Lisboa: as dúvidas ainda sem resposta
Lisboa: as dúvidas ainda sem resposta
1.
Perante jornalistas, escassos dias após a entrada em vigor do Tratado de
Lisboa, Jacques Delors alertou para os riscos de uma deriva intergovernamental
que poderia, a prazo, pôr em causa o processo de integração; semanas antes,
tinha assinado uma carta aberta[1] apelando à manutenção do método comunitário
que foi igualmente subscrita, entre outros nomes conhecidos, e para além de
três ex-presidentes da Comissão, por dois portugueses que ocuparam funções
governamentais: Maria João Rodrigues e Vítor Martins.
Delors tem razão. A criação dos cargos de presidente do Conselho Europeu, do
alto-representante/vice-presidente e o próprio Serviço Europeu de Acção Externa
cuja esfera de atribuições se estenderá a algumas das competências exclusivas
da Comissão, de par com o risco de partilha e diluição do direito de
iniciativa, são novidades que podem prenunciar um desvio intergovernamental que
poderia pôr em causa o complexo processo de construção europeia.
Não enfrentamos uma inevitabilidade. Estamos apenas perante um risco que não
deve ser escamoteado e face ao qual os pequenos e médios países da União
Europeia (UE) estão já atentos.
A dicotomia intergovernamental versus comunitário que sempre pautou o longo
processo de integração[2] volta pois a colocar-se, valendo a pena recordar o
óbvio: o método comunitário assenta no monopólio da capacidade de iniciativa da
Comissão, no sistema de voto por maioria qualificada no Conselho, nos poderes
de co-decisão do Parlamento Europeu. Mas a sua pedra de toque está na
centralidade da Comissão na arquitectura institucional comunitária.
Ao colocar a Comissão como guardiã dos tratados, instância supranacional e
única detentora da prerrogativa de propor, os negociadores dos diversos
tratados quiseram que as propostas de legislação visassem o interesse comum,
primeiro da Comunidade, mais tarde da União. Essa opção pelo interesse comum,
ou pela média dos interesses europeus nas diversas matérias, acautela os
interesses gerais e nem sempre coincide com as conveniências dos grandes três
grandes estados-membros.
Face à inexistência de uma instância paritariamente representativa dos países,
não foi por acaso que ao longo de décadas os pequenos e médios estados-membros
se tenham assumido como os grandes aliados da Comissão, considerada como a
instituição mais capaz de atenuar ou dar uma tradução «europeia» às exigências
e às pulsões dominadoras da Alemanha, da França e do Reino Unido.
Essa percepção decorre evidentemente do facto de, ao contrário das construções
federais, onde o interesse individual é acautelado pela paridade de voto em
câmaras altas ' como, por exemplo, no Senado americano onde o Delaware tem os
mesmos dois senadores que a Califórnia ou Nova York e, como tal, idêntica
capacidade para influenciar o processo legislativo ' a UE não dispõe de nenhuma
instituição desse tipo. Por isso mesmo, a defesa das prerrogativas da Comissão
tornou-se um dos cavalos de batalha daqueles que pretendem coarctar o obsessivo
protagonismo do Directório[3].
Num período de transição entre os dois tratados, numa altura em que ainda
decorrem os trabalhos de implementação do texto assinado em Lisboa, todos os
sinais são objecto de minuciosa análise e as medidas adoptadas, os passos
dados, observados de perto, dado poderem constituir precedentes sem retorno
para a prática futura.
É igualmente verdade que o Tratado de Lisboa ao conceder acrescidos poderes ao
Parlamento Europeu (PE) reforça a abordagem comunitária. Deve-se pois ter em
conta que 95 por cento da legislação será agora objecto de co-decisão e que o
PE terá sempre a última palavra nas questões orçamentais, incluindo a
agricultura, ou a coesão económica e social. Acresce o facto de o Parlamento
tender a adoptar posições mais consentâneas com o «interesse comum»,
ultrapassando assim o estrito quadro de conveniências imediatas em que o
Directório se costuma situar. Para países da dimensão de Portugal, será pois
indispensável um contacto assíduo com os parlamentares europeus que nas
comissões poderão transformar em ganhos, perdas não consigamos evitar no quadro
estreito do Conselho.
2.
