elementar de multipolaridade -
contraria o modelo de mundo unipolar (ou seja, dominado pelos Estados Unidos).
O Kremlin tenta evitar a abordagem puramente geopolítica e, desse modo,
introduz um certo toque normativo na sua concepção da sociedade internacional,
ao ligar de forma lógica "multipolaridade" e "democracia". Esta última, à luz
dessa interpretação, é infelizmente reduzida à mera pluralidade de estados
poderosos, independentemente da natureza dos seus regimes políticos. Poder-se-
ia entender que o ponto de vista russo sugere que é a multipolaridade que gera
o desenvolvimento das "instituições democráticas" na arena internacional, e não
o contrário. Não por acaso, a Rússia recorre à retórica da "multipolaridade
democrática" basicamente nas comunicações com países como a China, a
Bielorrússia, o Irão, a Venezuela, Cuba, entre outros, todos eles sem
experiência de governação democrática convincente.
Por outro lado, o discurso da multipolaridade não parece funcionar nas
comunicações da Rússia com a UE. Ao lidar com a UE, a Rússia prefere empregar
conceitos como "espaço comum euro-atlântico" e "Europa mais ampla". No rescaldo
da guerra de Agosto de 2008 as relações Rússia-Europa ganharam alguma força,
tal como demonstraram as conversações Medvedev-Sarkozy, apesar da decisão de
Bruxelas de terminar as negociações acerca do novo tratado bilateral com
Moscovo. Explica por que motivo o Presidente russo sublinhou que "é exactamente
a UE que se tornou um parceiro para nós, com recursos, responsável, e, o que é
da maior importância, pragmático"
27
.
"A Europa é para a NATO ou a NATO é para a Europa?", perguntou de modo patético
o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, salientando depois que cabe à UE
encontrar a "solução europeia" para os problemas do Cáucaso, em vez de
"respeitar os conselhos vindos de longe". Na opinião de um dos influentes
manipuladores de opinião do Kremlin, o verdadeiro problema para a Rússia é
concentrar-se de forma dogmática nas relações com os Estados Unidos em questões
de segurança, o que só vem justificar a necessidade de se encontrar uma nova
agenda política com a UE ("talvez seja difícil lidar com a Europa enquanto
império de várias cabeças, mas não há alternativa viável à orientação em
direcção à Europa"
28
, segundo sugeriu um analista político russo).
RÚSSIA-UCRÂNIA: UMA VIDA EM COMUM MAS EM SEPARAÇÃO
A política da Rússia relativamente aos países das "revoluções coloridas" (e,
antes de mais, no que respeita à Ucrânia) pode dar-nos um exemplo interessante
da transformação da síndrome soviética do big brother, ao passar de fenómeno
principalmente ideológico para um fenómeno geopolítico e geoeconómico. Aqui
assistimos a um dos maiores fossos discursivos entre a UE e a Rússia: a
primeira prefere enquadrar a sua política em relação às "revoluções coloridas"
em termos normativos de continuidade da promoção da democracia e das liberdades
civis iniciadas há quase duas décadas, ao passo que a segunda está convencida
de que o cerne da interferência externa, independentemente da retórica
normativa, acaba sempre por dar lugar à Realpolitik. De facto, a Rússia rejeita
a vertente normativa do fenómeno das "revoluções coloridas", reduzindo-o a uma
série de questões pragmáticas e de busca de poder. E no caso particular da
Ucrânia, a Rússia ainda trata aquele país como um estado-satélite que se
revoltou contra o seu centro imperial. A feroz reacção da Rússia à Revolução
Laranja na Ucrânia também poderia ser explicada através da referência à crença
anterior de Moscovo de que na sequência do 11 de Setembro a Rússia seria vista
como um país muito mais próximo do Ocidente em geral e da Europa em particular
do que outros países pós-soviéticos. Nesse sentido, a Revolução Laranja
demonstrou o falhanço da Rússia enquanto autoproclamado "representante dos
valores europeus através de todo o espaço ex-soviético"
29
.
Na sua política em relação à Ucrânia a Rússia persegue dois objectivos
políticos: evitar a chegada ao poder de regimes anti-russos nos seus países
vizinhos, e impedir quaisquer possibilidades de a experiência das "revoluções
coloridas" se projectar no próprio país.
O Kremlin designa as chamadas "revoluções coloridas" como "uma trama ocidental
para instalar regimes pró-americanos na periferia da Rússia e para procurar
engendrar uma mudança de regime na própria Rússia"
30
.
É por isso que para a Rússia os países das "revoluções coloridas" são vistos
como agitadores. A evolução após a revolução não é vista de forma alguma como
sendo radicalmente diferente dos padrões russos. Aliás, o sistema político da
Ucrânia sob o governo do Presidente Yuschenko é frequentemente apresentado como
sendo inferior ao russo.
Segundo a interpretação prevalecente na Rússia, a Ucrânia está a atravessar um
período de instabilidade e enfrenta a fragmentação e a desintegração, que a
Rússia já conseguiu ultrapassar com sucesso.
A Rússia está a utilizar a pressão política para forçar Kiev a fazer concessões
em, pelo menos, duas áreas importantes. A primeira é o reconhecimento do
estatuto oficial da língua russa na Ucrânia. Neste aspecto, a Rússia detém um
bom trunfo, uma vez que a maioria dos ucranianos são falantes de russo. A outra
exigência importante é a interrupção do processo de integração da Ucrânia na
NATO. Esta questão é importante no que diz respeito aos planos estratégicos de
a Rússia manter a sua presença militar em Sebastopol, que poderia ser posta em
causa com a pertença da Ucrânia à NATO. A dura resistência que a Rússia oferece
a uma hipotética integração da Ucrânia na NATO deve-se em grande parte ao
receio de que neste caso a frota russa do mar Negro, estacionada na Crimeia,
não possa lá permanecer. Embora tenha reconhecido a Ucrânia como Estado
independente, a Rússia tentou repetidamente jogar a "carta da Crimeia", ou
seja, estimular sentimentos anti-Ucrânia nessa península. Um representante
russo perante a NATO assumiu que é pouco provável que a Ucrânia venha a manter
as suas fronteiras actuais caso entre na Aliança. Este tipo de discurso
revisionista revela a insatisfação da Rússia acerca do modo como algumas
questões territoriais foram resolvidas no tempo da queda da União Soviética.
