O europeísmo relutante do Estado Novo
O europeísmo relutante do Estado Novo
José Magone *
Nicolau Andresen Leitão
Estado Novo, Democracia e Europa 1947-1986
Lisboa,
ICS,
2007, 325 páginas
Um dos mais importantes passos para compreender a natureza do processo de
integracao europeia em relacao a Portugal e o conhecimento dessa historia, tal
como ela se desenrolou desde 1945. A ditadura de Antonio Oliveira Salazar, e a
do seu sucessor, Marcelo Caetano, teve bastantes dificuldades em lidar com o
processo de integracao europeia. O regime autoritario foi forcado, contra os
seus instintos paroquiais, a negociar politicas comerciais que abriam o mercado
continental portugues nao so a outros paises europeus, como tambem ao resto do
mundo. Neste processo de adaptacao a realidade pos. 1945, dominada pelo novo
poder hegemonico dos Estados Unidos e pela Guerra Fria, Portugal seguiu quase
sempre a politica externa da Gra-Bretanha. A velha alianca estabelecida pelo
Tratado de Windsor de 1386 era muito importante para Salazar, que tendia a
adoptar uma atitude de mimetismo relativamente a posicao britanica,
nomeadamente em materia de integracao europeia. A contragosto, Salazar
reconhecia que o novo poder hegemonico dos Estados Unidos tinha contribuido
para a mudanca do equilibrio de poder mundial, mas os seus instintos eram os de
procurar sobreviver num contexto adverso, no qual tanto a democracia como os
direitos humanos estavam a tornar-se importantes critérios para a integração de
um país na sociedade internacional de estados.
Esta excelente monografia de Nicolau Andresen Leitão, investigador associado no
prestigiado Instituto de Ciências Sociais, é um estudo histórico das políticas
de integração europeia dos ditadores Oliveira Salazar e Marcelo Caetano.
Andresen Leitão é um discípulo do conhecido historiador britânico Alan Milward,
autor do importante livro The European Rescue of the Nation-State (1992). A
obra aqui apresentada é a adaptação de uma tese de doutoramento defendida por
Andresen Leitão no Instituto Universitário Europeu (Florença), em Março de
2004. Parafraseando o seu mentor, poderíamos dizer que o estudo de Andresen
Leitão tenta no fundo descrever e analisar «a salvação europeia da ditadura
portuguesa». Com um conhecimento profundo dos arquivos portugueses e da União
Europeia, Andresen Leitão expõe de forma detalhada as discussões internas
mantidas pelos protagonistas do regime autoritário entre 1948 e 1972, embora
com uma maior incidência no período que vai de 1948 a 1962.
O estudo está dividido em seis capítulos.
O primeiro é uma caracterização do regime autoritário de Salazar e um esboço da
equipa de Salazar nas negociações europeias. O segundo é dedicado às
negociações para o estabelecimento de uma zona de comércio livre no contexto da
Organização de Cooperação Económica Europeia, negociações essas que foram
usadas pela Grã-Bretanha para tentar lançar uma alternativa à Comunidade
Económica Europeia (CEE). O terceiro centra-se no processo de adesão à efta e
nas dificuldades na negociação com a CEE em 1962. O quarto e quinto capítulos
são uma avaliação das economias continental e coloniais portuguesas, ambas
extremamente dependentes da Europa. O último capítulo ocupa-se do período que
vai do fracasso das negociações com a CEE em 1962 à assinatura do acordo
comercial com a mesma organização em 1972, e encerra com um sumário dos mais
importantes desenvolvimentos ocorridos até 1986.
UM BUROCRATA BEM-SUCEDIDO
A qualidade deste trabalho consiste na reconstrução dos argumentos dos
diferentesprotagonistas no seio do regime autoritário. O autor não escreve
muito sobre Salazar, mas mais sobre os diplomatas e políticos que de alguma
maneira influenciaram o processo decisório português.
O estudo pormenorizado das posições dos diferentes actores centrais do Estado
Novo mostra que até num regime autoritário um certo pluralismo de opiniões pode
existir.
O protagonista do seu estudo não é nenhum dos mais conhecidos políticos da
época, mas um burocrata que, a pouco e pouco, foi aumentando o seu prestígio e
influência na hierarquia do Estado Novo. A personagem principal é o jurista
José Gonçalo da Cunha Sottomayor Corrêa d'Oliveira, que desde o início
acompanhou todas fases da política europeia do Estado Novo. Nos anos 1960
tornou-se ministro da Presidência (1961-1965) e da Economia (1965-1969), tendo-
se distinguido antes disso como o principal negociador da surpreendente adesão
de Portugal à Associação de Comércio Livre Europeia (European Free Trade
Association ' EFTA), em 1959-1960.
O estudo de Andresen Leitão foi naturalmente muito difícil de realizar porque a
tendência de Salazar para concentrar em si a rotina da governação, e consultar
os seus ministros numa base bilateral, deu origem a poucas reuniões de Conselho
de Ministros ' e isso quer dizer poucas actas de reuniões, a principal
ferramenta para um historiador da alta política governamental.