Aumentar a visibilidade e o peso da UE no mundo, falar a uma voz, dispor de um
número de telefone único, acomodar futuros alargamentos, foram alguns dos
motivos mais repisados para modificar os tratados. Será que esses objectivos
serão alcançados com a criação do presidente permanente do Conselho Europeu, o
alto-representante para a Política Externa e de Segurança Comum e o Serviço
Europeu para a Acção Externa (SEAE)?
Durante os próximos dois anos e meio, ou porventura mesmo cinco, Herman van
Rompuy presidirá às reuniões do Conselho Europeu e representará a União nas
cimeiras com países terceiros. Como se irá articular com Durão Barroso,
Catherine Ashton e a presidência rotativa? De que forma as iniciativas que
venha a tomar poderão cercear o direito de iniciativa exclusiva da Comissão?
Funcionará como um gerador de consensos ou tenderá a marcar um rumo? Será um
chairman imparcial, ou um presidente zeloso de uma leitura alargada das difusas
competências que o tratado lhe dá?
Perguntas pertinentes, perguntas ainda sem resposta, mas questões que, se mal
respondidas, poderão desvirtuar o próprio processo de integração.
Será no domínio da representação externa que melhor deverão ser definidas as
fronteiras da actuação entre Durão Barroso e Van Rompuy pois o Tratado de
Lisboa estatui que o presidente do Conselho Europeu assegura «a representação
externa da União nas matérias do âmbito da política externa e de segurança
comum» e esclarece que essa representação deverá ser feita «sem prejuízo das
atribuições do alto-representante da União para os Negócios Estrangeiros e a
Política de Segurança». No entanto, Van Rompuy irá partilhar essas funções,
mais com o presidente da Comissão do que com a senhora Ashton, sendo que o
problema não se situa sequer a esse nível, mas na impossibilidade de se
abordarem temas de política externa sem tomar posição relativamente aos
reflexos exteriores das políticas externas. Numa cimeira com a América Latina
ou os Estados Unidos, nos encontros com líderes de países terceiros, seria um
notável acto de contorcionismo abordar questões internacionais deixando de fora
implicações comerciais, ambientais, económicas ou financeiras ' isto é, sem
entrar em matéria da competência exclusiva ou partilhada da Comissão e, por
isso mesmo, multiplicam-se as advertências aos potenciais riscos de conflito
entre os detentores daqueles cargos; ou, como disse Jacques Delors[4],
referindo-se justamente ao presidente do Conselho Europeu e afirmando tratar-se
de uma função que poderá suscitar disputas e tensões entre as instituições, com
a presidência rotativa e as administrações nacionais.
Claro que todas as mudanças deste tipo implicam riscos, sendo também evidente
que as personalidades e a experiência dos detentores dos cargos deverão servir
para evitar incidentes, mas o problema incontornável é o carácter
intergovernamental das funções do presidente do Conselho Europeu, cujo espaço
de manobra só muito dificilmente não se sobreporá ao seu homólogo da Comissão.
3.
Coube a Lady Ashton assumir as novas funções de alto-representante/vice-
presidente da Comissão. Um cargo que agrupa num só titular as tarefas
anteriormente cometidas a Javier Solana e aos comissários das Relações Externas
e da Política de Vizinhança. Trata-se, certamente, do conjunto de
responsabilidades mais pesadas e complexas endossadas a um só responsável pelo
Tratado de Lisboa.
Como alta representante, é nomeada pelo Conselho Europeu, preside ao recém-
formado Conselho dos Negócios Estrangeiros, assegura o diálogo político com
países terceiros, irá chefiar os milhares de diplomatas, técnicos e
funcionários que integrarão o SEAE.
Na qualidade de vice-presidente da Comissão, é investida pelo Parlamento
Europeu e coordena toda a acção externa da Comissão, isto é, actividades tão
diversas como a política de desenvolvimento, a ajuda humanitária, a política de
vizinhança com o Mediterrâneo e o Leste, a promoção dos Direitos do Homem, bem
como as vertentes externas das políticas internas em domínios tão diversos como
a luta contra o terrorismo, agricultura, transportes, ambiente, acordos com
países terceiros, etc.
Para além do volume de trabalho e de uma agenda que poderiam certamente ocupar,
a tempo inteiro, diversos responsáveis políticos, Catherine Ashton deverá gerir
o complexo equilíbrio da dupla tutela a que será sujeita pelo Conselho e pela
Comissão. Terá igualmente que lidar e fazer a síntese entre matérias claramente
de índole comunitária como as acima referidas e temas do domínio
intergovernamental como a política externa ou a política de defesa comuns.
