Da democracia na Ásia Central
Da democracia na Ásia Central
Licínia Simão
Doutorada em Relações Internacionais, Universidade de Coimbra. Foi professora e
investigadora na Academia da OSCE, Bisqueque, Quirguistão
Falar sobre democracia nos países da Ásia Central é uma desafio que parece, à
partida, perdido. As repúblicas emergentes do colapso da União Soviética são
conhecidas pelos seus regimes autoritários, repressivos e centralizados em
torno de presidentes, cujos mandatos são de factovitalícios. A região raramente
é notícia e as dinâmicas internas destes países parecem demasiado complexas e
distantes para serem uma prioridade na agenda internacional. Afinal, durante a
maior parte dos séculos XIX e XX, a região manteve-se sob controlo russo/
soviético; uma realidade que só gradualmente tem sido contestada quer por novos
actores externos, quer pelos líderes e populações locais. As repúblicas da Ásia
Central foram as únicas na União Soviética que votaram em referendo a favor da
continuação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Como alguns autores
defendem, a Ásia Central tornou-se independente contra a sua própria vontade.
Num contexto onde a penetração de ideais liberais democráticos tem sido, no
mínimo, muito limitada e sem uma experiência anterior de independência que
consolidasse projectos nacionais, as instituições políticas são frágeis e
desprovidas de mecanismos de controlo democrático. A súbita condição de
independência e integração no sistema internacional, que se seguiu ao fim da
Guerra Fria, implicou, entre outras coisas, a adesão destes países à
Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa/Organização para a
Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e uma partilha (formal) dos seus
valores e princípios. Mas que impacto teve este processo nas sociedades da Ásia
Central? Como encarar o desafio da promoção da democracia neste espaço
geográfico e cultural? Que futuro aguarda esta região? A resposta a estas
questões tornou-se mais difícil hoje do que quando cheguei a Bisqueque, em
Janeiro deste ano. A oportunidade de trabalhar durante um semestre no projecto
educacional promovido pela OSCE na Ásia Central foi um desafio irrecusável,
especialmente para quem, desde há alguns anos, tem procurado aprofundar o
conhecimento pessoal sobre a região.
A Academia da OSCE oferece todos os anos a oportunidade a 25 estudantes das
cinco repúblicas da Ásia Central (e este ano também do Afeganistão) de
completarem um programa intensivo de mestrado em Ciência Política. Ao mesmo
tempo oferece também a oportunidade a jovens investigadores de trabalharem na
academia, durante um semestre.
A escolha do Quirguistão para albergar o mestrado não foi acidental, já que
esta é a única das cinco repúblicas da Ásia Central que combina um regime
político moderado e condições de segurança mínimas. (A região é composta pelo
Cazaquistão, a norte, na fronteira com a Rússia e a maior e mais rica república
da região; o Usbequistão, no coração da Ásia Central; o Turcomenistão, no mar
Cáspio, rico em reservas energéticas e uma das mais autocráticas formas de
governo no mundo; o Tajiquistão, na fronteira com o Afeganistão, é um país
montanhoso e uma das mais pobres repúblicas da Ásia Central; e o Quirguistão,
igualmente pobre, sem recursos energéticos próprios, excepto água das montanhas
Pamir e considerado, até há pouco tempo, o único país da região cujo regime
político não era uma autocracia.) Contudo, o contexto político no Quirguistão
mudou profundamente durante o último ano e, na primeira semana de Abril de
2010, ganhou contornos de uma violência desconhecida na história do país.
O CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO DA REGIÃO
No período pós-independência, os desafios que se colocaram aos jovens estados
da Ásia Central incluíram a criação de economias de mercado e a consolidação de
instituições políticas legítimas. À semelhança do Cáucaso e dos Balcãs, as
repúblicas da Ásia Central são multiétnicas e multinacionais, mas, ao contrário
destas regiões, aqui, a construção do Estado-Nação é um fenómeno mais recente
e, de alguma forma, mais artificial. Isto significou que, paralelamente às
instituições nacionais formais, se desenvolveram instituições políticas não
formais, ligadas a filiações regionais e familiares que, apesar de menos
visíveis hoje, são contudo fundamentais para entender a rede complexa de
filiações políticas que atravessa a região. O resultado foi a
institucionalização de uma democracia formal, cuja liderança transitou das
estruturas centralizadas soviéticas directamente para as novas estruturas
nacionais. O colapso económico que se seguiu foi particularmente duro para
estas repúblicas, «presas» no coração da grande massa eurasiática, extremamente
dependentes de remessas financeiras externas, ao mesmo tempo que a criação de
novas fronteiras acabou por impor restrições comerciais e criar tensões étnicas
que subsistem até hoje.