O estudo mostra como os negociadores portugueses tinham grandes dificuldades em
reunir boa informação técnica. Pouco investimento em recursos humanos e
estruturas técnicas punham as delegações portuguesas em desvantagem perante os
negociadores de outros países e instituições. Em Setembro de 1948, foi criada a
Comissão Técnica de Cooperação Económica Europeia para coordenar as negociações
aos diferentes projectos de integração europeia, mas durante todo o período do
regime autoritário houve uma enorme dificuldade em formar peritos, tão notória
era a obsessão de Salazar com a contenção de despesas administrativas. Esse
facto prejudicou consideravelmente a posição portuguesa, a qual não tinha
estudos científicos e empíricos sobre a maior parte dos assuntos com que se
confrontava. Esta falta de recursos humanos contribuiu para atrasos
consideráveis nas negociações com a CEE. Segundo um responsável português, as
negociações foram prejudicadas não só por atrasos burocráticos, ineficiência e
falta de especialistas em assuntos comunitários, mas também por lutas
intestinas entre a facção europeísta e a facção ultramarinista do regime. Além
disso, até Janeiro de 1962, Portugal não possuía diplomatas em Bruxelas que se
pudessem ocupar exclusivamente das negociações, e só a partir dessa data é que
passou a contar aí com um representante a tempo inteiro. Também no processo que
conduziu à adesão à efta, o Governo britânico criticou Portugal por não possuir
a capacidade política, administrativa ou técnica indispensável para uma
adaptação bem-sucedida ao mundo moderno. Críticas semelhantes continuaram
depois da adesão à efta, formuladas principalmente pelos países escandinavos
(pp. 40-43).
Naturalmente, essa pressão internacional foi determinante para a mudança de
estilos dentro da Administração portuguesa.
A partir de 1949, Portugal passou a ter de enviar relatórios anuais para a
OECE, os quais tiveram um importante impacto nos planos de fomento. A
internacionalização e integração nos círculos europeus forçaram uma
modernização moderada da Administração e diplomacia portuguesas (p. 47).
Um terceiro aspecto do estudo mostra como a diplomacia portuguesa era
extremamente dependente da diplomacia britânica, a qual se distinguia pela sua
hostilidade a uma evolução supranacional do projecto europeu. Andresen Leitão
mostra como a Grã-Bretanha agiu activamente contra essa integração
supranacional, principalmente no processo negocial que conduziu aos Tratados de
Roma, os quais fundaram a cee e a Euratom (pp. 67-70).
Uma característica positiva da diplomacia portuguesa foi a sua flexibilidade e
capacidade para mudar de posições. Um bom exemplo foi a possibilidade
contemplada por Corrêa d'Oliveira de requerer apenas o estatuto de membro
associado da CEE em 1962. Por um lado, a associação da Grécia tornou-se de
certa forma um modelo para Portugal, devido ao facto de as duas economias
apresentarem grandes similitudes em termos de desenvolvimento; por outro lado,
essa seria uma maneira de Portugal proteger melhor os seus interesses
relativamente ao império colonial (pp. 129-135).
QUESTÃO COLONIAL E OPÇÃO EUROPEIA
Para além da sua natureza ditatorial, o império colonial terá sido o problema
mais difícil para Portugal em termos interna cionais. As guerras coloniais das
decadas de 1960 e 1970 deram azo a um acrescimo de criticas por parte dos
partidos socia.democratas na Belgica, Holanda e Italia.
A tentativa de criar o Espaco Economico Portugues a 1 de Janeiro de 1962 veio
agravar as relacoes comerciais entre as colonias e Portugal, devido aos
diferentes niveis de desenvolvimento (pp. 222-223).
O imperio colonial dividiu a elite salazarista/ caetanista ate 25 de Abril de
1974.
O lobi colonial e os apoiantes da opcao europeia tinham projectos incompativeis
para Portugal. Andresen Leitao salienta alias o facto de o general Antonio de
Spinola, o lider da Junta de Salvacao Nacional, ter ele proprio apresentado um
projecto nacional no seu livro Portugal e o Futuro, publicado em Fevereiro de
1974, cujo aspecto fulcral era a preservacao do imperio colonial portugues sob
novas roupagens.
Apesar de excelente e muito bem investigado, este estudo merece dois reparos
que julgo importantes para a compreensao da historia da integracao europeia de
Portugal. A primeira critica e que o autor nao apresenta um capitulo sobre a
literatura existente sobre essa area. Varios autores, como Maria Fernanda Rollo
e Jose Manuel Tavares Castilho, sao citados no trabalho, mas Andresen Leitao
nao discute suficientemente as suas obras, no sentido de esclarecer esclarecer
até que ponto se propõe oferecer um contributo original. Uma revisão da
literatura é essencial para estabelecer uma forte cultura de investigação na
história da integração europeia de Portugal. Além disso, seria muito importante
fazer um relatório dos arquivos utilizados e das dificuldades com que os
estudiosos se deparam para encontrar documentos sobre o período. Nesse capítulo
devia também haver uma referência à metodologia utilizada.
A segunda crítica é que o autor parece ter sucumbido à tentação do marketing,
prometendo mais do que aquilo que oferece.
O título da obra promete um estudo abarcando o período de 1947 a 1986, mas, na
realidade, o período que vai de 1972 a 1986 é arrumado com sete páginas no
último capítulo. Na minha opinião, essas sete páginas cobrem um período crucial
da história recente de Portugal e, comparadas com a excelente qualidade do
resto do livro, denotam alguma tendência para a simplificação.
Apesar destas duas críticas, é indiscutível que estamos perante um valioso
contributo para a compreensão dos processos decisórios dentro do regime
autoritário português. Estado Novo, Democracia e Europa é, pois, uma obra
indispensável para todos os estudiosos da integração europeia e de Portugal.
* Professor na Berlin School of Economics and Law e autor de numerosos ensaios
sobre política portuguesa e espanhola contemporânea e temas europeus, entre os
quais The Developing Place of Portugal in the European Union (2004) e The New
World Architecture: The Role of the European Union in the Making of Global
Governance (2005).
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