Isso explica o motivo pelo qual Moscovo ameaça os ucranianos afirmando que a
sua entrada na NATO acabará com a adopção de um regime de vistos entre os dois
países e com a quebra da vasta cooperação russo-ucraniana nos domínios da
indústria da defesa e dos projectos de alta tecnologia.
A posição de Realpolitik da Rússia - motivada pela intenção de manter os países
vizinhos dentro da sua órbita geopolítica - provocou um tipo de reacção
normativa por parte do Ocidente e dos próprios países das "revoluções
coloridas". Mais especificamente, o estabelecimento da Comunidade da Escolha
Democrática, assim como a maior inclusão dos "governos coloridos" nas esferas
institucionais sob influência da UE e da NATO poderiam ser bons indicadores
desta tendência.
Entretanto, ao ir gradualmente perdendo influência política sobre países que
tradicionalmente se incluíam no seu "estrangeiro próximo", a Rússia faz alguns
esforços para se ver livre do passado soviético e tenta reenquadrar a sua
identidade nacional de uma forma mais objectiva. Assim, deu-se uma viragem
significativa na política russa relativamente à Ucrânia entre 2004 (o ano da
Revolução Laranja) e 2007 (quando as eleições parlamentares de Setembro
reintegraram a coligação laranja no Parlamento). Um dos exemplos mais
reveladores foi a declaração do Presidente Putin: "se o Ocidente pretende
apoiar os movimentos laranja, deve pagar as suas consequências. Caso contrário,
ficamos com a impressão de que querem apoiá-los e ao mesmo tempo querem que nós
paguemos as consequências"
31
. Esta intervenção denota uma intenção por parte do Kremlin de contextualizar a
situação em termos muito pragmáticos - cínicos, até - e sem conotações
ideológicas. A afirmação de Putin é um bom indicador da mudança gradual das
atitudes russas perante a Ucrânia, que é cada vez mais reconhecida como um país
de pleno direito, uma entidade política cujas relações com a Rússia já não
encaixam no tipo de relacionamento protector-cliente.
RÚSSIA-NATO: OS PERIGOS DA MARGINALIZAÇÃO
No âmbito das relações Rússia-NATO o legado da Guerra Fria foi o mais difícil
de ultrapassar. O conflito da Rússia com a NATO teve origem na queda do Muro de
Berlim.
Na sua oposição ao alargamento territorial da NATO, a Rússia recorreu à
promessa supostamente feita pelos oficiais da NATO a Mikhail Gorbachev de que
não alargariam a sua área de influência às esferas de interesses de Moscovo.
Portanto, segundo a história russa, Moscovo pôs em prática as suas obrigações,
incluindo a retirada de tropas da Europa Oriental e dos estados bálticos, mas
os países da NATO não mantiveram a sua palavra.
Há certamente algumas inconsistências na atitude em relação à NATO no seio das
elites russas, o que pode gerar equívocos no Ocidente. A nível operacional, os
oficiais russos reconhecem a importância da cooperação militar com a NATO.
Alguns autores acham inclusive que "a Rússia quer ter uma palavra a dizer nas
deliberações da NATO e, na medida do possível, gostaria de ter influência nas
decisões da NATO"
32
. Contudo, no terreno político, as atitudes russas são significativamente menos
cooperantes: de aliado a NATO passou a ser uma das mais importantes referências
na construção mental do "Ocidente hostil", e como tal é integrada num contexto
discursivo altamente negativo.
No entanto, é pouco provável que a estratégia de tratar a NATO como a maior
fonte de insegurança da Rússia venha a surtir efeito a longo prazo. Sob
diversos aspectos, o papel de inimigo da Rússia não parece muito apropriado
para a NATO: só uma pequena minoria de russos entende com clareza que tipo de
entidade se encontra por trás daquele acrónimo; mas o que ainda é mais difícil
de explicar é porque é que se atribuem características ostensivamente negativas
a um grupo de países com os quais Moscovo mantém relações de trabalho normais,
quer bilateralmente quer no âmbito de corpos internacionais como o G8, quando
se reúnem sob o título de NATO.
Todo o processo de transformar a NATO e os países que desejam fazer parte da
Aliança no Outro peca por falta de coerência lógica, uma vez que a Rússia
parece recorrer a dois argumentos que se excluem mutuamente. Por um lado, a
NATO é representada como um bloco militar hostil e perigosamente poderoso (se
não omnipotente) que ameaça os interesses da Rússia. Por outro, a NATO é
representada como um resquício da Guerra Fria, o que supostamente faz salientar
a sua irrelevância para fornecer segurança num contexto internacional que já
não é o mesmo. No Fórum Económico de São Petersburgo em Junho de 2008 o
ministro russo das Finanças Igor Kudrin afirmou que a NATO terá, mais cedo ou
mais tarde, de passar à história. E foi neste momento que se formulou um dos
argumentos-chave russos: a NATO é vista como uma organização que reage de forma
errada a novos desafios de segurança que já não estão circunscritos a um
determinado território. Em particular, segundo Putin e Medvedev, o chamado
"pensamento por blocos" e a expansão territorial que lhe está associada não é
uma solução adequada contra ameaças não territoriais. Paradoxalmente, nesta
circunstância a Rússia - frequentemente descrita como um agente internacional
ao estilo Realpolitik - recorre a um argumento que se baseia em abordagens
transnacionalistas e em ideias desenvolvidas no contexto da procura da paz e
das escolas europeias de pensamento do novo regionalismo.