Não é, por isso, surpreendente que a região tenha atingido níveis elevados de
pobreza e desemprego, que se acentuaram desde a independência. No entanto, a
região é extremamente heterogénea em termos geográficos, populacionais e da
distribuição de recursos naturais. Os países com reservas de gás e petróleo '
Cazaquistão, Turcomenistão e Usbequistão ' recuperaram um estatuto económico e
estratégico mais proeminente, com claras ambições de liderança regional (não
partilhadas pelo Turcomenistão que optou por uma política de isolamento).
Países como o Tajiquistão e o Quirguistão mantiveram níveis de pobreza elevados
que, no caso tajique, foram agravados pela guerra civil que devastou o país
entre 1992 e 1997. Surpreendentemente, não se registaram outros conflitos na
região, embora a sobreposição de tensões inter-étnicas, graves problemas
económicos e uma gestão deficiente de recursos como a terra e a água torne a
Ásia Central extremamente instável, com um elevado potencial de conflito intra-
estatal.
Um outro factor que contribui para esta instabilidade é a fragilidade das
instituições políticas da região. O carácter repressivo e autoritário dos
regimes da Ásia Central é mais ilustrativo do subdesenvolvimento político da
região e da fragilidade das instituições, do que de uma consolidação do poder
no topo da pirâmide hierárquica. Diversos factores explicam o actual contexto
político regional. Em primeiro lugar, a herança soviética promoveu a
continuação de um sistema político altamente centralizado, em torno do
presidente. A adopção de regimes superpresidencialistas é uma característica
comum em todo o espaço da Comunidade de Estados Independentes. Por outro lado,
a natureza da economia política herdada da União Soviética definiu a prioriquem
teria acesso a benefícios económicos e que grupos seriam excluídos. Esta
herança traduziu-se também numa sobreposição complexa de identidades políticas
reforçada pela criação de fronteiras artificiais, desenhadas para manter o
controlo de Moscovo sobre a capacidade de autonomização das diferentes
repúblicas dentro da União Soviética. Hoje existem diversos enclaves de
minorias étnicas em cada um destes estados.
Em segundo lugar, a definição de prioridades de segurança traduziu-se numa
política externa de equilíbrio entre os diferentes actores na região. Traduziu-
se também em difíceis relações regionais, marcadas principalmente por receios
de que a instabilidade no Tajiquistão e no Afeganistão se espalhasse por toda a
Ásia Central. Isto significou que os movimentos religiosos islâmicos passaram a
ser vistos como uma ameaça aos poderes políticos instituídos e, especialmente
no Usbequistão, fossem violentamente reprimidos. Por sua vez, tal manifestou-se
num contexto de decrescentes liberdades políticas, civis e religiosas,
justificadas por receios muitas vezes infundados, face aos movimentos
islâmicos. Simultaneamente, as revoltas populares na Geórgia, na Ucrânia e no
Quirguistão mostraram que a estabilidade dos regimes políticos estava também
dependente de actores internos, o que reforçou a tendência autoritária e
repressiva do poder político.
Somou-se a este contexto uma viragem radical nas prioridades da comunidade
internacional, depois dos ataques de 11 de Setembro que, apesar de ter
redireccionado a atenção internacional para a Ásia Central, não a tornou
necessariamente mais democrática nem mais estável.
POLÍTICA EXTERNA NA ÁSIA CENTRAL: AJUSTAR E ADAPTAR
O impulso das instituições ocidentais para criar democracias liberais no espaço
de influência da União Soviética, visível principalmente nos países bálticos e
na Europa de Leste, foi mais moderado nos países da Ásia Central e do Cáucaso
do Sul. Estes últimos viram-se a braços com uma série de conflitos
devastadores, que a Europa e os Estados Unidos preferiram deixar a cargo de
Moscovo. Na Ásia Central apenas a segurança nuclear captou a atenção do
Ocidente. O conflito tajique, embora devastador, era demasiado distante para
ser uma prioridade na agenda internacional, quando comparado com os problemas
graves nos Balcãs. Por isso, o processo de desnuclearização do Cazaquistão, a
posição estratégica deste «gigante» da Ásia Central, e as suas reservas
energéticas no mar Cáspio, facilitaram o processo de aproximação à Europa e ao
Ocidente em geral. A inclusão destas repúblicas na OSCE facilitou esse
processo, mas, em geral, os laços económicos, políticos e de segurança da
Europa e dos Estados Unidos com a região foram insignificantes até ao virar do
milénio.
Por outro lado, a Turquia, o Irão e a China procuraram reaproximar-se desta
região e, hoje, a sua presença comercial é significativa. A entrada de novos
actores no contexto regional abriu novas possibilidades para os líderes
regionais, em busca de legitimação interna e externa. Frequentemente, a
abertura de novos vectores de política externa é vista como uma ferramenta
crucial na manutenção de uma imagem interna estável, ao mesmo tempo que
facilita o controlo da influência de Moscovo, fomentando um processo de
competição estratégica. O interesse norte-americano na região, depois do 11 de
Setembro de 2001, encaixa nestas dinâmicas. Numa fase inicial, todos os estados
da região apoiaram os esforços norte-americanos na guerra global contra o
terrorismo.
Mesmo estados como o Turcomenistão e o Usbequistão, que tradicionalmente se
mantiveram mais isolados, permitiram voos norte-americanos sobre os seus
territórios. Os Estados Unidos estabeleceram em Manas, no Quirguistão, uma base
militar e reforçaram a presença na região, com base na cooperação na luta
contra o terrorismo. Este apoio serviu em grande medida os interesses norte-
americanos de manter uma presença militar na Ásia Central, crucial nos esforços
de guerra no Afeganistão e na manutenção de um equilíbrio estratégico com a
Federação Russa na região. Para os estados da Ásia Central, o resultado desta
cooperação tem outros contornos. Do ponto de vista das elites no poder, a
presença norte-americana significou legitimidade, dinheiro e a aparência de uma
agenda partilhada na guerra contra o terrorismo. Para as sociedades da região,
significou um poder mais repressivo, mais corrupção e nepotismo e um desencanto
profundo com o «Ocidente» e a «América». Para os elementos da sociedade civil,
jornalistas, activistas e políticos os interesses norte-americanos na região
não significaram maior apoio às suas actividades ou maior pressão sobre os seus
governos para tornar as suas sociedades mais democráticas. Desde as revoluções
«coloridas» que os governos autoritários aprenderam as suas lições. Isto
traduziu-se numa contínua degradação do contexto político e social em que estes
actores da sociedade trabalham. Por fim, a crise financeira global apenas
reforçou uma tendência de empobrecimento da Ásia Central que, juntamente com a
corrupção endémica, tornou a vida na região ainda mais difícil.
O QUIRGUISTÃO ENTRE REVOLUÇÕES E REVOLTAS POPULARES
Quando cheguei a Bisqueque, em Janeiro deste ano, este contexto social,
político e económico era-me familiar. Pelo menos em teoria. Depressa percebi,
contudo, que a imagem romantizada do Quirguistão, no Ocidente, estava longe de
corresponder à realidade. Efectivamente, entre a comunidade de estrangeiros que
vive em Bisqueque a percepção generalizada era a de que, a cada dia que
passava, o regime do Presidente Bakiev reforçava as suas tendências
autoritárias. As promessas da Revolução das Tulipas de 2005 eram abandonadas,
num contexto de crescente descontentamento. Afinal, o Presidente tinha sido
reeleito em 2009, e a oposição parecia demasiado frágil, descoordenada e
desmotivada para reclamar um sistema mais participativo. A população resignava-
se a um sistema que, à semelhança dos estados vizinhos, procurava assegurar
poder e riqueza pessoal em vez de cuidar dos interesses nacionais.
Ao longo do mês de Março e no início de Abril, uma série de eventos abriu
oficialmente a nova época política, depois de um longo e rigoroso Inverno. Com
a Primavera, os comícios e acções de rua multiplicaram-se, quer liderados pelo
Presidente, quer pela oposição. Embora se tivesse tornado claro que o apoio que
o Presidente esperava receber das estruturas políticas tradicionais, conhecidas
no Quirguistão por kurultais(conselhos regionais), tinha ficado aquém das suas
expectativas, o apoio que a oposição recebeu foi também marginal. Não era por
isso claro de que forma a contestação às políticas do Presidente poderia ser
mantida e aprofundada. A visita do secretário-geral das Nações Unidas a
Bisqueque, dias antes da revolta popular de 7 de Abril, foi talvez o momento
mais significativo nos últimos anos, em que um alto dirigente mundial falou
abertamente sobre a necessidade de pôr fim aos abusos de direitos humanos e de
investir nas estruturas democráticas da região, com vista à criação de uma
segurança duradoira.
Embora seja ainda hoje difícil explicar os motivos que levaram, inicialmente,
algumas centenas de manifestantes a tomar o Parlamento e depois o Palácio
Presidencial, em Bisqueque, no dia 7 de Abril, a resposta está provavelmente na
combinação de todos os factores que foram referidos anteriormente. Ao contrário
de 2005, quando um grupo de manifestantes coordenado pela oposição exigiu que o
então Presidente Askar Akaev se demitisse, reconhecendo que as eleições tinham
sido fraudulentas e o fracasso das suas políticas corruptas, em Abril, a
própria oposição pareceu ser apanhada de surpresa. Procurando ocupar um vazio
de poder deixado pela saída do Presidente, os líderes do agora governo interino
parecem ter reagido, mais do que planeado, à tomada do poder. Aquilo que em
2005 ficou conhecido como uma revolução, deveria mais correctamente ser
considerado um golpe de Estado, ao passo que o que aconteceu em 2010 foi uma
revolta popular.
Sobre os motivos desta revolta, muito se tem escrito ao longo das últimas
semanas e muito mais se escreverá sobre as lições a aprender com estes
acontecimentos. Para muitos, foi imprescindível ver a mão de Moscovo por detrás
destes acontecimentos e um fracasso norte-americano, na competição por
influência na Ásia Central. Afinal, o «grande jogo» parecia estar de regresso!
Contudo, nada na Ásia Central é permanente, e aquilo que hoje é uma certeza
absoluta no dia seguinte é uma verdade contestada. Os Estados Unidos
continuarão no Quirguistão e Moscovo continuará a tentar manter a sua
influência como tem feito até aqui. Outros analistas procuraram defender que a
principal lição a retirar destes acontecimentos é o fracasso das políticas
norte-americanas de promoção de direitos humanos e democracia, comprometidas
pelos seus interesses estratégicos no Afeganistão. Esta poderá ser uma lição
importante, não só para a região, como para as relações do Ocidente com países
como o Azerbaijão, mas será difícil imaginar que as prioridades estratégicas
serão subjugadas à promoção de democracia. A própria União Europeia, com todas
as suas ambições normativas, tem mantido um equilíbrio ténue entre os seus
valores e os seus interesses na Ásia Central, por vezes falhando em ambas as
dimensões.
Por isso, depois de oitenta e cinco vítimas mortais e centenas de feridos,
depois de um período que será de grande instabilidade institucional, financeira
e social, depois do estabelecimento de um novo governo legítimo e um novo
contrato social, espera-se que o país regresse à normalidade.
Da minha parte, regresso a Portugal dentro de pouco tempo, com algum alívio,
mas também tristeza. O futuro do Quirguistão e da Ásia Central não deverá ser
muito diferente do seu passado recente. Afinal, é preciso que tudo mude, para
que tudo permaneça igual.
29 DE ABRIL DE 2010
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt