Tratamento de pacientes com hepatite crônica pelo vírus C com interferon-alfa e
ribavirina: a experiência da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A infecção pelo vírus da hepatite C (VHC) é um problema mundial de saúde
pública. Dados da Organização Mundial da Saúde estimam que 2,5% a 4,9% da
população brasileira esteja infectada pelo VHC(22), o que significa 3,9 a 7,6
milhões de pessoas com risco de desenvolver cirrose ou hepatocarcinoma.
Apontou-se também que, no Brasil, 20% a 58% dos pacientes com hepatopatia
crônica têm anticorpos contra o VHC (anti-VHC)(8). Assim como em outras partes
do mundo, na América Latina, as doenças hepáticas terminais associadas ao VHC
constituem-se na principal indicação de transplante hepático em adultos*.
Os fatores de risco fortemente associados à infecção são uso de drogas
injetáveis, transfusão sangüínea antes da introdução da pesquisa do anti-VHC em
doadores de sangue e, em menor escala, acidentes de punção(1, 11). A maioria
dos pacientes infectados (70% a 80%) evolui para hepatite crônica; destes, 20%
' se a contaminação ocorreu após os 40 anos de idade ' desenvolverão cirrose em
duas décadas(20). Em cirróticos, o risco anual de desenvolver hepatocarcinoma
varia de 1% a 4%(1, 4, 10, 11).
Até meados da década de 1990, a única medicação disponível para o tratamento da
hepatite crônica C era o interferon-a. Contudo, após 48 semanas de tratamento,
resposta virológica, ou seja, negativação do RNA do VHC por PCR "polymerase
chain reaction" era observada em apenas 5% a 20% dos pacientes(3, 9, 12, 16,
17, 21). Esse insucesso, apesar das diversas dosagens, preparações e esquemas
terapêuticos utilizando monoterapia com interferon, estimulou a realização de
estudos com terapia combinada, sendo a mais avaliada a associação de
interferon-a com ribavirina, um análogo nucleosídio sintético.
Em 1998, foram publicados dois trabalhos de grande impacto, comparando os
resultados da terapêutica com uso isolado interferon-a ou associado com
ribavirina em pacientes com hepatite crônica C(13, 18). Ambos demonstraram que
a taxa de resposta virológica sustentada (ou seja, persistência de negativação
do RNA do VHC 24 semanas após o término do tratamento) foi significativamente
maior nos pacientes que usaram a combinação, quando comparados aos tratados
apenas com interferon. Por tais razões, a Reunião de Consenso, realizada
posteriormente, recomendou que portadores de hepatite crônica C, com alterações
persistentes das aminotransferases, sem terapia prévia ou contra-indicações,
deveriam ser tratados com a combinação interferon-a e ribavirina(6).
Este estudo teve como objetivo analisar os resultados do tratamento combinado
interferon-a/ribavirina em um grupo de pacientes adultos, com hepatite crônica
pelo VHC, que participaram de um programa de fornecimento de medicamentos pelo
Estado do Rio Grande do Sul.
PACIENTES E MÉTODOS
A Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, através da Assessoria de
Medicamentos Especiais (AME), estabeleceu em 1995, protocolo de fornecimento de
interferon-a para tratamento de pacientes com hepatite crônica pelo VHC. A
partir de setembro de 1999, foi incluído também o fornecimento de ribavirina.
Fluxo de atendimento
Todo paciente com hepatite crônica C, atendido em qualquer unidade, pública ou
privada, estava apto a solicitar o fornecimento de interferon-a e ribavirina ao
governo do Estado do Rio Grande do Sul. Para tanto, deveria ser encaminhado à
AME por seu médico-assistente (responsável pelo estabelecimento do diagnóstico,
avaliação dos riscos/benefícios do tratamento e posterior acompanhamento), com
pedido de inclusão no programa e cópias dos exames (ver Protocolo de inclusão).