A Cimeira de Bucareste da NATO, realizada em Abril de 2008, pareceu alargar
ainda mais os fossos de percepção que dividem a Rússia e a NATO. A maioria dos
oficiais da Aliança exprimiu publicamente o seu optimismo e a esperança de
desenvolver uma interacção construtiva entre Moscovo e Bruxelas, ao passo que a
maioria dos comentários russos ficaram marcados pelo pessimismo explícito e por
uma total falta de entusiasmo. No entanto, só depois da Cimeira de Bucareste é
que se tornaram mais ou menos aparentes certos contornos da estratégia russa em
relação à NATO. O que é evidente é que a Rússia tenta utilizar uma série de
argumentos em conjunto.
Em primeiro lugar, a Rússia defende que as candidaturas da Ucrânia e da Geórgia
são a justificação perfeita para os movimentos secessionistas na Crimeia e para
o afastamento dos territórios da Abcásia e da Ossétia do Sul. O Kremlin sempre
insistiu em que nenhum deles votou a sua pertença à NATO. De facto, a Rússia
ameaça Kiev - tal como ameaçou Tbilissi - com a possibilidade de vir a apoiar a
derrocada dos dois países, uma estratégia no mínimo controversa, especialmente
à luz da oposição russa à independência do Kosovo.
Em segundo lugar, a Rússia utiliza um raciocínio normativo ao argumentar que a
vasta maioria dos ucranianos estão contra a integração na NATO. Claro que este
argumento não funciona no caso da Geórgia, onde o referendo acerca deste
assunto deu a vitória ao sim; contudo, a Rússia persiste na exploração da
retórica normativa ao salientar repetidamente que a Geórgia não está à altura
dos padrões ocidentais de democracia. Se continuar a seguir esta linha de
argumentação, Moscovo poderá ver-se encurralada numa contradição lógica: por um
lado, parece estar interessada em recorrer a argumentos normativos contra a
inclusão da Ucrânia e da Geórgia na NATO; mas, por outro, algumas das
afirmações públicas de Putin podem ser vistas como uma tentativa de contrariar
a inter-relação conceptual entre democracia e segurança (a este respeito é
muito significativa a observação de Putin quando afirma que seria absurdo ver
na pertença à NATO uma prova da qualidade democrática de um país).
Em terceiro lugar, existe um debate relacionado com as fronteiras no arsenal da
Rússia, que parece, uma vez mais, constituir um desafio para o próprio país.
Por um lado, a Rússia pretende desempenhar o papel de defensor das fronteiras
abertas com os seus vizinhos do "estrangeiro próximo", o que explica que
segundo a interpretação do vice-primeiro-ministro Sergei Ivanov será a NATO que
acabará por forçar a adopção do regime de vistos entre a Ucrânia e a Rússia.
Esta jogada poderá ser sobretudo prejudicial para a própria Ucrânia, que
perderá turistas russos nas estâncias do mar Negro; para além disso, a
empregabilidade de imigrantes ucranianos na Rússia será mais complicada. Mas,
por outro lado, sabemos bem que há alguns anos a própria Rússia introduziu o
regime de vistos com a Geórgia e inclusive cortou relações económicas com
aquela república.
De que modo se podem explicar todas estas inconsistências enraizadas na posição
russa? Em primeiro lugar, a atitude irregular em relação à NATO assenta em
parte nas dificuldades que a Rússia está a enfrentar na construção da sua
identidade internacional. O cerne da controvérsia na construção da identidade
russa é o choque entre duas tendências em competição. Por um lado, a Rússia
procura redefinir-se como um tipo de sujeito pragmático, individualista e
despolitizado que joga de acordo com as regras e reage basicamente a desafios
ou incentivos de ordem económica ou financeira. Mas, por outro, existe uma
forte herança soviética que se reactualiza em determinados casos para
constranger as jogadas despolitizadas da Rússia. É por isso que o auto-
entendimento russo se baseia de forma tão inerente em narrativas históricas e
se encontra tão intimamente ligado a um passado glorificado e acarinhado. As
observações de Putin carregadas de emotividade acerca da impossibilidade de se
"pensar sequer" na hipotética localização de navios da NATO em Sebastopol foram
uma das muitas expressões do legado soviético russo que ainda persiste.
Em segundo lugar, a Rússia tem alguma dificuldade em compreender a que conceito
de segurança a NATO vai aderir. Em especial, Moscovo parece ter ficado
obviamente irritada ao descobrir que a NATO inclui questões de transporte de
energia na sua agenda de segurança. As desconfianças russas são exacerbadas por
algumas declarações de oficiais georgianos (como, por exemplo, o ministro da
Administração Interna, Vano Merabishvili
33
) segundo os quais a integração deste país na NATO dará lugar a novas rotas de
transporte de recursos energéticos, que evitarão o território russo.
Contudo, não devemos deixar de reparar num vislumbre de promessa: apesar da
óbvia oposição ao alargamento da NATO, na Cimeira de Bucareste Putin assumiu
que se a NATO pretender desenvolver de forma consistente uma parceria
estratégica aprofundada com a Rússia, a reacção de Moscovo não será tão
negativa às actividades da Aliança nos seus países vizinhos. Outro ponto de
partida positivo no âmbito do discurso russo de segurança é a abertura de
Medvedev à ideia de uma segurança comum euro-atlântica, que deveria assentar,
na sua opinião, numa parceria trilateral Estados Unidos-UE-Rússia.