Está-se pois perante uma tarefa quase impossível de levar a cabo e que só
poderá ser exercida com amplas delegações de competências formais ou informais,
sendo importante aferir mais tarde qual das tutelas tende a prevalecer, num
cargo que resulta da fusão de vários e de cujo sucesso ou insucesso dependerá
muito o aumento da tão ambicionada projecção internacional da UE.
4.
Durante o segundo semestre deste ano, o SEAE dará os primeiros passos na
criação do que será, a prazo, o maior serviço diplomático do mundo.
Desde 1 de Dezembro de 2009, as 136 delegações da Comissão espalhadas pelo
mundo passaram a designar-se por «Delegações da União Europeia» e os
representantes da UE em países terceiros reconhecidos na realidade como os seus
embaixadores. No ano passado, o Conselho acordou o fim das presidências
rotativas em países terceiros ' medida que deverá ainda ser confirmada quando
da adopção da decisão que instituirá o SEAE[5] ' e se traduzirá no adensar da
visibilidade e num acrescido protagonismo para as delegações da UE, devendo
ainda ser objecto de debate interno as formas de articulação local com as
embaixadas nacionais.
Aproxima-se o fim das diplomacias nacionais? Valerá a pena continuar a manter
embaixadas no exterior? Estas são algumas das questões que já se colocam e
continuarão a ser suscitadas com insistência nos tempos mais próximos.
Na realidade, o SEAE será criado estritamente para «apoiar a acção do Alto-
Representante» e as suas delegações, agora com um poder acrescido que terão
como missão defender os valores e os interesses da UE no seu conjunto, não os
interesses particulares deste ou daquele Estado-membro, nesta ou naquela
região. Não será pois prioridade daquelas missões zelar por ou defender os
interesses bilaterais de Portugal ou de qualquer outro Estado-membro.
Convém recordar, a título de exemplo, que, na sua acção, o Serviço Europeu
contará com o significativo apoio de uma série de instrumentos financeiros já
existentes, na área da ajuda ao desenvolvimento e do meio ambiente que tornarão
as delegações da UE fora da nossa «fronteira externa comum» nos interlocutores
privilegiados dos governos da América Latina, da Ásia e da África. Tendo em
carteira e representando fundos dotados de muitas centenas de milhões de euros
que financiam projectos e, nalguns casos, directamente orçamentos de Estado dos
países em desenvolvimento, apoiam iniciativas da sociedade civil, prestam
auxílio humanitário e estão, por vezes, na primeira linha do apoio às vítimas
de desastres naturais, a visibilidade, protagonismo e influência das delegações
da UE não deixará de se acentuar, muitas vezes em detrimento do espaço público
das embaixadas bilaterais. É evidente que todos esses meios financeiros têm
origem nos contribuintes europeus, mas chegam já desde há muito aos
beneficiários através dessas delegações, cujo peso, na futura configuração, não
deixará de se acentuar.
Mas nem a defesa, nem a diplomacia foram comunitarizadas, nem os estados-
membros perderam a sua independência. Pelo contrário, o Tratado de Lisboa
explicita de forma clara que os diversos países continuarão a ser soberanos na
prossecução da sua política externa.
Como melhor deverão ser acautelados os interesses de Portugal com a entrada em
cena do SEAE, num contexto de profunda crise internacional? Que papel será
reservado às nossas embaixadas bilaterais num mundo em rápida transformação,
com a entrada em cena deste novo actor, tendo particularmente em conta que às
delegações da UE não compete defender os interesses particulares de um Estado-
membro, mas apenas os da União no seu todo?
Estes interesses serão desde logo defendidos através de uma participação
efectiva e adequada de Portugal no Serviço, que resulte num valor acrescentado
não só para esse novo corpo como para a acção externa portuguesa e para a sua
projecção a nível europeu e mundial. Para tal, deveremos apostar precisamente
nas áreas que correspondem às principais prioridades da nossa política externa,
nas quais gozamos de uma visibilidade e de um peso acrescidos.
Numa divisão de trabalho em que as delegações da UE se encarregarão da defesa
dos interesses comuns ' como os enquadramentos legais do comércio ' e a difusão
dos nossos valores, haverá espaço para concentrar o foco da actividade
diplomática na promoção das nossas prioridades políticas e económicas. Tal como
no passado, caberá também às nossas embaixadas a difusão da nossa cultura, o
aprofundamento da chamada diplomacia pública para dar a conhecer o nosso país,
bem como o persistente labor de informar os governos estrangeiros e os centros
de decisão sobre as posições portuguesas quanto às questões mais relevantes.