Na ocasião, era aberto processo administrativo. Este, posteriormente, era
analisado por médicos-peritos, que se baseavam para a tomada de decisão
(atender ou negar o pedido), na documentação apresentada, identificando
pacientes que preenchiam os critérios de inclusão/exclusão do protocolo.
Analisado o pedido, pacientes e médicos-assistentes eram informados da decisão
e, no caso de inclusão no programa, da necessidade de entregarem à AME os
resultados da pesquisa do RNA do VHC a ser realizada no final do tratamento e 6
meses após seu término.
Para cada paciente era aberto um prontuário contendo os dados fornecidos à AME.
Para o presente estudo, utilizaram-se esses apontamentos (nem sempre todos os
campos estavam preenchidos). Quando necessário, entrou-se em contato telefônico
com os pacientes e médicos-assistentes para informações complementares.
Protocolo de inclusão
Em resumo, um paciente, para receber interferon-a e ribavirina para tratamento
de hepatite crônica pelo VHC, deveria preencher os critérios de inclusão do
protocolo e apresentar os resultados dos exames listados abaixo.
Os critérios de inclusão compreendiam: paciente com 1) infecção pelo VHC (anti-
VHC reagente/RNA do VHC positivo), 2) alterações persistentes de
aminotransferases e 3) biopsia hepática, realizada até 6 meses antes da
inclusão, compatível com hepatite crônica, com atividade moderada a grave e/ou
fibrose.
Os exames solicitados pela AME eram: pesquisa do anti-VHC e do RNA do VHC por
PCR, genotipagem do VHC, hemograma, plaquetas, creatinina, tempo de
protrombina, fosfatase alcalina, alanino aminotransferase, aspartato
aminotransferase, hormônio tireoestimulante, tiroxina, anti-HIV, fator
antinuclear, antimúsculo liso e biopsia hepática. Esta última, eventualmente,
era dispensada, desde que houvesse elementos clínicos para tanto (por exemplo,
doenças da coagulação ou evidências clínicas, laboratoriais e de imagem de
cirrose com contra-indicação para realizar biopsia hepática).
Eram excluídos do protocolo os pacientes que apresentassem: 1) co-infecção com
vírus da imunodeficiência humana (HIV) (critério posteriormente retirado), 2)
insuficiência renal (creatinina > 1,5 mg/dL), 3) doença auto-imune (os
critérios clínicos de contra-indicação de tratamento com interferon-a/
ribavirina eram discutidos com o médico-assistente, quando necessário) e 4)
tratamento prévio com essa associação de drogas.
Esquema de tratamento
A AME disponibilizou os seguintes esquemas terapêuticos:
Pacientes com genótipo 2 e 3: interferon-a, 3 milhões de unidade, 3 vezes por
semana, mais ribavirina (1,0 ou 1,25 g/dia, para pacientes com até 75 kg ou
mais, respectivamente), por 6 meses.
Pacientes com genótipo 1: a mesma combinação de drogas, por 12 meses, desde que
houvesse comprovação da negatividade da pesquisa do RNA do VHC no 6º mês de
tratamento. Nos demais, considerados não-respondedores, o fornecimento era
suspenso.
Critérios de resposta virológica
Resposta ao final do tratamento: negativação do RNA do VHC por PCR.
Resposta sustentada: manutenção da negativação do RNA do VHC 6 meses após o
término do tratamento.
Não-respondedor: persistência do RNA do VHC 6 meses após o início do tratamento
independentemente do genótipo.
Recidivante: surgimento do RNA do VHC após o término do tratamento em paciente
com resposta completa ao final do tratamento.
Análise estatística
O programa SPSS 10.0 foi utilizado para base de dados e cálculo do Qui-
quadrado, sendo aceito P < 0,05 como estatisticamente significativo.
RESULTADOS
Características da amostra
Entre maio de 1999 e dezembro de 2000, 665 pacientes tiveram aprovados seus
pedidos de inclusão no programa. Entretanto, por se tratar de estudo
retrospectivo, nem sempre todos os dados dos prontuários foram recuperados,
razão pela qual foram analisadas informações sobre 400 pacientes (60,1%). A
média de idade dos pacientes foi de 46,5 anos (DP ± 10,3 anos), tendo a maioria
deles (71,7%) mais de 40 anos (Tabela_1). Duzentos e dois casos (50,5%) eram do
gênero masculino.
Destaca-se, na Tabela_1, que a proporção entre homens e mulheres foi similar e
que a maioria estava infectada com o genótipo 3. Observa-se, também, em relação
à histologia, que a proporção de pacientes com atividade histológica mínima/
leve ou moderada/grave foi igualmente distribuída entre os pacientes, havendo
pequena preponderância de casos sem fibrose ou expansão porta.
Taxas de resposta ao final do tratamento e resposta sustentada
A Figura_1 especifica o número de pacientes considerados nos diversos momentos
da análise.
Segundo informações dos médicos-assistentes, em 47 casos (11,7%) foi suspenso o
tratamento antes do previsto (45 por efeitos adversos e 2 por abandono). Na
análise por intenção-de- tratamento (Tabela_2), 196 (49%) de 400 pacientes
apresentaram resposta virológica ao final do tratamento. Quando da coleta de
dados, 63 desses 196 com resposta ao final do tratamento ainda estavam em
seguimento, logo sem dados sobre resposta sustentada. Calculou-se a taxa de
resposta sustentada excluindo-se esses 63 casos. Resposta sustentada ocorreu em
109 (32%) de 337 pacientes.
Variáveis associadas à resposta sustentada
Entre as variáveis associadas com resposta ao tratamento (Tabela_3),
analisaram-se as que mais comumente são listadas como capazes de influenciar as
taxas de resposta. Ressalva-se que os números mostrados não consideram os 63
pacientes ainda em seguimento quando do término da coleta de dados. Observa-se
que as taxas de resposta sustentada foram significativamente maiores em
mulheres e em pacientes infectados com genótipo não-1.
DISCUSSÃO
Antes de considerar os resultados, é necessário comentar os possíveis vieses do
trabalho. Não sendo este um estudo prospectivo, randomizado e controlado, mas
sim, a análise retrospectiva dos resultados observados em uma coorte de
pacientes que receberam medicamentos para tratamento da hepatite C em programa
de saúde pública, há probabilidade da ocorrência de viés de seleção.
Entretanto, os pacientes incluídos no programa eram provenientes de diferentes
municípios do Rio Grande do Sul e, para inclusão no protocolo, não foi feita
distinção entre os atendidos em hospitais públicos ou em consultórios
particulares. Adicionalmente, sendo este tratamento de alto custo, estima-se
que a maioria dos pacientes com hepatite crônica C tenha procurado obtê-lo
gratuitamente. É possível que os pacientes tratados na rede pública, pelas
dificuldades sabidamente conhecidas, possam não ter tido o mesmo padrão de
seguimento que os atendidos na rede privada. Entre outros aspectos pertinentes,
ressalta-se que, em casos de genótipo 1, adequada adesão ao tratamento é
associada a maior probabilidade de resposta sustentada(15).
Outro viés a ser considerado é o de aferição, já que as pesquisas do RNA do VHC
e os estudos anatomopatológicos foram realizados em distintos laboratórios de
análise clínica ou de patologia. Também não houve padronização do tipo
(interferon-a ' 2A ou interferon-a-2b) ou do fabricante do interferon, pois a
aquisição do produto dependia de licitação organizada pela Secretaria Estadual
de Saúde. Sabe-se, contudo, que não há diferença significativa entre os
resultados observados no tratamento da hepatite crônica C com dois tipos de
interferon-a(16, 21). No entanto, como vários fabricantes eram licitados, não
se tem conhecimento da bioequivalência entre os produtos fornecidos.
Finalmente, há que se registrar ainda as perdas iniciais (informadas pelos
médicos-assistentes e atribuídas a efeitos adversos ou abandono do tratamento)
e as perdas tardias (o desconhecimento do tipo de resposta ao final do
seguimento nos casos que ainda não tinham completado o período de 6 meses após
o término do tratamento, quando do encerramento da coleta de dados).