RÚSSIA-GRÃ-BRETANHA: UMA NOVA GUERRA FRIA?
A deterioração crítica das relações russo-britânicas em resultado do homicídio
de Alexander Litvinenko em Londres em 2006
34
poderia servir como um bom lembrete de que o regresso aos tempos da Guerra
Fria não deve ser completamente posto de lado.
Moscovo pareceu muito interessada em encenar uma demonstração do poder
florescente da Rússia, da sua auto-assertividade e da sua soberania plenamente
desenvolvida.
Existem dois objectivos tácticos e uma estratégia na política russa. No que se
refere ao objectivo estratégico, Moscovo rapidamente encenou uma demonstração
do poder florescente da Rússia, da sua auto-assertividade e da sua soberania
madura. Entre os objectivos tácticos, primeiro a Rússia pretendia desmentir as
acusações generalizadas de que tinha patrocinado o homicídio contratual de um
antigo agente do KGB em Londres. Em segundo lugar, a Rússia queria reorientar o
caso contra um magnata fugitivo, Boris Berezovski, e, por fim, pretendia que a
Grã-Bretanha o extraditasse para a Rússia. O Caso Litvinenko-Lugovoi ficou
profundamente inscrito na agenda política doméstica russa, que incluía figuras
como Boris Berezovski, Akhmed Zakayev e outros emigrados. Assim, o Governo
russo acusa Berezovski - um "oligarca" com residência em Londres - de
"patrocinar o terrorismo" dentro da Rússia (mais especificamente, no apoio à
guerrilha da Tchetchénia) e de estar por trás do assassínio de Litvinenko em
Londres. Não é por acaso que a população russa viu no Caso Litvinenko-Lugovoi
uma interessante história de espiões. Estas impressões foram exploradas em
várias tentativas de fazer de Andrei Lugovoi uma personalidade de destaque nos
media e até uma figura política (ele era segundo candidato no LDPR - Partido
Liberal Democrático da Rússia - dirigido por Zhirinovski nas eleições de 2 de
Dezembro de 2007 para a Duma, de que é membro actualmente).
Oficialmente, a Rússia enquadrou a questão no plano legal, preferindo não
prestar atenção a quaisquer justificações sérias para a sua politização. Foi a
Grã-Bretanha que, aos olhos da Rússia, politizou o problema, primeiro, ao
aludir à necessidade de mudar a legislação russa que impossibilitava a
extradição de Andrei Lugovoi. Em segundo lugar, era o lado britânico que se
referia a uma "boa vontade" que Lugovoi pudesse vir a demonstrar para, de forma
voluntária, aceitar o julgamento no Reino Unido de modo a provar a sua
inocência. A introdução do conceito de "boa vontade", aos olhos da Rússia,
atestava a insuficiência de um contexto puramente legal para lidar com a
controvérsia, o que orienta o caso na direcção da política. Em terceiro lugar,
afirma Andrei Lugovoi, os serviços secretos britânicos estavam ao mesmo tempo a
abordá-lo com uma proposta para reunir informação acerca das políticas russas
em geral e o Presidente Putin em particular, por forma a "desacreditar tudo o
que se passa na Rússia". Esta declaração também nos retrata o lado britânico em
tons explicitamente políticos. Em contrapartida, o próprio Lugovoi descreve-se
a si próprio como um "simples homem de negócios", que constrói as suas relações
profissionais em termos contratuais e de gestão.
Moscovo parece sentir-se bastante à vontade no papel auto-atribuído de sujeito
apolítico, e no entanto é exactamente esse papel que é desafiado por toda a
Europa. O que, na verdade, está escondido nas entrelinhas dos argumentos russos
é um discurso de soberania, exemplificado por afirmações antibritânicas de
opinion makers na Rússia. "Tenho orgulho em viver num grande país" - esta
confissão reveladora de Lugovoi
35
veio realçar a articulação entre afirmações relacionadas com o poder e
afirmações centradas no Estado.
Os efeitos deste conflito foram amplamente anormativos. No Caso Litvinenko-
Lugovoi, o contexto internacional foi explicitamente contrário à Rússia.
Moscovo não conseguiu obter nenhum apoio significativo por parte dos governos
estrangeiros e acabou por ficar isolada. Este incidente constituiu parte da
imagem deteriorada da Rússia no mundo ocidental, juntamente com o homicídio de
Anna Politkovskaya e de outras figuras consideradas como duros opositores do
Presidente Putin.
O Caso Litvinenko terminou como um escândalo diplomático entre Moscovo e
Londres, com um grupo de quatro diplomatas de cada lado que acabaram por ser
expulsos. Como forma de retaliação contra o lado britânico, a Rússia anuncia a
quebra da cooperação bilateral contra o terrorismo. As questões de segurança
mostraram ser fonte de divisões: para a Grã-Bretanha, o assassínio de
Litvinenko era um caso relacionado com terrorismo, ao passo que para a Rússia
um dos pontos fulcrais era a relutância das autoridades britânicas em
extraditar Akhmed Zakayev, que era acusado de apoiar o terrorismo dentro da
Rússia. Esta divergência de percepção teve como resultado a avaliação do chefe
do M15, Jonathan Evans, segundo a qual a Rússia era um país hostil que desviou
recursos britânicos usados para proteger a Grã-Bretanha das actividades ilegais
dos agentes dos serviços secretos russos
36
.