Sabemos, no entanto, que a economia portuguesa é cada vez mais dependente das
exportações. E, para além dos destinos tradicionais para os nossos produtos e
dos novos mercados que entretanto surgiram, contamos igualmente com
cumplicidades antigas em África, na América Latina e na Ásia, sem falar nos
portugueses e luso-descendentes espalhados pelo mundo. Todos pudemos ler que
foi graças ao aumento dos fluxos para Angola que, no ano passado, a crise no
sector das exportações foi atenuada e não convém esquecer que dispomos
igualmente de um relacionamento próximo e sólido com o Norte de África e o
mundo árabe.
Desde meados da década de 1980 que países de média dimensão, com altos padrões
de nível de vida e um elevado grau de dependência nas exportações, como a
Bélgica, os Países Baixos, a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, a Áustria, a Suíça
e o Canadá, para citar apenas alguns, integraram o comércio externo nos
ministérios dos Negócios Estrangeiros, eliminando assim uma duplicação de
estruturas e de custos, criando sinergias, colocando tanto as redes como as
máquinas diplomáticas daqueles países ao serviço das respectivas economias
nacionais.
Em tempos de persistente crise económica, em que a Europa se confronta com
problemas de competitividade, envelhecimento da população, altas taxas de
desemprego e óbvias dificuldades na manutenção dos seus regimes de segurança
social, parece óbvio optar por pôr cobro a uma duplicação de estruturas e de
custos, tirando totalmente partido da rede diplomática para apoiar e ter como
objectivo prioritário o apoio às exportações e às empresas no exterior, a busca
de novas oportunidades para os operadores nacionais.
5.
No segundo semestre de 2007 ' contrariando todos os vaticínios negativos ' a
presidência portuguesa logrou a complexa tarefa de síntese jurídica e política
que se traduziu no Tratado de Lisboa, negociando questões tão sensíveis como o
direito de voto, a extensão da maioria qualificada a novos domínios, a Carta
dos Direitos Fundamentais mais avançada do mundo, o alargamento dos poderes do
Parlamento Europeu. A agreste missão que nos coube, inscrita no mandato
negocial recebido em Julho desse ano, foi cumprida na sua totalidade.
Entrámos agora na fase de implementação de um novo tratado. Conhece-se o texto
e as suas potencialidades, haverá que estar atento a potenciais riscos,
sobretudo às práticas que possam pôr em causa os equilíbrios entre as diversas
instituições. Convém pois seguir de perto a interacção entre o presidente do
Conselho Europeu e o presidente da Comissão, a forma como a alta-representante
equaciona e desempenha a sua dupla tutela Conselho/Comissão, a margem deixada à
presidência rotativa para exercer as suas funções, tendo sempre presente que as
abordagens intergovernamentais penalizam países como o nosso e, como Delors
alertou, podem pôr em risco o próprio processo de integração.
Sabe-se desde já que o SEAE não estará a funcionar em pleno antes de 2014.
Haverá pois tempo para repensar e adequar a nossa rede diplomática a um
contexto político e institucional em rápida mutação, no qual a diplomacia
portuguesa deverá ocupar a primeira linha na defesa e no fomento da nossa
economia no exterior.
NOTAS
[1] «Seule la méthode communautaire renforcera l'Union». In Le temps. 16 de
Novembro de 2009.
[2] Pescatore, Pierre, «L'exécutif communautaire: justification du
quadripartisme institué par les Traités de Paris et de Rome». In Cahiers de
Droit Européen, 1978.
[3] O Directório é composto pela Alemanha, a França e o Reino Unido.
[4] Delors em entrevista à RTL a 4 de Fevereiro de 2010. Disponível no sítio da
rádio sob o título: «Le mini-traité permet á l'Europe de sortir de son coma
allégé»; ver igualmente Delors em entrevista ao EurActiv.com e publicada no
sítio a 2 de Dezembro de 2009 sob o título «I could be more critical of the
Lisbon Treaty».
[5] O texto legal (decisão) que institui o Serviço Europeu de Acção Externa só
deverá ser aprovado no final de Abril deste ano.
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