Entretanto, não sendo norma do Estado analisar os resultados dos tratamentos de
alto custo que disponibiliza à população, considerou-se que este estudo,
pioneiro neste sentido, poderia ser de auxílio na tomada de decisões, uma delas
a de estabelecer controles mais rígidos para o fornecimento de medicamentos e
de controle dos resultados. Por outro lado, acredita-se que os dados obtidos
refletem a realidade do atendimento médico em nosso meio, ou seja, fora de
ensaios clínicos.
Na presente série, a taxa de resposta virológica sustentada com tratamento
combinado foi de 32%, inferior às registradas nas séries de POYNARD et al.(18)
e de McHUTCHINSON et al.(13), de aproximadamente 38%. A este respeito, é
importante ressaltar que, se este estudo mostra resultados mais tímidos, muito
provavelmente os resultados dos ensaios descritos na literatura sejam por
demais otimistas. Entende-se que eles não refletem realidade assistencial, uma
vez que também apresentam viés de seleção. Assim, nesses estudos, os critérios
de inclusão são extremamente rígidos e ao paciente é dada abordagem
diferenciada. Esse redobrado cuidado com o paciente está baseado no rigorismo
científico da pesquisa e, também, nos vultosos recursos envolvidos nesse tipo
de estudo. A propósito, e como exemplo, pesquisadores italianos observaram, em
série de pacientes atendidos em ambulatório de hospital universitário, que a
taxa de erradicação do Helicobacter pylorifoi bastante inferior à registrada em
ensaios clínicos, mesmo usando tratamentos de primeira linha, tal como
preconizado pelos pesquisadores(5).
Entre os fatores preditivos de resposta ao tratamento combinado interferon-a/
ribavirina, avaliaram-se o gênero e a idade do paciente, o genótipo do VHC e a
histologia hepática.
A taxa de resposta sustentada foi significativamente maior nas mulheres, quando
comparadas aos homens, o que também é descrito na literatura(15). Na
experiência de POYNARD et al.(19), o gênero feminino foi fator independente,
associado com resposta sustentada, com chance 1,5 vez maior de apresentar
resposta sustentada. Possivelmente há um fator de confusão quando avaliado o
gênero, uma vez que as mulheres, geralmente, têm menor índice de massa
corporal, o que aumenta a biodisponibilidade das drogas(14). Também deve ser
lembrado que o consumo de álcool, mais difundido entre os homens, favorece
maior viremia, diminui a taxa de resposta ao tratamento e acelera a evolução
para cirrose(2). Não se dispõe, porém, desse dado para correlação.
Neste estudo, houve taxa maior de resposta sustentada nos pacientes com idade
inferior a 40 anos, embora sem significado estatístico. Na experiência de
alguns autores(19), ter 40 anos ou menos é um fator preditivo independente de
resposta sustentada.
Os pacientes com genótipo não-1 apresentaram taxa de resposta sustentada
significativamente maior que os infectados com genótipo 1 (39% vs20%,
respectivamente). Este achado é descrito sistematicamente na literatura. As
razões da maior resistência do genótipo 1 ao tratamento não estão ainda
esclarecidas(7).
No presente estudo, em relação aos achados histológicos, não houve diferença
estatística nas taxas de resposta sustentada entre pacientes com maior ou menor
atividade ou com fibrose mais ou menos significativa. Por outro lado, está
estabelecido que, quanto menor o grau de fibrose, mais eficaz é o tratamento
(21).
Em suma, em uma série de pacientes adultos com hepatite crônica pelo VHC,
tratados com interferon-a e ribavirina, incluídos em programa público de
fornecimento de drogas de alto custo, observou-se taxa de resposta ao final do
tratamento de 49% e resposta sustentada de 32%. Portanto, essa associação está
longe de constituir o tratamento ideal. Espera-se que a inclusão de novos
medicamentos a serem fornecidos, como o interferon peguilado, possam determinar
taxas de resposta mais adequadas.