A Grã-Bretanha também tomou providências para dificultar a sua política de
vistos para funcionários públicos russos. A resposta russa foi bastante
explícita: segundo Viacheslav Nikonov, "a partir de agora os negócios
britânicos passarão a enfrentar maiores dificuldades nos mercados russos"
37
. Esta reacção revela um importante aspecto do debate: a política não é vista
na Rússia como uma área auto-suficiente para regulamentar relações de poder, e
assume-se que ela necessita de factores adicionais para projectar poder (como
sanções económicas, por exemplo). Esta questão parece dar continuidade ao
debate sobre se os instrumentos económicos usados pela Rússia constituem a sua
- muito eficaz - "arma política" escondida. Contudo, neste jogo de pressão
entre a Rússia e o Reino Unido esta questão pode ser invertida: será que as
contradições políticas entre os dois países constituem uma razão suficiente
para repensar as relações económicas bilaterais? Ambos os países parecem
responder positivamente à pergunta.
A reacção da Rússia ao Caso Litvinenko transforma-o noutra tentativa de
remodelar aquilo a que poderíamos chamar o "mapa mental" da Europa, que, como
já apontei atrás, se baseia na distinção entre os "bons" e os "maus" europeus.
Neste caso, a Rússia tenta abrir uma excepção para as políticas hostis do Reino
Unido, um gesto discursivo que indica que a Rússia não pretende extrapolar a
toda a UE as dificuldades que enfrenta no seu relacionamento com aqueles
países.
KALININGRADO: DO LEGADO SOVIÉTICO ÀS ABORDAGENS PRAGMÁTICAS
O conflito de Kaliningrado dá-nos outro exemplo da reactualização da retórica
da Guerra Fria e da sua revisão.
A estratégia política geral da Rússia consistia em manter o estatuto do oblast
de Kaliningrado como parte da Federação Russa, e na plena aplicação das leis
russas que regulam, quer os acontecimentos internos dessa região, quer a sua
relação com o centro federal. Os principais conceitos ideológicos articulados
pelas autoridades russas eram: "dignidade", "respeito", "orgulho", "honra" e
"princípios". É neste contexto que a UE foi amplamente considerada como uma
potência que impedia a Rússia de exercer os seus direitos de soberania sobre o
oblast de Kaliningrado.
Um factor que dificultou a aplicação da lógica de status quo nesta situação foi
a insistência da UE na sua própria versão de status quo, que se baseava na
aplicação de normas do acquis communautaire ao enclave da Rússia. O choque
entre duas lógicas de status quo define a natureza do conflito, que,
inevitavelmente, deu origem a
"um processo interminável de construção de limites entre "nós" e
"eles", entre bom e mau, e um receio agudo de que se estes limites
fossem postos em causa a identidade da comunidade seria destruída.
[ ] Escusado será dizer que uma predisposição discursiva desta
natureza dificilmente poderia conduzir a um espírito de abertura e de
derrube de fronteiras"
38
.
O pensamento em termos de choque de identidades levou Moscovo a assumir que a
UE estava propositadamente a tornar o conflito mais complexo e que pretendia
enfraquecer os laços da região com a Rússia. Isto explica porque é que antes de
negociar assuntos específicos, a Rússia - seguindo o legado político soviético
- está de pré-aviso e assume uma posição de defesa contra os seus
interlocutores. Como resposta ao que foi considerado como gestos de
hostilidade, por parte do Ocidente, a Rússia é incitada a endurecer a sua
posição relativamente à questão de Kaliningrado - sem prestar atenção às
implicações práticas dessa postura. De modo muito significativo, Gleb
Pavlovskii, um dos manipuladores de opinião do Kremlin, utilizou a expressão
"soberania" dezassete vezes numa entrevista de duas páginas na sequência do
encontro UE-Rússia em Svetlogorsk em Maio de 2009
39
, e depois acrescentou referências à "teoria do dominó" (que defende que a
concessão de um estatuto administrativo especial aos residentes de Kaliningrado
provocaria uma reacção em cadeia no Tataristão, nas ilhas Curilas e noutras
partes potencialmente problemáticas da Rússia).
Muitas personalidades russas com a mesma opinião colocaram deliberadamente o
conflito do oblast de Kaliningrado num contexto emocional, recorrendo à
retórica do nacionalismo ferido. O enclave russo foi descrito como um
território "cercado" de vizinhos hostis; logo, o que importa é restaurar a
subordinação do oblast de Kaliningrado ao centro federal, e demonstrar a
firmeza da posição russa. Bons exemplos disso são os ex-líderes do partido
Rodina, que contribuíram grandemente para a escalada do conflito de identidade
ao sugerirem que a Rússia tinha de ameaçar a Lituânia através de reivindicações
territoriais e da não-ratificação do tratado do estabelecimento de fronteiras
40
.
Enquanto isso, no seio do oblast de Kaliningrado havia muitos apoiantes da
abordagem geopolítica. Por exemplo, um dos políticos locais comparou o processo
de alargamento da NATO com o "Drang nah Osten" alemão
41
. Há forças políticas locais que em 2003 emitiram uma carta aberta ao público
da região na qual protestavam contra as perspectivas de ratificação do tratado
fronteiriço entre a Rússia e a Lituânia, especulando que isso incitaria a
Lituânia a juntar-se à NATO e, em seguida, a chantagear a Rússia
42
. Os jornais locais que cobriram os primeiros dias de travessia da fronteira na
sequência da introdução de facilidades na obtenção de documentos para viajar em
Julho de 2003, aplicou de forma alargada o discurso do Outro ("passageiros
russos assustados" vs "cruéis oficiais de alfândega" da Lituânia, "atmosfera
nervosa" de verificação na passagem da fronteira, etc.
43
).
Uma explicação para este tipo de discurso é a de que a Rússia fica desorientada
em situações em que os limites das fronteiras ficam difusos, em que as
identidades mudam de orientação, e em que a hierarquia dos actores não está bem
estabelecida
44
. É por isso que a Rússia tende mais a reagir do que a agir na região do mar
Báltico, e dá respostas sobretudo quantitativas e modernistas aos desafios
muito mais fundamentais e qualitativos que as estruturas territoriais de
governo têm enfrentado. Moscovo tem dificuldades significativas em percepcionar
o oblast de Kaliningrado como uma parte orgânica dos projectos emergentes do
Báltico e/ou da região nórdica. Os corpos executivos russos exprimiram
repetidas vezes as suas preocupações acerca da concessão de privilégios e
direitos especiais a uma única região (por exemplo, a travessia, sem
necessidade de vistos, de fronteiras de países da UE). Nas entrelinhas pode
ler-se que este ponto de vista restritivo pode ser explicado pelo receio de que
o oblast de Kaliningrado pudesse estabelecer laços mais fortes com a região do
Báltico, e que acabasse por redireccionar as suas relações para o Ocidente.
Contudo, o pensamento defensivo nos escalões superiores da elite federal é
seriamente desafiado pelos que aderiram ao que se podia designar como o
discurso da questão "orientada para dentro". Os seus defensores acham que,
nesta região, a Rússia defronta problemas de ordem técnica e não política e que
se devia concentrar em actualizar as comunicações aéreas e por ferry entre
Kaliningrado e o território russo continental, em providenciar passaportes
internacionais aos residentes e em dar as boas-vindas a novos consulados no
oblast de Kaliningrado
45
. O que efectivamente ameaça o futuro de Kaliningrado não é o novo sistema de
regulamentação de vistos, mas a falta de recursos da Rússia para modernizar de
forma notória as comunicação da região para leste, e a baixa competitividade
das comodidades locais
46
. São sobretudo questões internas que exacerbaram a posição de Kaliningrado.
Outros afirmam que ninguém na região do mar Báltico está interessado na
emergência de uma quarta república báltica que seria incapaz de lidar
eficazmente com a corrupção, o desemprego e a degradação ambiental.
Também por isso a UE não tem obrigações financeiras para com o oblast de
Kaliningrado
47
, o que faz com que a sua elite seja mais activa no estabelecimento de um lóbi
junto do centro federal em nome dos seus interesses regionais.
O que resulta deste tipo de raciocínio é uma lógica de dessecularização que
implica o abandono de uma plataforma exclusivamente centrada no poder em favor
de uma plataforma mais orientada para as questões reais. Embora a Rússia na sua
globalidade não se sinta pronta para se comportar como um país báltico, alguns
dos seus territórios podem com maior facilidade e rapidez tornar-se "regiões
bálticas". Kaliningrado é um assunto que aguarda resolução, pelo que o seu
modelo futuro poderia ser descrito como "leis europeias num território russo".
Isto poderá suceder como resultado da aplicação de práticas-padrão num vasto
grupo de esferas de política pública - as regras internas de regulamentação de
negócios, a protecção do ambiente e os padrões de segurança de produtos têm de
ser compatíveis com os dos países da UE, etc.
Portanto, o conflito de Kaliningrado dá-nos um bom exemplo de dois significados
diferentes incluídos no discurso acerca da "escolha europeia" por parte da
Rússia.
O entendimento de se "estar na Europa" é marcado por um forte sentido de
política de poder, o que implica que a Rússia está ansiosa por obter o mesmo
tipo de tratamento por parte da UE e por aceder ao seu mercado. A Rússia tem de
ser aceite em pé de igualdade independentemente dos seus acontecimentos
internos, incluindo as políticas eleitorais, o governo, as relações negociais,
as liberdades dos meios de comunicação, e por aí fora.
Entretanto, começa a surgir um entendimento diferente acerca da "escolha
europeia" da Rússia, que faz alterar as políticas russas, da fobia para a
cooperação, do semi-isolacionismo e das frequentes opções unilaterais para
soluções multilaterais. A "europeização" da Rússia é portanto interpretada como
uma política de reconstrução das regras internas da Rússia em consonância com
as normas da UE. O oblast de Kaliningrado parece ser um bom terreno para
experimentar movimentos que se devem, de um modo geral, a dois motivos
principais. Em primeiro lugar, há um sentimento bastante difundido de que o
oblast de Kaliningrado, criado como uma unidade administrativa governada
directamente pelo centro e destinada a agir de forma controlada de acordo com
as regras ditadas de cima, parecia feito à medida para o sistema soviético, mas
parece desempenhar aspectos disfuncionais num novo contexto pós-soviético. O
oblast de Kaliningrado está à procura de novas formas para a sua subjectividade
transregional, presumindo que as hipóteses de sucesso se consideram mais
elevadas nos territórios que enfrentam a ameaça de serem empurrados para a
periferia e que se encontram profundamente insatisfeitos com os seus papéis.
A segunda razão - que se relaciona com a primeira - diz respeito à assunção de
que, não só o próprio oblast de Kaliningrado, mas toda a região do mar Báltico,
representam um "quadro aberto" que sempre acolhe a chegada de novas ideias. Uma
vez que muitos especialistas assumem que "os velhos padrões do regionalismo" se
tornaram obsoletos, os novos ainda têm de ser desenvolvidos para lá dos limites
administrativos do Estado, que, por isso, têm de ser integrados em contextos
transnacionais. Em particular, a criação da euro-região "Báltica" (que inclui o
oblast de Kaliningrado) é uma das tentativas de "multilateralizar" a agenda da
região e de reorientar as estratégias regionais no sentido de promover a
inovação, soluções de marketing, a orientação para o consumidor, proporcionar
melhores acessibilidades aos bens e aos serviços públicos, e dar maior
visibilidade aos debates públicos acerca das condições de vida futuras.
