Desenvolvimento de um detector piezelétrico para cromatógrafo a gás
interfaceado a microcomputador
INTRODUÇÃO
No final da década de 50, Sauerbrey1 propôs o uso de cristais piezelétricos de
quartzo, então utilizados em circuitos eletrônicos osciladores, como
microbalanças. Ele notou que a queda de frequência era, até certo ponto, linear
com a massa depositada sobre as superfícies do cristal e estabeleceu uma
equação que permitia inferir a massa do depósito:
onde Df é a variação de frequência, f0 é a frequência de oscilação sem
deposição de massa, Dm é a variação de massa sobre as superfícies dos eletrodos
e A é a área do eletrodo.
A grande sensibilidade à massa depositada levou Slutsky e Wade a utilizá-lo
como sensor para adsorção de gases sobre quartzo2. Estes trabalhos originaram
toda uma linha de estudos utilizando os cristais piezelétricos de quartzo como
sensores para espécies na fase gasosa.
King3 foi o primeiro a utilizar um cristal piezelétrico como detector para
cromatografia gasosa. Levando em conta o custo, a sensibilidade e a robustez, a
escolha recaiu sobre um cristal comercial de 9 MHz, o qual acabou se tornando o
padrão para estudos envolvendo este tipo de sensor. Retirado de seu invólucro,
o cristal foi recoberto com esqualano - outras substâncias utilizadas como fase
estacionária para cromatografia gasosa foram também testadas - e posicionado em
uma célula com volume da câmara de gás da ordem de 20 mL.
Comparado com o detector de condutividade térmica (DCT), foi observado que o
detector a cristal piezelétrico (DCP) possuía maior sensibilidade à medida que
o peso molecular aumentava. Como, em geral, o ponto de ebulição aumenta com o
peso molecular, compostos menos voláteis possuem maior fator de resposta no
DCP.
Embora no início fosse comum a utilização de conversores frequência/tensão e
registradores eletromecânicos, King já previa a maior adequação dos sistemas
digitais de aquisição; em especial, devido a facilidade de integração de um
pico cromatográfico resultante de um detector com resposta em frequência. Isto
é conseguido simplesmente através da contagem do número de pulsos gerados
durante a passagem de uma substância pelo detector. Esta possibilidade foi
posteriormente explorada por Janghorbani e Freund4.
Apoiados por King, Karasek e outros5-7 desenvolveram não somente um detector,
mas um cromatógrafo a gás com detector DCP. Como a sensibilidade do DCP cai a
medida que a temperatura aumenta, a proposta para o cromatógrafo era a
utilização a baixas temperaturas; situação particularmente apropriada para
compostos termicamente instáveis. Por ocasião da publicação do terceiro
artigo7, já estava disponível comercialmente um cromatógrafo com DCP que, ao
contrário do protótipo apresentado, operava somente à temperatura ambiente. No
entanto, este tipo de detector não se firmou como uma opção para detecção;
provavelmente, devido ao uso corriqueiro de temperaturas relativamente altas em
cromatografia gasosa, o que, como já foi salientado, diminui a sensibilidade do
DCP.
O presente artigo apresenta um DCP de fácil construção, que foi acoplado à
saída de um cromatógrafo a gás e interfaceado a um microcomputador através de
um circuito contador de pulsos, dispensando o uso de um conversor analógico/
digital. Também é apresentado o comportamento deste detector em condições de
baixa temperatura e alto volume de amostra, onde se evidencia uma acentuada
perda de linearidade de resposta em alguns casos. Para fins de avaliação do
DCP, o DCT original do aparelho foi também interfaceado, resultando em um
instrumento com dupla detecção.
PARTE EXPERIMENTAL
Foi utilizado um cromatógrafo modelo CG20 (CG Instrumentos Científicos) com
coluna empacotada de 3 metros de comprimento e diâmetro interno de 3,0 mm, fase
estacionária SF-96 20% sobre Chromosorb P e hidrogênio a 30mL/min como gás de
arraste. A cela do DCP foi posicionada imediatamente após o DCT original do
instrumento. A coluna cromatográfica e o DCT operaram às temperaturas de 50 e
70oC, respectivamente, enquanto o DCP foi avaliado em diversas condições. Como
o DCT é um detector já bem estudado e sabidamente tem apresentado bom
comportamento nas condições empregadas, este foi assumido como referência para
o DCP.
Todos os reagentes e solventes de grau analítico foram utilizados sem
purificação prévia.
CELA DO DCP
A Figura_1 mostra a cela confeccionada em poli(tetrafluo-retileno) (PTFE) para
acomodação do cristal piezelétrico. Ela é formada por um conjunto de três peças
que, fixadas com parafusos, prendem o cristal através de anéis de viton,
resultando em um compartimento com volume aproximado de 120 mL. É importante
notar que somente uma face do cristal entra em contato com os gases que saem do
cromatógrafo.
Foi escolhido o cristal com corte AT de 3,575611MHz (diâmetro de 12,5mm e
espessura de 0,5mm) devido à sua robustez e ao baixo custo, pois este tem ampla
utilização em circuitos eletrônicos. A remoção do invólucro comercial é
relativamente simples e o método empregado depende da forma como este é feito.
Se o invólucro for do tipo prensado, a remoção pode ser conseguida serrando a
carcaça próximo à base. Se for do tipo soldado, a remoção é simplesmente
conseguida com o auxílio de um ferro de solda ou uma pistola de ar quente. Os
terminais são removidos mecanicamente e substituídos por fitas de alumínio,
utilizado em embalagens, posicionadas junto à cela no momento da montagem.
TERMOSTATO
A Figura_2 mostra o esquema do circuito termostatizador da cela do detector. O
diodo D1, colocado junto ao bloco de PTFE, é polarizado diretamente e, devido a
deriva térmica de aproximadamente -2mV/oC, serve como sensor de temperatura. A
temperatura a ser mantida é ajustada através do potenciômetro P1. O
optoacoplador OP1 isola o circuito do termômetro da etapa de potência. A carga
RL, responsável pelo aquecimento, é do tipo braçadeira resistiva (200W, 220V) e
é colocada ao redor do bloco de PTFE, o qual é envolvido por lã de rocha.
RECOBRIMENTO DO CRISTAL
O recobrimento do cristal foi feito por imersão do mesmo em solução da
substância recobridora em clorofórmio e posterior secagem ao ar. A película foi
removida da face que não entra em contato com os gases com um algodão embebido
em clorofórmio.
Várias substâncias foram utilizadas como película, sendo que os resultados
apresentados neste trabalho foram obtidos com OV1 - que é um poli
(dimetilsiloxano) - e Carbowax 20M - que é um poli(etilenoglicol) de peso
molecular médio 20000 - ambos utilizados como fase estacionária em
cromatografia gasosa. Foram preparadas soluções a 10mg/mL dos polímeros (Carlo
Erba) em clorofórmio (Merck).
CIRCUITO OSCILADOR
A Figura_3 mostra o esquema do circuito utilizado. Ele é composto basicamente
por dois osciladores - um com o cristal sensor e outro de referência -
utilizando portas inversoras TTL e um circuito integrado (CI) 7474 responsável
pelo batimento dos dois sinais. Este último permite monitorar a diferença de
frequência entre os dois osciladores8, o que torna mais simples a transmissão
do sinal e implementação do contador de pulsos.
INTERFACEAMENTO
A Figura_4 mostra o esquema do cartão de interfaceamento que é inserido em um
slotISA do microcomputador. Os CIs U1, U2 e U3 são os responsáveis pela
decodificação de endereço base que, da forma como está configurado neste
esquema, é a porta de E/S 304 em hexadecimal. O CI U4 é composto por três
contadores de 16 bits, sendo um para monitorar o detector e um segundo para o
gerador de base de tempo formado por U5 e U6. Este último permite cronometragem
com maior resolução que o gerador interno do microcomputador.
Como neste trabalho foi também monitorado o sinal do DCT, um cartão STD-5012
(Sistemas Técnicos Digitais) com conversor analógico/digital (A/D) de 12 bits
foi necessário. Como o tempo de conversão é de apenas 25ms, cada ponto
armazenado corresponde ao valor médio de 10 leituras da sub-rotina de aquisição
que, por sua vez, é a mediana de 21 leituras do conversor A/D.
Praticamente, qualquer microcomputador compatível com a linha IBM PC pode ser
utilizado, sendo empregado nos testes o modelo NYDA 200B (IBM XT de 8MHz) da
Monydata.
Os programas de aquisição e tratamento de dados foram implementados em Turbo
Pascal 6.0 (Borland). Os cromatogramas podem ser visualizados em tempo real e
armazenados em disco para posterior tratamento por um programa que permite
filtragem de sinal com mediana móvel9 e Savitzky-Golay10, além da determinação
de tempo de retenção e área dos picos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Salvo menção em contrário, os cromatogramas foram obtidos com o cristal
recoberto com OV1. Na Figura_5 são apresentados os cromatogramas de uma mistura
com volumes iguais de acetona, clorofórmio, benzeno e ciclo-hexeno obtidos com
o DCP e o DCT. Pode-se notar que a relação sinal/ruído é melhor no caso do DCT.
Isto se deve basicamente ao fato de se trabalhar com um cristal oscilando a uma
frequência relativamente baixa (3,57MHz). De qualquer forma, é evidente a
diferença no fator de resposta de cada substância utilizada, o que aumenta a
seletividade do sistema de detecção. Todos os cromatogramas apresentados neste
trabalho não sofreram filtragem digital a fim de que se possa avaliar a
qualidade do sinal resultante de cada detector.
Para fins de avaliação inicial do desempenho do DCP, foram injetadas misturas
de clorofórmio e isopropanol e o detector mantido à temperatura externa de
21oC. Uma primeira série de medidas foi feita injetando-se 1, 2, 3, 4 e 5 mL de
uma solução 1:9 de isopropanol e clorofórmio. Uma solução 1:1 de isopropanol e
clorofórmio foi utilizada em uma segunda série, injetando-se os mesmos volumes.
A Figura_6 mostra as curvas analíticas das áreas dos picos obtidos em ambos os
detectores em função dos volumes injetados de clorofórmio. Mesmo considerando
que as últimas injeções de cada série representem volumes razoavelmente altos
para a capacidade da coluna, pode-se notar o comportamento linear dos dois
detectores. Os perfis dos picos da primeira série podem ser observados na
Figura_7. A linearidade é boa para a faixa avaliada, sendo comparável à do DCT.
Devido à baixa frequência de oscilação do cristal, a resolução e portanto a
precisão não são comparáveis à do DCT. Com um tempo de amostragem de
aproximadamente 300ms, a resolução na medida de frequência é da ordem de 3Hz.
Na região do cromatograma que corresponde à eluição do isopropanol, observa-se
um comportamento bastante curioso. As curvas para área em função do volume
injetado podem ser vistas na Figura_8. Nota-se a boa linearidade da resposta do
DCT, enquanto que o DCP comporta-se nitidamente de modo distinto acima e abaixo
de aproximadamente 0,75 mL. Isto fica mais claro através da Figura_9 com os
cromatogramas para a segunda série, para a qual o DCT mostra uma provável
saturação da coluna devido aos altos volumes injetados. Porém, a tendência de
crescimento de área do pico está correta. Já a resposta do DCP é demasiadamente
pequena para um volume de isopropanol correspondente a aproximadamente 0,5mL.
Além disso, o formato dos picos é bastante diferente daqueles obtidos com o
DCT.
Outro comportamento curioso é o resultante das injeções de 0,5mL de isopropanol
em ambas as séries. Os cromatogramas do DCT (Fig._10) revelam que, devido
provavelmente aos diferentes volumes de solução injetados, os tempos de
retenção e as resoluções dos picos são diferentes. No entanto, a área diminui
em apenas 7% da primeira para a segunda série, o que pode ser atribuído a
imprecisões tanto na preparação quanto na injeção das soluções e mesmo no
cálculo de área. Já para o DCP, a área aumenta em 39% da primeira para a
segunda série. Além disso, pode-se observar a mudança do formato de pico em
relação ao DCT.
O fenômeno está ligado também à temperatura. A Figura_11 mostra os
cromatogramas para a injeção de 5mL da mistura 1:1 de isopropanol e clorofórmio
às temperaturas de 23, 24, 25 e 27oC, medidas externamente à cela do DCP,
enquanto o DCT foi mantido à 70oC. Observa-se claramente que, enquanto as
respostas de ambos os detectores para o clorofórmio são praticamente as mesmas,
há uma diminuição drástica da intensidade do pico para o isopropanol no DCP,
acompanhada de mudança da forma do pico.
Estas anomalias, que foram também observadas para outras substâncias, não
haviam sido registradas nos trabalhos anteriormente publicados3-6. A Figura_12
apresenta de forma diferente o comportamento dos detectores para diferentes
substâncias. Ao plotar a resposta do DCP em função do DCT, seria esperado uma
linha diagonal - caso os detectores estivessem em paralelo - ou uma curva de
histerese - devido ao atraso na montagem em série. A curva para o clorofórmio
(Fig._12a) mostra que este atraso é pequeno, pois o formato é praticamente uma
linha diagonal. Os gráficos para o isopropanol (Fig._12b) e para o metanol
(Fig._12c) mostram a ocorrência da anomalia citada. A Figura_12d mostra que
somente para injeção de 10mL de clorofórmio observa-se anomalias.
As Figuras_12d e 12e mostram também a resposta quando é utilizada uma película
de Carbowax 20M. Neste caso, o comportamento anômalo para o clorofórmio ocorre
prematuramente (2mL).
De posse deste conjunto de informações, podemos fazer as seguintes
considerações sobre o fenômeno. Basicamente ele está relacionado com a pressão
parcial do analito na cela e com a temperatura do sensor e possivelmente
estaria associado à condensação do analito sobre o cristal. Isto explica alguns
aspectos dos cromatogramas apresentados. No entanto, avaliando o ponto de
ebulição, volume injetado e tempo de retenção das diversas substâncias, pode-se
perceber que existe ainda algo por explicar: por que, mesmo o clorofórmio tendo
ponto de ebulição semelhante ao do metanol e sendo injetado em muito maior
quantidade, a anomalia não ocorre? Este fato, associado ao resultado obtido
para o clorofórmio com a substituição do recobrimento do cristal de OV1 para
Carbowax 20M, mostra que o fenômeno é dependente também da composição química
da película absorvente.
Seja qual for o motivo que leve à anomalia observada, é importante notar que a
resposta de um detector do tipo DCP apresenta um comportamento que pode ser
resumido da seguinte forma: quanto maior a temperatura, menor a sensibilidade;
porém, trabalhar a baixas temperaturas pode acarretar perda de linearidade para
alguns analitos.
CONCLUSÕES
Embora não tenha se tornado um tipo de detector de uso comercial difundido, ele
pode ser útil para detecção de compostos voláteis. Além disso, é possível
construir um detector DCP com sistema de aquisição de dados com relativa
facilidade. Em conjunto com um DCT, obtém-se um aumento de seletividade que
pode ser utilizado tanto para fins de pesquisa como para demonstrações
didáticas.
O DCP se presta a análises de substâncias voláteis, uma vez que o aumento de
temperatura da cela reduz drasticamente a sensibilidade. No entanto, foi
observado que a redução de temperatura pode acarretar, em alguns casos,
anomalias no sinal detectado que comprometem sobremaneira a linearidade de
resposta do detector. O fenômeno está relacionado com a temperatura, com a
composição da película absorvente e com a pressão parcial instantânea e
composição química do analito.