Para uma compreensão da Clausura Monástica e Emparedamento enquanto fenómenos
históricos e religiosos
Retirar os vivos da luz – significado religioso e ritual
Uma das faces provavelmente mais impressivas do monacato feminino é o da
reclusão e emparedamento. Nas últimas décadas, a espiritualidade feminina e
suas manifestações, entre as quais a da reclusão, tem sido muito estudada e
debatida em publicações, congressos e grupos de trabalho, o que permitiu expor
a amplitude do fenómeno, em particular desde a Idade Média até à Época
Moderna1. Neste artigo, não pretendemos percorrer as ocorrências particulares
dos fenómenos, mas sim apontar algumas hipóteses quanto à feminização de um
aspecto da linguagem religiosa que, na sua origem, mesmo cristã, era extensivo
aos dois géneros. Neste sentido, iremos concentrar-nos nos textos, autores e
factos da Antiguidade Tardia Cristã e da Alta Idade Média, aqueles que nos
parecem constituir testemunhos que explicam a feminização da reclusão
monástica.
O emparedamento de humanos vivos pertence à linguagem religiosa de várias
civilizações, desde tempos ancestrais, não sendo exclusivo da religiosidade do
espaço mediterrânico. Limitemo-nos a este, contudo, para observar a
continuidade de uma prática ritualística coerente com a mundividência
cosmológica das civilizações: emparedar, ou ocultar sob o solo um indivíduo,
voluntário ou não, apresenta como efeito primário retirá-lo do contacto do sol
(luz e calor), do ar e dos outros humanos. Constitui uma forma de consecratio,
ou seja, de uma dádiva às divindades subterrâneas que exercem a sua soberania
sobre os mortos. Do ponto de vista das ciências das religiões, o emparedamento,
tal como a inumação, ocorre dentro da interpretação da morte e do lugar do
corpo neste contexto, e, consequentemente, dentro de uma linguagem religiosa
que, pelo ritual, mimetiza, interpreta ou interfere com um sistema consolidado
de crenças acerca da vida e da morte.
O sepultamento ou o emparedamento de indivíduos vivos, advindo como
consequência a morte imediata ou prolongando-se a vida dos mesmos com o
fornecimento externo de ar e de víveres, está documentado nas práticas sociais
e religiosas históricas como forma de punição ou de execução; como parte
integrante de um ritual funerário solene; como forma de sacrifício
propiciatório. Seja qual for o propósito do mesmo, a hermenêutica do ato
parece-nos clara: o emparedado é um ser intermédio entre a vida e a morte, para
o qual o tempo e o espaço são suspensos. Vivo, privado dos estímulos
sensitivos, dos movimentos, isolado dos seus pares humanos, mimetiza as
circunstâncias físicas do corpo na morte.
É por isso um ser privilegiado para o contacto, enquanto mediador, entre o
transcendente e o mundo dos vivos. O emparedado é também alguém que retorna
simbolicamente ao estado intrauterino, regredindo no tempo e no espaço por
intervenção humana. Na língua portuguesa, “dar à luz” é a expressão mais nobre
para designar o ato de parir, ou de trazer à vida. É este um bom contraponto
para a expressão “retirar da luz” como motivação essencial da clausura, um ato
que contraria a passagem normal do tempo para os organismos vivos. Impor a
regressão do tempo para um estado embrionário a uma vida que se transforma e
renasce, ou antecipar as circunstâncias de uma extinção definitiva com a morte,
revelam-se, enquanto significados eficazes, mas contraditórios, para a
expressão social e ritualística do emparedamento e clausura2.
O propósito punitivo do enterramento em vida e do emparedamento é, porventura,
o mais conhecido entre as fontes do mundo antigo grego e romano: em Roma, as
virgens vestais que quebravam o voto de castidade eram enterradas vivas (Tito
Lívio AVC 1, 3, acerca do castigo da vestal Rea Sílvia; Plínio o Moço, Ep. IV,
11, 6 ss, comenta a punição da vestal Cornélia). Livila, envolvida na
conspiração de Sejano contra Tibério, é encerrada por Antónia, sua mãe, e
deixada morrer à fome (Dio. 58, 11 6-7)3. Na Guerra do Peloponeso, Tucídides
atesta o enterro dos vencidos como modo de execução numa Guerra (Thc. 3, 81). A
Antígona, tragédia de Sófocles questiona o tema do enterramento dos mortos
(indiscutível para o bom irmão, Etéocles, questionável para o mau irmão,
Polinices), mas também dos vivos: Antígona, transgride as ordens do soberano de
Tebas, Creonte, e é condenada à morte por encerramento numa caverna. A
construção literária subjacente ao episódio que descreve a caminhada de
Antígona até à caverna indicia que este ritual integrou uma linguagem religiosa
sacrificial prévia à ordem política, a que se soma o caráter punitivo legítimo
na ordem política (Soph., Antigone, vv. 774-929; 1065-1090). Assim, Antígona
devia ser retirada do mundo dos vivos, acompanhando o irmão criminoso a quem
dera sepultura.
Encontramos também referências ao sepultamento de vivos com o sentido de
sacrifício propiciatório. Tito Lívio conta que, no momento de crise após o
desastre de Canas e eminente risco de Roma cair nas mãos de Aníbal, quatro
homens foram enterrados vivos no Forum Boarium (Liv., 22, 55-57). O folclore
dos Balcãs apresenta descrições de um tipo particular de sacrifício humano pelo
emparedamento para reforçar construções importantes como pontes ou muralhas, em
que a solidez destas é favorecida pelo encerramento, na sua estrutura, de uma
vítima humana4.
Nas origens da clausura feminina no cristianismo – a mulher no lar do mundo
grego e romano?
Como veremos, nas origens da reclusão ascética cristã, é difícil vislumbrar o
caráter feminino do fenómeno. Pelo contrário, o apelo ao isolamento, fazendo
parte de uma disciplina monástica [à letra, uma disciplina para ser vivida
solitariamente] faz-se sem exclusão de géneros. No entanto, após o fim do mundo
antigo, ao longo de toda a Idade Média e até à Época Moderna verifica-se que as
manifestações desta forma de dedicação são sobretudo femininas. As razões para
esta feminização não estão totalmente esclarecidas, pelo que nos permitimos
apontar algumas linhas de interpretação.
A feminização do fenómeno pode resultar da transferência para a linguagem
religiosa de hábitos, costumes e modos de vida que lhe são extrínsecos e mesmo
anteriores ao acontecimento histórico da cristianização. Considere-se, por
exemplo, o estatuto das mulheres e os fatores de excelência feminina no mundo
clássico, aquele que virá a acolher o cristianismo. Da mulher do mundo grego e
romano espera-se que se remeta ao espaço doméstico. Aí se dedica às ocupações
do lar, à fiação, à educação dos filhos na primeira infância, na companhia dos
membros femininos da família. Este padrão era mais vincado na civilização grega
do que na romana, e, sociologicamente mais rigoroso entre as mulheres membros
da aristocracia do que entre as pertencentes aos grupos populares, que gozavam
de maior liberdade, também porque não era possível do ponto de vista prático
dispensar a força de trabalho das mulheres.
A progressiva cristianização na Antiguidade Tardia trouxe consigo um influxo
orientalizante sobre os costumes, uma nova e última fase em que a cultura e os
costumes helénicos, mais cedo sujeitos ao cristianismo, tiveram eco em Roma.
Assim, apesar de a história de Roma conter vários paradigmas femininos de
intervenção no espaço público5, e apesar de a mulher romana ter gozado de uma
maior liberdade e de um maior protagonismo do que a sua congénere grega, a
sociedade da Antiguidade Tardia, em particular as elites helenizadas e
progressivamente cristianizadas, (recorde-se o último verso do Epitáfio de
Cláudia, da família dos Cipiões, séc. II a.C. “domum seruauit. Lanam fecit.
Dixi. Abei” (CIL 1.2.1211) encontraram argumentos para reforçar a casa, o
espaço interior doméstico como lugar de excelência para a mulher cristã. Estas
famílias aristocráticas, que já adoptavam modelos de excelência femininos
ligados às actividades no interior do lar, transitaram sem grande conflito para
a cristianização das suas mulheres através do confinamento ao espaço doméstico.
Este confinamento era a condição primeira destas mulheres em casa, associada a
outras que compunham o ideal do cristianismo no feminino como a castidade,
silêncio e a modéstia6.
Há, evidentemente, uma grande diferença entre o emparedamento stricto sensu e a
exortação, dirigida à aristocracia feminina das cidades romanas a que se
recolhessem às suas casas, aí praticando um programa ascético já divulgado para
os homens (jejuns, oração, vigílias, castidade, desconforto material, abdicação
da propriedade). Para estes, contudo, uma diferença: que se desinstalem, que
adoptem a xenitheia, isto é, que saiam das suas casas, das suas propriedades,
das suas cidades. Para a mulheres, que pratiquem o ascetismo, mas no seu espaço
doméstico. Como observamos em S. Jerónimo, o caso das cristãs que convertiam as
suas casas em mosteiros, a mensagem da quietude e da permanência no espaço
doméstico surge reforçada como parte integrante de um programa ascético
específico “que os segredos da tua cela te guardem”, diz S. Jerónimo a
Eustóquio (Hier. Ep 22, 25. Também 22, 16). Asella, segundo Jerónimo (Hier. 24,
3), foi consagrada aos dez anos pelos pais e fechada numa pequena cela
“encerrada nas estreitezas de uma cela, fruía das larguezas do paraíso”7. Nunca
se apresentou em público, nem se deixava contemplar, mesmo por virgens
consagradas como ela (Hier., Ep. 24, 4).
Cruzam-se com esta realidade outros fatores, não exclusivamente religiosos, mas
que implicam a transformação do estatuto jurídico da mulher operado pelo
cristianismo. Historicamente sob a tutela jurídica dos membros masculinos da
família (pai, marido, ou filho)8, a continência e o celibato apresentados como
ideais para o cristão abalaram a conceção tradicional do casamento e da geração
de filhos como instâncias de validação da virtude feminina. O problema também
afectava os homens, na medida em que estes passaram a desvalorizar o casamento
e a descendência legítima que continuasse a propriedade. Para os homens, o
desligamento deste “dever familiar” não o inibia na sua emancipação, embora
deva ser referido que a decisão de tornar-se monge e renunciar a tudo está
muitas vezes associada à morte dos pais (Antão, Bento, Frutuoso). Subitamente,
o mundo antigo foi confrontado com um número elevado de celibatários, virgens
que os pais votavam à Igreja, viúvas que não contrairiam segundas núpcias,
casais que deliberadamente optam pela continência e se separam, vivendo, em
espaços distintos, vidas ascéticas. Rompida, por morte dos ascendentes e pela
inexistência de descendentes, a cadeia de dependência familiar entre as
gerações, como lidar com o fenómeno socialmente relevante de mulheres livres de
tutela jurídica, ou de mulheres dependentes cujos pais, cristãos rigorosos,
desacreditam do modelo tradicional que os faria casá-las e dotá-las9?
Pensamos que clausura doméstica feminina e a entrada de rapazes menores nos
mosteiros (a tuitio) da Antiguidade Tardia, ou, por outras palavras, o sucesso
do cenobitismo no mundo latino pode ser também efeito das alterações das
mentalidades que produziram comunidades com “excesso” de celibatários.
O recolhimento intra muros, e ao consequente desenvolvimento de mosteiros
femininos urbanos, casas particulares que a proprietária converterá em
asceteria, constituíam uma solução para estas mulheres devotas. A Igreja veria
nestas comunidades a sua reserva de santidade e de oração e também uma
considerável fonte de recursos, já que mantendo os atributos femininos
tradicionais quanto à natureza das ocupações de que estavam incumbidas, estas
mulheres sem descendência direta e sem deveres para com os pais fiavam e
cuidavam dos artefactos litúrgicos. E, o que é mais importante, doavam os seus
bens às causas da Igreja: edificação de santuários, de mosteiros, assistência
às paróquias, aos cristãos carenciados.
Ainda no século VI, o hispano-romano Leandro de Sevilha documenta esta prática
popular de reclusão doméstica urbana, destinada às cristãs de alto estatuto,
assim como a mais desejável, segundo ele, evolução deste paradigma ascético
para modalidades mais institucionais. Leandro recomenda à sua irmã Florentina
que “não imite as virgens que moram em pequenas divisões nas cidades”10. É que
estas donzelas vivem oprimidas pela necessidade de agradar ao século e com as
ocupações da vida privada. Por isso, o espaço doméstico, privado, deve ser
substituído, mesmo para estas mulheres, pelo mosteiro, espaço comunitário. O
testemunho de Leandro é fundamental para entender esta aceitabilidade da
reclusão doméstica feminina motivada pela religião, uma vez que ela se escudava
nos hábitos da sociedade romana tradicional.
Este perfil irá ter continuidade na aristocracia feminina da Idade Média.
Radegunda, esposa do rei franco Clotário, depois de várias peripécias, funda em
Poitiers uma comunidade monástica orientada segundo a Regra de S. Cesário de
Arles (Fort., Rad.). Neste mosteiro, segundo Gregório de Tours, a virgem
Discíola, neta de S. Sálvio, depois de uma visão em que lhe é dito que “o seu
esposo a cumulará de graças”, pede à abadessa Radegunda a permissão para ser
encerrada numa cela, ato que ocorre com solenidade (HF 6, 29)11. Parece-nos
esta história bem elucidativa da associação entre clausura monástica feminina e
a perceção tradicional das virtudes da mulher casada, cuja principal
caraterística era a restrição ao espaço doméstico. Aqui, Cristo é o esposo, e
aguarda Discíola no lar perfeito.
Nas origens da clausura cristã – o movimento monástico
Ainda que o ascetismo, como modo de vida consagrado a um propósito religioso,
tivesse acompanhado o cristianismo desde a Igreja primitiva, ganhou
popularidade e organização institucional na parte oriental do Império romano a
partir dos inícios do século IV. Entre as muitas razões para o desenvolvimento
do fenómeno monástico sobejamente reconhecidas, podemos apontar uma fundamental
para o aumento, neste período, das vocações monásticas12: a tolerância e
progressiva integração, do cristianismo na ordem pública, que foram até à sua
exclusividade como religião permitida, são o fundo histórico para o
entusiástico interesse de cristãos leigos por uma leitura rigorosa, literal e
mais exigente de viver o cristianismo, num movimento de resistência contra uma
versão confortável e legal, mas porventura sentida como superficial após a
revolução constantiniana.
Não nos debruçaremos sobre as origens históricas, características e
manifestações da forma particular de ascetismo que se desenvolveu com o
monaquismo cristão. Concentremo-nos no tópico da solidão, do isolamento e da
separação como características intrínsecas da vocação monástica. A essência do
monge é a solidão: etimologicamente, o termo “monge”, do grego monachos,
inicialmente um adjetivo, que se vai substantivando para designar hoi
monobiontes; ou hoi monazontes, ou seja, “os que vivem sós”. Eremita é o que
vive “en eremos”, ou seja, no deserto (lugar em que não há comunidades humanas,
por oposição às cidades). Anacoreta é o que pratica a anachoresis, ou seja,
“retirada, afastamento”. Considerando que as manifestações históricas do
monaquismo fizeram a sua primeira aparição no Egipto, na Síria e na Palestina,
é uma consequência lógica que a solidão desejada se concretize pela escolha do
deserto em oposição à cidade, já que nestas paragens, ao contrário do Ocidente,
a natureza dita uma fronteira mais objetiva entre o espaço humanizado, e por
isso adequado à vida humana, e o espaço selvagem, com condições naturais hostis
à presença humana.
O versículo de Mt. 19, 21 “Jesus respondeu: «Se queres ser perfeito, vai, vende
o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e
segue-me.» é frequentemente evocado na literatura monástica como a
fundamentação evangélica para a vida monástica cristã13. O jovem rico que quer
alcançar a vida eterna, depois de declarar a Jesus de que já cumpre as leis de
Moisés, recebe instruções de Jesus para ir mais além: que renuncie à família, à
posse e fruição dos bens e que o siga. Portanto, ascender a um grau mais
perfeito do ser-se cristão implica a renúncia a importantes referências como
uma comunidade humana de pertença, um lar, propriedade e, por fim, a aceitação
da mobilidade. Na base da vocação monástica está a desinstalação do indivíduo
em direção a uma outra realidade, e a sua transformação enquanto ser afetivo,
social, político e económico.
Do ponto de vista histórico e literário, este isolamento essencial, associado à
condição monástica, constitui a justificação primeira para as manifestações de
clausura ou de emparedamento, que acompanham outras formas extremas de
incorporar a solidão monástica. Trata-se de uma demonstração física e exterior
de uma condição espiritual de isolamento e de fechamento, estabelecendo-se as
fronteiras precisas (as mesmas que separam o espaço profano do espaço sagrado)
entre o indivíduo e o mundo envolvente. Antão, o Patriarca dos monges,
despertou para a sua vocação depois de ouvir, na Igreja, a leitura de Mt. 19,
21 e parte para o deserto, escolhendo lugares cada vez mais distantes e
inóspitos. Encerra-se no interior subterrâneo de um túmulo (VA, 8-10) lugar em
que combate com os demónios. Isolado nas montanhas interiores (VA 84, 2), os
seculares que o procuram têm dificuldade em chegar até ele, e o próprio rejeita
deslocar-se quando é solicitado. A Historia Monachorum in Aegypto(HM), relato
da viagem de sete monges palestinianos ao Egipto empreendida entre 394-395
(Prol. 10), ao comentar a disseminação da vida monástica por todo o Egipto,
fala, entre muitas personagens que aborda, de alguns en tois spelaiois ton
eremon “nas cavernas dos desertos”. João de Licópolis, por exemplo (HM, 1, 4),
permaneceu quarenta anos na sua gruta. Com noventa anos, nunca se havia
permitido ver ninguém. Dotado do dom da profecia, abençoava, saudava e
aconselhava os homens (apenas do sexo masculino) que se acercavam através de
uma abertura, que só deixava passar a voz. Téon (HM 6, 1) permaneceu trinta
anos numa “casita” (oikiskos). Elias (HM 7, 2-3) passou setenta anos no temível
deserto de Antínoe. Os que o visitavam, viam-no sentado numa rocha dentro de
uma gruta. Também Apolo (HM 8,5); Hele (HM 12, 4; 12, 12); Macário (HM 21, 15).
Paradoxalmente, registam-se também “comunidades de solitários”: monges não
discriminados, guiados por Pitirion, discípulo de Antão (HM 15, 1) Os monges do
deserto da Nítria, seguindo um modelo de vida semi-anacorética, permaneciam na
sua celulla, isolada e distante umas das outras a ponto de impedirem o contacto
visual e auditivo entre os monges (HM 20, 7).
Esta forma mais sistemática do monaquismo, nascida e fixada a Oriente,
estendeu-se às mulheres. Assim, o apelo ascético sob a forma de isolamento e de
reclusão voluntária encontrou também o seu caminho feminino. Tal como os “Pais
do deserto”, as chamadas “Mães do Deserto” oscilavam, entre uma vida de ascese
comunitária e modelos eremíticos de reclusão14. No caso do monaquismo e da
reclusão femininas, contudo, desenha-se uma tendência que lhe é particular: a
reclusão ascética surge como penitência para uma vida dissoluta e, numa
hipótese que nos parece possível de fundamentar mas não nos prende agora, uma
forma de controlo sobre uma sexualidade percebida como incontrolável.
Santa Maria Egipcíaca (344-421), personagem asceta entre a realidade e a lenda
(pode Maria Egipcíaca corresponder a uma formulação paradigmática do modelo
feminino de um modo de vida emergente), teve a sua biografia contada por
Sofrónio de Jerusalém, apenas nos inícios do século VI. Ela dá corpo a duas
caraterísticas caras à reclusão ascética: a sua adoção pelo género feminino e o
seu significado penitencial. Nascida no Egipto, atingiu a idade adulta em
Alexandria, onde era cortesã. Deslocara-se a Jerusalém para acompanhar os
peregrinos que aí celebravam a Semana Santa, converteu-se e, em sinal de
arrependimento e de penitência da sua vida passada, desapareceu no deserto para
além do Jordão. S. Zózimo da Palestina viria a encontrá-la, já anciã, no
deserto, com os traços físicos tão alterados que não a reconheceu como mulher.
Nenhum testemunho literário fala de Maria Egipcíaca como tendo estado reclusa
num espaço fechado, embora a tradição iconográfica a represente a emergir de
uma gruta15. Taís de Alexandria, cortesã bela e rica de Alexandria, apresenta-
se como cristã ao surpreendido abade Panúfio, que lhe reprova ter conduzido
tantos homens à perdição. Ele manda encerrá-la numa cela de um convento, selada
por uma porta chumbada, com uma fenestrella, uma minúscula abertura, para lhe
ser dado o magro alimento. Quebrada a reclusão, juntou-se à comunidade das
irmãs, morrendo após quinze dias16.
Entre os ditos dos Padres do Deserto, dispersos em várias coleções de
Apophtegmata, duas das três mulheres que aí veem coligidos os seus ditos
praticaram a reclusão: Sinclética de Alexandria, aristocrática de origem,
desfez-se dos bens e devotou-se a viver numa cripta, até à sua morte em 350.
Sara do Deserto, tentada pelo demónio da fornicação, viveu sessenta anos
fechada numa cela nas imediações do Nilo, rio que ela nunca contemplou. A
Historia Lausiaca (HL) de Paládio (420), fala de quase três mil mulheres a
viverem enquanto “Mães do deserto”. O exemplo de Alexandra (HL 5) é tão
paradigmático como o de Maria Egipcíaca. Temendo ter a sua virgindade
corrompida por uma violência masculina, encerrou-se num túmulo durante dez
anos, contando com a caridade do exterior para o seu sustento. Num outro passo
se diz, acerca de “uma virgem que caiu”: tendo permanecido seis anos fechada
numa pequena cela, em Jerusalém, abandonou a sua condição de asceta no dia em
que, abrindo uma janela, aceitou um homem, e com ele pecou (HL 28). Já Taor (HL
49) vivia numa comunidade de donzelas, e nunca abandonou o espaço interior da
casa. Uma virgem sem nome e de rosto invisível, pois nunca se deixava ver,
passados sessenta anos de reclusão, à hora da morte acedeu partilhar a refeição
com a comunidade e ser vista, morrendo em santidade (HL 60)17.
A motivação para esta retirada deliberada da comunidade é fundamentalmente a
mesma: a cura para uma vida de dissolução erótica e moral, ou a prevenção
contra um agir sexuado. Retiravam-se da comunidade para não serem objeto de
tentação, para fugirem a casamentos não desejados, ou mesmo por recusarem para
si o papel tradicional de esposas e mães, almejando a disponibilidade
espiritual e a liberdade de traçar o destino a dar aos seus corpos. Estas
biografias piedosas das “mães do deserto” na feliz expressão de Margot King na
sua obra House of Hermits, alusiva ao paradigma oriental, devolvem-nos os
corpos de mulheres que, mirradas pela reclusão de anos, deixaram de ser
reconhecíveis como mulheres; algumas que se disfarçaram de homens para melhor
se enquadrarem, enquanto criaturas assexuadas, entre grupos de ascetas; outras
que abandonaram maridos brutais. Esta literatura constituiu um património
romanesco, necessariamente padronizado de acordo com o modelo literário do
maravilhoso, à qual não se deve liminarmente retirar o valor enquanto documento
de acesso a uma realidade objetiva. Sendo a reclusão e o emparedamento
femininos manifestações de piedade extremas e seguramente raras, tratou-se de
um fenómeno recorrente desde o cristianismo antigo até à Época moderna em
várias nações europeias. O tratamento literário dado a estes fenómenos deve ser
considerado um indício para valorizar estes relatos maravilhosos como primeiras
evidências da prática da reclusão monástica pelas mulheres, não só como
extensão de uma corrente ascética masculina, mas já com motivações identitárias
exclusivas ao sexo feminino: sublimação da virtude feminina no enclausuramento
urbano; conversão e penitência após uma vida dissoluta; renúncia ao papel
tradicional de esposa e mãe; recusa ou prevenção da sexualidade. Assim, este
modo de busca de santidade, tão bem documentado para a história medieval da
Europa, contém enunciadas as motivações que presidiam à prática já nos
primeiros textos literários do monaquismo.
O Ocidente latino aderiu a este modelo de vida, transformando este motivo, nos
modelos literários mais conhecidos, numa etapa de preparação obrigatória para a
perfeição ascética. Mas nem só a hagiografia atesta o fenómeno do ascetismo por
enclausuramento. Encontramos um testemunho isento e objetivo quanto à dimensão
do fenómeno nas palavras do poeta pagão Rutílio Namaciano que, em viagem para a
Gália, testemunha na ilha Caprária miríades de lucifugi, figuras vestidas de
negro “que fogem da luz” (Rutil., De Reditu, vv. 440-446). Para o Poeta, estas
bizarras criaturas infligem a si próprias os castigos (ergastula) pelos seus
crimes. Esta observação é valiosa para entender a funcionalidade da reclusão na
Antiguidade Cristã: o seu carácter voluntário e a sua similitude, aos olhos de
um pagão, com um modo de execução capital, presente na justiça romana.
S. Martinho, no século V (Sulp. Sev., VM, 6,4- 6, 6), isola-se num eremitério
em Milão, de onde, expulso pelo tirano Auxêncio, partiu para a ilha Gallinara.
Aclamado Bispo, instala-se numa cela contígua à Igreja do seu episcopado (VM 9,
3). Alguns da sua comunidade de oitenta monges viviam em covas (receptacula)
escavadas na encosta do monte (Sulp. Sev., VM 9, 7). Também S. Bento (século
VI), na sua progressão ascética, experimentou e concretizou o desejo de se
isolar dos que o seguiam, inspirados pela sua santidade. Em Subíaco, encerra-se
numa exígua gruta durante três anos, assistido apenas por um “monge romano”,
que lhe fornece a ração de pão. Alguns pastores entraram na gruta para se
defenderem da intempérie e descobrindo um vulto coberto de peles, confundem-no
com um animal feroz (Dial. 1,4; 1, 8). Gregório de Tours (HF, 7, 1) descreve a
piedosa vida de S. Sálvio, que depois de ter recolhido a um mosteiro procura a
solidão de uma cela secreta num lugar remoto. Aí, consumido por febre, morre, e
retorna milagrosamente à vida, à vista de todos os que o velavam. Permanece
ainda muito tempo na sua cela para ser forçado a assumir um episcopado18.
Frutuoso de Braga (VF 2), jovem ainda (século VII), procurou isolar-se num
habitaticulum nas imediações de uma Igreja, no que foi contrariado por
elementos da ordem secular. Mesmo assim, o inquieto asceta (VF 4) isola-se em
lugares selvagens, inóspitos, em grutas e covas rochosas.
Portanto, a adaptação do ascetismo por clausura ao Ocidente passou por uma
diversificação de soluções para realizar o encerramento ao exterior: grutas,
ilhas, cabanas, celas, covas. A reclusão e o emparedamento através dessas
soluções manifestam-se, no Ocidente, como uma consequência óbvia da mesma busca
pelo isolamento fora das comunidades. No Egipto e no Oriente, esta fuga
solitária das cidades atingia com facilidade os lugares do deserto, sendo este,
ele próprio, um espaço hostil, de provação material, e suficientemente distinto
da paisagem humanizada. Mas nas províncias a norte do Mediterrâneo não existe
uma paisagem tão uniformemente hostil à vida humana: florestas, montanhas,
microclimas, ocupação rural, meio natural menos hostil quando comparado com os
desertos do Egipto e do Próximo-Oriente são factores tornam difícil o
estabelecimento claro de uma fronteira entre os espaços humanizados e os
espaços do deserto. Os desertos concretos são assim substituídos por desertos
metafóricos: as grutas, as covas, as cabanas isoladas, as ilhas permitem
recriar a imagem do espaço confinado19.
Uma outra tendência emerge a Ocidente, visível em Martinho, Bento e Frutuoso: a
reclusão enquanto etapa, e não um objetivo em si. Assim, a reclusão desejada
intimamente cede diante da pressão das comunidades para que o santo carismático
assuma funções de líder de comunidades ou pastorais.
A expressão feminina da clausura no Ocidente latino alto medieval, como pudemos
já ilustrar, ocorre também de acordo com motivações específicas do género
feminino, ou como uma resposta a dar a um problema causado pelas mulheres.
Falámos antes, a propósito da cristianização das elites romanas, da
transformação e desestruturação dos laços familiares tradicionais que teriam
criado uma “multidão” de celibatários desenquadrados de um lugar. Se
observarmos os casos dos fundadores monásticos, como Cesário de Arles, Bento de
Núrsia, Leandro de Sevilha, e mais tarde, S. Francisco de Assis, todos se
empenharam na fundação de mosteiros femininos destinados a acolher as suas
irmãs, respetivamente Cesária, Escolástica, Florentina e Clara. Já Antão
desfez-se dos bens herdados após a morte dos pais, reservando um pouco apenas
para a sua irmã. Frutuoso dispôs da herança dos pais e o marido da sua irmã, um
aristocrata godo, irritou-se com ele por se considerar lesado no património.
Melhor será, portanto, que a vocação monástica dispense e resolva o problema
dos familiares dependentes, não sendo o casamento destes a melhor opção! Estão
estes casos irmanados pelo destino a conceder às mulheres, para as quais não é
aceitável a assunção do papel tradicional de esposa e mãe. Portanto,
celibatárias permaneçam estas mulheres, familiares próximas dos ascetas. Mas o
celibato feminino, ainda que motivado pela piedade religiosa, não resolvia o
problema prático da convivência deste feminino, disponível e tentador, nas
comunidades cristãs, desde muito cedo sentido na Igreja, como se pode verificar
pela polémica das agapetae, ou das uirgines subintroductae, alvo de decisões
canónicas e da lei secular20.
Desta forma, a antecipação do Ocidente, em relação ao Oriente, na organização e
institucionalização do ascetismo feminino pode resultar de uma tentativa de
resposta ao problema das cristãs celibatárias. Assim, as organizações
monásticas femininas não criaram uma solução, uma vez que o perfil da mulher no
espaço doméstico já existia e os cristãos já o tinham valorizado, mas deram-lhe
um enquadramento canónico e eclesiástico. Os Concílios gauleses de Nîmes (394),
Orange (441) e Agde (506)21 reforçaram a disciplina de as monjas viverem
encerradas, mas em comunidade para toda a vida, em fundações afastadas das
casas masculinas para evitar a tentação e a má língua. Suficientemente longe
para não constituírem perigo, suficientemente perto porque as mulheres se
querem vigiadas pela tutela masculina. A Regra de S. Cesário de Arles (513) a
primeira regra feminina stricto sensu no Ocidente, escrita por alguém
fortemente envolvido no Concílio de Agde, proíbe que asmulheres elejam para si
um espaço isolado (RCV 7). A maior preocupação parece ser a disciplinar: em
primeiro lugar, a formulação pela negativa nesta linguagem jurídica sugere que
havia ocorrências, e mesmo apetência para a reclusão solitária entre as
mulheres. Proíbe-se e regula-se aquilo que acontece, e não perigos ou riscos
hipotéticos e longínquos. Em segundo lugar, reprimir esta expressão em favor da
vocação comunitária e uniforme sob um forte controlo episcopal deve
interpretar-se como uma determinação para evitar casos ambíguos, ou de
exposição das mulheres aos riscos físicos e morais decorrentes da solidão
extrema.
Sinal de que a clausura se apresentava sedutora para as mulheres, mas envolvida
em desconfiança e riscos mais contextuais do que teológicos, é-nos revelado
pelo episódio de clausura de uma virgem no mosteiro de que Radegunda era
abadessa, sob a regra de Cesário de Arles, numa solução que é de compromisso: a
clausura é posta em prática dentro do território cercado do mosteiro. Este
esforço para alcançar um compromisso será continuado mais tarde, com a aparição
de normativas específicas para os reclusos, no século IX, com a Regula
Solitariorum de Grimlaico e, no século XII, com o De Institutione Inclusarum de
Elredo de Rielvaux22.
A reclusão começa a surgir em fórmulas mais estáveis, enquadrada numa
espiritualidade própria. No período das reformas monásticas da Igreja pós
gregoriana, em que os homens arriscaram o rigor cisterciense e, mais tarde, a
inquietude das ordens mendicantes, que espaço para as mulheres dentro destes
modelos ascéticos? Não deixa de ser curioso que a institucionalização, dentro
das cidades, de lugares solitários de clausura e de emparedamento sejam
manifestações femininas mais populares após a reforma da Igreja em contexto
pós-gregoriano, fenómeno que acompanha o florescimento das cidades, do
comércio, da vida urbana.
Reclusão e Emparedamento na Hispânia Medieval
A reclusão no espaço alto medieval hispânico aparece-nos fortemente marcado
pelo contexto penitencial. O papa Sirício indica a Himério, metropolita de
Saragoça, em 385, a pena de reclusão, a aplicar aos que quebram o voto de
castidade23. O I Concílio de Saragoça (380) contém um tom geral de suspeição e
de reserva em relação ao ascetismo crescente. É, por isso, interessante referir
o c. 2 do mesmo, em que, vincando a obrigatoriedade de não jejuar ao domingo e
de respeitar a reunião dominical, se precisa “que os que perseveram nestes
preconceitos não faltem à igreja, nem fiquem nos esconsos das suas celas ou dos
montes…”24. O Concílio de Vannes, na Gália, acontecido entre 461-491, é
apontado como o primeiro que, no Ocidente, tenta restringir aos perfeitos,
depois de haverem experimentado a comunidade. A referência do Concílio de
Saragoça, embora subtil, apontava no mesmo sentido de perigosidade da prática
para a unidade da Igreja25 Trata-se de um sinal de que as duas modalidades, a
reclusão nos espaços proporcionados pela natureza e a reclusão doméstica se
equivaliam.
Em conformidade com a influência exercida por S. Isidoro no IV Concílio de
Toledo, de 633, a sua regra reprime a reclusão ascética em favor da vivência em
comunidade, considerando esta modalidade movida pelo desejo de fama e vã
glória26. Será muito difícil não vislumbrar a influência deste líder monástico
na legislação goda aprovada posteriormente, no VII Concílio de Toledo (646),
que mantém este estado de desconfiança em relação aos propósitos da reclusão.
Numa extensa redação quanto aos reclusi honesti siue uagi, denuncia uma certa
degradação da piedade monástica. Propõe assim que haja um critério. Os reclusos
honestos in cellulis propriis não serão incomodados na sua ascese. Mas há os
que escolheram essa forma de ascese por preguiça ou por vaidade: que estes
sejam expulsos das suas celas ou dos lugares em que se esconderam e remetidos
para os mosteiros das cercanias, de onde vieram, ou colocados sob a autoridade
do bispo. Determina-se ainda que a reclusão só seja permitida aos que tiverem
sido experimentados e aprovados na perfeição da vida cenobítica27. Este cenário
devolvido pelos textos normativos visigodos do século VII mostra a realidade
disseminada dos reclusos desenquadrados da ordem eclesiástica ou monástica, que
importava remeter para a disciplina comunitária dos mosteiros, sendo os motivos
de reserva contra esta forma de ascese bastante coerentes: são fonte de vícios
como a indisciplina, a vaidade e a preguiça28. Neste sentido, a atitude da
Igreja e da sociedade visigótica face à reclusão era ambivalente: considerada
excessiva, é aceitável como etapa ascética, não como modo de vida permanente.
Para este contexto concorre o facto de as regras monásticas visigóticas
mencionarem a reclusão dentro do mosteiro enquanto medida corretiva extrema,
esgotadas outras formas de punição. A retenção num espaço fechado associava a
privação da comunidade, de luz e redução dos alimentos a uma fórmula
punitiva29.
Eulógio de Córdova herdou o vocabulário ascético da reclusão mas percebe-se do
seu testemunho que estamos próximos do contexto errático descrito pelo c. 5 do
VIII Concílio de Toledo. Neste século IX já de ocupação islâmica, Eugénio
testemunha a existência destes ascetas errantes de cidade em cidade, que
“fugiam do mundo” e se recolhiam em covas, cavernas ou no espaço selvagem dos
montes. Por isso, concordamos com Gregoria Cavero, que apontou o período pós-
visigótico (sécs. VIII-X) como de crise para a Hispânia, para a instituição
monástica e para a vida nas cidades 30. Neste sentido, a Hispânia medieval irá
consolidar fórmulas de reclusão monástica a partir do século XI e XII, em
modelos ainda eremíticos e monásticos, na dependência de mosteiros. O
emparedamento urbano, marcadamente feminino, exterior ao controlo dos
mosteiros, desenvolve-se a partir do século XII em condições de estabilização
da vida urbana, e prolongar-se-á até ao século XVI31. A Idade Média hispânica
apresenta um vasto catálogo de mulheres espirituais, mais místicas do que
religiosas, para quem o mundo, religioso ou laico, não oferecia caminhos de
santidade. Ou porque necessitavam expiar, pela penitência do emparedamento,
faltas graves, ou porque a devoção a tal as empurrava. Esta conjuntura foi
geral para a Europa ocidental, e encontramos o fenómeno do emparedamento
voluntário em todos os países europeus, com idêntica intensidade. Por um lado,
tendências místicas específicas favoreciam este exacerbamento ascético: o culto
eucarístico, a devoção mariana, a meditação sobre a morte proporcionavam esta
ânsia de recolhimento individual. A par do clima espiritual, temos o contexto
social: o emparedamento urbano, nas dependências das Igrejas das principais
cidades, surge com o desenvolvimento das cidades como polos de atração das
comunidades envolventes, que aí se dirigem periodicamente para os negócios,
compras, devoções. Estas emparedadas dependiam da generosidade dos passantes,
que deixavam os víveres, ou a esmola necessária à sua sobrevivência, recebendo
em troca a oração das “santas em vida”. Paradoxalmente, a ocultação do corpo e
da voz da religiosa traduzia-se no reconhecimento público, em vida e após a sua
morte.
A bibliografia percorrida é constante no apontar das razões sociais e de género
para explicar a feminização da reclusão na Idade Média: particularmente as
mulheres nobres viam no caminho ascético a fuga a um mundo que as secundarizava
face ao homem. Tradicionalmente filhas, esposas e mães, estas mulheres presas à
inevitabilidade de verem os seus papéis sociais definidos a partir de um agir
sexuado, não encontravam neles as garantias de salvação da sua alma, diante de
uma mensagem de castidade, continência e renúncia do cristianismo. A escolha
pela clausura, por uma antecipação das condições da morte, como num sepulcro,
trazia consigo também a rejeição do corpo feminino com que nasceram e com o
que, agindo dentro dos papéis sociais que lhe estavam vinculados, pecariam32.
Portanto, nem só de fuga e de anulação se faria este caminho. A mulher
enclausurada seria um exemplo, convertia-se numa relíquia viva, as suas orações
eram valiosas, dada a sua proximidade com Deus. Experimentaria decerto o
reconhecimento nos olhares dos outros de quem se segregara.
Conclusão
A funcionalidade da reclusão e o emparedamento na linguagem religiosa e
ascética do cristianismo permaneceram porque eram percebidas como um modo
válido de relacionamento com o divino. Em que termos inovou o cristianismo? Em
primeiro lugar, a dimensão sacrificial é exclusivamente metafórica: ninguém é
emparedado para assim morrer, alguém se deixa emparedar para assim viver. O
significado punitivo, em termos da ordem pública jurídica, residual no mundo
antigo, restringe-se ainda mais. A clausura pôde constituir uma forma de
penitência, uma pena autoinfligida ou imposta em contextos regulares ou
canónicos, mas a sua aplicação é também metafórica e justificada por critérios
religiosos. O carácter voluntário da clausura é uma fundamental inovação do
cristianismo, tornando-se uma atitude espiritualmente justificada para a
progressiva valorização do ascetismo33.
Por fim, a questão mais problemática: tendo a origem da reclusão cristã nascido
sem um destinatário masculino ou feminino preciso, a história se encarregará da
progressiva feminização das manifestações de clausura e, em particular, do
emparedamento. Esta inclinação para o género feminino é um fenómeno paralelo ao
da lenta urbanização das manifestações monásticas, do deserto e do campo até às
cidades e proximidade e mesmo submissão à autoridade episcopal, o que se
prolongou até ao fim da Idade Média. Estas duas tendências estão, pois,
relacionadas. A reclusão feminina tornou-se popular entre as mulheres para quem
os valores, os costumes e as leis haviam reservado, como instância de mérito, o
espaço fechado da casa. Mas a tradição não explica tudo. A tradição também
valorizava o modelo da mulher casada e mãe, paradigma que o cristianismo
alterou.
Muitos estudos sobre a dimensão feminina da clausura destacam a vontade
feminina em se libertar do papel tradicional e secundário que a mantinha como
“escrava” da casa e dos homens da família, nomeadamente a recusa do casamento e
da maternidade34.
No entanto, a leitura de que estes caminhos constituíram modalidades de
emancipação e de desafio para as mulheres parece-nos limitadora. Assim, mais do
que um sinal da libertação das mulheres, parece-nos uma consequência de um
discurso de esvaziamento do feminino que o cristianismo não acautelou. De
facto, o fenómeno de feminização da clausura e do emparedamento pode ser o
efeito social visível de um discurso religioso inicialmente programado sem
critérios de género. O celibato, a continência e a castidade fizeram parte da
mensagem cristã, dirigidos indistintamente para os homens e para as mulheres,
como mostram as cartas de Paulo35. Mas, para os homens, o cristianismo não
interferiu com as muitas esferas de atuação que sempre tiveram ao dispor, para
além de serem filhos, pais ou esposos. Isto é, os homens podiam continuar a ser
soldados (ainda que com algumas condições), funcionários públicos, mercadores,
agricultores...podiam escolher o sacerdócio, o que se traduzia numa vida ativa
e exposta às comunidades, e mesmo assim podiam ser bons cristãos, sem que a
recusa da sexualidade afectasse estas múltiplas formas de atuação nas
comunidades. Para as mulheres, o celibato e a continência como mensagens de um
cristianismo mais perfeito vieram por em causa as fontes legítimas do seu
mérito face à comunidade. Isto é, se ser cristã perfeita é incompatível com o
ser esposa e mãe, o que lhes cabe às mulheres? Dar corpo à virgindade
consagrada, e mais longe ainda, a árdua escolha do isolamento e da reclusão. O
espaço confinado em que escolhem viver é o lugar destas mulheres a quem o
cristianismo libertou da sua função de esposas e mães enquanto instância de
valorização social, sem conseguir, contudo, alterar a visão tradicional da
imbecillitas feminae que lhes restringia a liberdade e a ocupação efetiva do
espaço público. Paradoxalmente, uma vez encerradas em muros que mimetizam, em
pequena escala, o lar desvalorizado ou perdido pelo abandono do casamento e da
maternidade, estes lugares de reclusão e de emparedamento, dispostos em
lugares-chave das comunidades, são espaços de mérito, de atenção, e da presença
possível na comunidade, integradas numa ordem política, social e religiosa do
universal humano.