CONCLUSÃO
Tal como salientei neste ensaio, a análise dos discursos políticos tem de ter
em conta os acontecimentos que são escolhidos como pontos temporais
constitutivos que substanciam e legitimam as identidades dos sujeitos
políticos. Partindo deste ponto de vista, poder-se-ia assumir que os discursos
contemporâneos russo e europeu assentam em dois momentos-chave do século XX: a
II Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim.
Apesar desta aparente analogia estrutural entre os dois discursos, há uma
diferença notória entre os efeitos que eles causam na formação das duas
identidades. Para a Europa (e no sentido lato, para toda a comunidade euro-
atlântica), estes dois acontecimentos modeladores estão intimamente
relacionados e inscrevem-se numa "narrativa maior" da proliferação dos valores
da democracia e da paz. O Presidente norte-americano Barack Obama afirmou que a
invasão das tropas aliadas na Normandia há sessenta e cinco anos foi um momento
essencial que permitiu que se alcançassem os sucessos que se seguiriam à
libertação da Europa: o Plano Marshall, a aliança da NATO, e a prosperidade
partilhada e a segurança que ambos proporcionaram
48
.
Aquilo de que a Rússia sente desesperadamente falta é deste tipo de "grande
narrativa".
A vitória da URSS na Grande Guerra Patriótica, instrumentalmente "apropriada"
pelo regime "tandemocrático" de Putin-Medvedev como uma das provas históricas
mais convincentes do estatuto de grande potência da Rússia faz ao mesmo tempo
parte de um discurso pró-comunista/neo-estalinista, que de outra forma seria
rejeitado pelo Kremlin. Os significados de celebração ligados ao 9 de Maio (o
Dia V) nesse sentido negam o potencial de emancipação do legado de 1989, o que
se deve a dois motivos.
Primeiro, o que se seguiu pouco depois da queda do Muro de Berlim - a
dissolução da União Soviética em 1991 - é comummente aceite como um símbolo do
desmembramento artificial do mesmo Estado que venceu a maior batalha do século
XX. Em segundo lugar, a desintegração vertiginosa do bloco socialista de
estados-satélites em 1989 desafiou a própria ideia da suposta "libertação"
soviética de um grupo de estados da Europa Oriental em 1945.
No que diz respeito a esses antigos estados da Europa de Leste, os seus
discursos modeladores de identidade, ao contrário dos da Rússia e da Europa,
acrescentam intencionalmente outros pontos de referência temporal às suas
narrativas nacionais, fazendo com que o quadro geral seja mais diferenciado e
controverso. Por exemplo, a Estónia situa a sua identidade internacional no
tratado de paz de Tartu, de 1920, enquanto as autoridades ucranianas tentam
usar o Golodomor (grande fome) de meados dos anos 1930 como uma legitimação
histórica dos maus-tratos que esta república sofria às mãos das autoridades
comunistas de Moscovo. Os húngaros, certamente, mantêm as suas memórias
constitutivas da invasão soviética de 1956, ao passo que os checos comemoram os
acontecimentos semelhantes de 1968. Por diversas razões, estas memórias
nacionais não estão inscritas de modo particularmente profundo nem no discurso
russo nem no europeu.
O que resulta daqui é que a Rússia se encontra numa situação de duplo conflito
discursivo: as suas versões de acontecimentos-chave do século XX são
desafiadas, quer pela narrativa história euro-atlântica, quer pelos discursos
auto-assertivos dos "novos europeus". O pior erro que o Kremlin pode cometer é
apelidar de "incorrectas" ou "malévolas" todas as interpretações alternativas
da história. A tentação de aplicar um argumento ao estilo da Realpolitik - ou
seja, equiparar as práticas comemorativas desafiantes (e até hostis) a
falsificações prejudiciais para os interesses da Rússia - numa situação muito
mais multidimensional de identidades em conflito e de discursos em fase de
viragem não só não aproximará a Rússia da Europa como não a ajudará a reificar
o potencial, ainda inexplorado, do legado de 1989.
TRADUÇÃO DE JORGE GARCIA
NOTAS
1
BUTLER, Judith - Precarious Life. The Powers of Mourning and Violence.
Londres: Verso, 2006, p. 5.
2
BADIOU, Alain - Metapolitics. Londres: Verso, 2005, pp. 21-24.
3
KARA-MURZA, Alexei - Mezhdu imperiei i smutoi. Moscovo: Instituto de
Filosofia, Academia Russa de Ciências, 1996, p. 23.
4
MOROZOV, Viacheslav - "Russia in/and Europe: identities and boundaries".
Ensaio preparado para o workshop "Identity Policies in Wider Europe. Mutual
Perceptions in Germany and Russia", Berlim, Friedrich Ebert Stiftung e Stiftung
Wissenschaft und Politik, 6 de Junho de 2009, p. 5.
5
Cf. discurso de Dmitri Medvedev na Conferência de Política Mundial, em Evian,
8 de Outubro de 2008. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/appears/2008/
10/207422.shtml
6
Ibidem.
7
BAZHANOV, Yevgeniy - "Overcoming the Hobbesian instinct". In The Moscow Times,
15 de Maio de 2009, p. 8.
8
OZNOBISCHEV, Sergey - "Vremia vybirat". In International Trends. Journal of
International Relations Theory and World Politics. Vol. 2, N.º 1 (4), Janeiro-
Abril de 2004, p. 92.
9
BAZHANOV, Yevgeniy - "Russian foreign and security policy in its global
dimension". In SPILLMAN, Kurt, e WENGER, Andreas (coords.) - Russia's Place in
Europe. A Security Debate. Berna: Peter Lang Publishers, 1999, p. 171.
10
SPILLMAN, Kurt, e WENGER, Andreas (coords.) - Russia's Place in Europe. A
Security Debate, p. 221.
11
SMITH, David J. - ""Woe from stones": commemoration, identity politics and
Estonia's "War of Monuments"". In Journal of Baltic Studies. Vol. 39, N.º 4,
Dezembro de 2008, p. 421.
12
YASTRZHEMBSKIY, Sergey - "Kto tormozit vagon?". In MoskovskiiKomsomolets, 16
de Maio de 2007.
13
Nezavisimaya gazeta, 17 de Novembro de 2004.
14
Strana.ru, 10 de Outubro de 2004.
15
MOROZOV, Viacheslav - "Russia in the Baltic Sea region: de-securitization or
de-regionalization?". In Cooperation and Conflict, Setembro de 2004.
16
MOROZOV, Viacheslav - "The Baltic states in Russian foreign policy discourse:
can Russia become a Baltic country?", Copenhagen Peace Research Institute,
COPRI Working Paper, 2004.
17
ASTROV, Alexandr - Samochinnoe soobschestvo: politika men'shinstv ili malaya
politika?. Talin: Publicações Avenarius, 2007.
18
Entrevista de Vladimir Putin à CNN, Sochi, 28 de Agosto de 2008. Disponível
em: http://www.government.ru
19
PAVLOVSKY, Gleb - "Vozvraschenie iz Gori". In Expert. N.º 33, 25-31 de Agosto
de 2008, p. 60.
20
DORENKO, Sergei - "Nam prinesut Gruziyu v podarochnoy upakovke". In
Komsomolskaya Pravda, 4-11 de Setembro de 2008, p. 4.
21
Entrevista de Dmitri Medvedev à BBC, Sochi, 26 de Agosto de 2008. Disponível
em: http://www.kremlin.ru/text/appears/2008/08/205775.shtml
22
"Kto ubil "Bol'shuyu Evropu"", in http://europe.inache.net/bigeuro.html
23
Entrevista de Vladimir Putin ao canal televisivo Vesti, 6 de Setembro de 2008.
Disponível em: http://www.government.ru
24
VLASOVA, Olga - "Kak pobedit' Evrosoyuz". In Expert. N.º 34, 1-7 de Setembro
de 2008, pp. 66-69.
25
LAVROV, Sergey - "Vneshniaya politika Rossii i novoe kachestvo
geopoliticheskoi situatsii". In Moscow: the Diplomatic Academy of MFA,
Diplomaticheskiy ezhegodnik, 2008.
26
Discurso do Presidente Medvedev na Conferência de Política Mundial, Evian, 8
de Outubro de 2008. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/apears/2008/10/
207422.shtml
27
Ibidem.
28
PAVLOVSKY, Gleb - "Vozvraschenie iz Gori". In Expert. N.º 33, 25- 31 de Agosto
de 2008, p. 60.
29
REMIZOV, Mikhail - "Sud'ba rossiyskogo nasledstva", APN Agency & National
Strategy Institute, 12 de Abril de 2005. Disponível em: http://www.apn.ru/
publications/print1355.htm
30
TRENIN, Dmitry - Reading Russia Right, Policy Brief, Carnegie Endownment for
International Peace, edição especial, n.º 42, Outubro de 2005, p. 1.
31
Encontro do Presidente Putin com os membros do clube de debate Valday, Sochi,
14 de Setembro de 2004. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/appears/2007/
09/144011.shtml
32
ADOMEIT, Hannes - "Inside or outside? Russia's policies towards NATO". In
ROWE, Elana Wilson, e TORJESEN, Stina (orgs.) - The Multilateral Dimension in
Russian Foreign Policy. Londres: Routledge, 2009, p. 117.
33
Kommersant, 28 de Maio de 2008.
34
O ex-agente do KGB, Litvinenko, recebeu a cidadania britânica. As autoridades
britânicas acusara§m Andrey Lugovoi de ter envenenado Litvinenko em Londres.
35
Moscow News. N.º 28 (1395), 20-26 de Julho de 2007, p. 12.
36
USA Today, 6 de Novembro de 2007, p. 2.
37
Moscow News. N.º 28 (1395), 20-26 de Julho de 2007, p. 13.
38
MOROZOV, Viacheslav - "Russia in the Baltic Sea region: de-securitization or
de-regionalization?".
39
Disponível em: http://www.strana.ru/print/137124.html
40
Mayak Baltiki, 13 de Fevereiro de 2003, p. 2.
41
CHERNOMORSKII, P. - "Ni transit, ni vizy kaliningradskuyu problemu ne reshat".
Disponível em: http://www.globalrus.ru/index.html?section=review&id=57235
42
Baltiiskaya gazeta. N.º 6 (74), 20 de Fevereiro de 2003, p. 4.
43
Kaliningradskaya Pravda. N.º 213 (15616), 23 de Outubro de 2002, p. 6.
44
MOROZOV, Viacheslav - "The Baltic states in Russian foreign policy discourse:
can Russia become a Baltic country?".
45
Disponível em: http://www.politcom.ru/print.php?fname
46
SMORODINSKAIA, Natalia - Baltiiskaya zagvozdka (O desconforto báltico).
Disponível em: http://www.expert.ru/sever/current/tema.shtml
47
KOBRINSKAIA, Irina - "Pri chom zdes vizy" [O que têm os vistos a ver com tudo
isto]. In The Moscow News. Disponível em: http://www.mn.ru/issue.php?2002-25-26
48
OBAMA, Barack - "Remarks of the President at D-Day 65th anniversary ceremony".
Normandy American Cemetery and Memorial, France. The White House, Office of the
Press Secretary, 5 de Junho de 2009.
* Professor na Universidade de Nizhny Novgorod, Rússia.
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt