Inibição da formação de abscesso abdominal em rato: mortalidade por sepse
GASTROENTEROLOGIA EXPERIMENTALINTRODUÇÃO
Infecções intra-abdominais são acompanhadas por deposição de fibrina na
cavidade abdominal. Esse fenômeno pode levar à formação de aderências e
abscessos. Os abscessos abdominais são uma importante causa de morbimortalidade
em pacientes com sepse, ao passo que as aderências são a principal causa de
obstrução intestinal(21). Essas afecções podem ser causa de múltiplas operações
e períodos de hospitalização prolongados.
LITERATURA
Os abscessos abdominais são geralmente polimicrobianos, sendo as bactérias
gram-negativas e anaeróbias os agentes etiológicos em 60% a 70% dos casos. O
Bacterioides fragilisé o microorganismo mais encontrado, seguido por cocos
anaeróbios e Clostridiumsp. O complexo polissacarídio capsular do B. fragilis,
seu fator mais importante de agressividade, é por si um indutor de abscesso(14,
34). Outras bactérias freqüentemente encontradas nessas coleções sépticas são
E. coli, Klebsiellasp, Proteussp, P. aeruginosa, S. aureuse enterococos(3, 14,
32, 34).
Os agentes que predispõem à formação de abscessos são a diminuição dos
mecanismos de defesa do hospedeiro, a presença de corpos estranhos, a obstrução
à drenagem de líquidos peritoniais, a isquemia tecidual, áreas de necrose,
hematomas e acúmulo de líquidos nos tecidos, além do trauma. A maior parte dos
abscessos resulta de peritonite bacteriana secundária a uma fonte enterocólica.
Os demais ocorrem a partir de infecções focais em vísceras (apendicite,
colecistite, etc.), feridas penetrantes ou procedimentos cirúrgicos(14, 32,
34). Cerca de 74% dos abscessos intraperitoniais ou retroperitoniais não são
associados a um órgão específico(34). Em geral, sua evolução ocorre durante
várias semanas e as coleções podem ser encontradas em vários locais, como
espaços subfrênicos, pelve, goteiras parietocólicas, cavidade retrogástrica e
entre as alças intestinais(14, 32, 34).
Ainda há desacordo sobre a etiopatogenia do abscesso abdominal, quanto à
participação microbiana e a da deficiência imunitária(10, 34). As aderências
que circundam os abscessos têm como função confinar os patógenos a um espaço
limitado e evitar a disseminação da infecção. Apesar de as aderências serem bem
conhecidas como constituintes da terceira fase da inflamação, em conseqüência
do afluxo de fibroblastos e formação de traves de fibrina, seu papel,
principalmente nos abscessos, ainda não foi suficientemente estudado. Acredita-
se que as aderências têm por função isolar o processo séptico e proteger o
organismo de possível disseminação bacteriana. Por outro lado, essa fibrina
também dificulta o afluxo de fatores imunitários e antibióticos para a região
infectada. Considerando esses aspectos e o reduzido número de trabalhos da
literatura voltados à relação entre fibrose, abscesso e defesa orgânica, cabe a
proposta de novas investigações sobre o assunto.
Diversos procedimentos têm sido utilizados para evitar a formação de fibroses e
aderências, tais como inibição da proliferação de fibroblastos, prevenção da
formação de fibrina, remoção mecânica e enzimática de fibrina, uso de agentes
fibrinolíticos, separação de superfícies serosas e inibição da proliferação
fibroblástica com drogas anti-histamínicas e corticóides. Outros compostos
continuam sendo pesquisados com vista à prevenção de aderências, entre os quais
se destaca a carboximetilcelulose (CMC)(15, 22). Soluções de CMC podem ser
preparadas em densidade e viscosidade semelhantes ao líquido sinovial. Seu alto
peso molecular (350.000) e lenta absorção peritonial conferem-lhe a capacidade
de separar as superfícies serosas. Essa propriedade persiste durante processos
inflamatórios e de regeneração epitelial(8, 9, 17, 18, 28, 33).
Acredita-se que o mecanismo de ação da CMC seja por meio de fina membrana
viscosa, que funciona como barreira durante o período de regeneração epitelial,
prevenindo o contato entre as superfícies serosas das vísceras e do peritônio
parietal, dificultando a formação de aderências(8, 9, 18, 22, 27). Outros
mecanismos de ação da CMC são a diminuição da atividade fibroblástica e a
prevenção da deposição de fibrina na superfície serosa(26), bem como a inibição
da migração celular e de mediadores durante o período inflamatório(13, 26).
A proposta deste estudo foi avaliar o efeito da CMC na prevenção de abscesso
abdominal e na sobrevida após peritonite bacteriana.
MATERIAL
Foram utilizados 30 ratos Wistar machos, pesando entre 250 e 350 gramas. Em
todos os animais induziu-se a formação de abscesso intra-abdominal com solução
de fezes de rato recém-defecadas a 50%. Essa solução foi preparada colocando-se
3 g de fezes em um frasco e adicionando-se uma quantidade de solução salina
suficiente para completar 6 mL. A mistura foi homogeneizada, pesada e
introduzida dentro da cavidade peritonial com uma espátula. Em cada rato foram
introduzidos, em média, 0,15 g de fezes.
A CMC foi obtida na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG. Para cada rato, pesaram-se 0,12 g da substância,
que foi diluída em 12 mL de solução salina a 0,9% antes de sua administração
(28).
MÉTODO
O presente estudo foi realizado de acordo com as Normas Internacionais de
Proteção aos Animais e aprovado pela Comissão de Ética do Departamento de
Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais(5,
23).
Os animais foram distribuídos aleatoriamente em três grupos (n = 10), alocados
em gaiolas apropriadas, com até cinco animais por gaiola e acompanhados
diariamente. Foram oferecidas água e ração para ratos à vontade. Os grupos
estudados foram:
Grupo 1 ' controle, introdução de solução de fezes.
Grupo 2 ' introdução de solução de fezes acrescida de 12 mL de solução salina a
0,9%.
Grupo 3 'introdução de solução de fezes acrescida de 12 mL de solução de CMC a
1%.
Todos os procedimentos nos ratos foram conduzidos sob anestesia com éter
etílico. A operação consistiu de laparotomia mediana, de 1 cm de comprimento,
no terço médio do abdome. Em seguida, foi introduzida a solução de fezes,
acrescida ou não de solução salina ou CMC. A cavidade abdominal foi fechada em
dois planos de sutura contínua, utilizando fio de algodão 5-0.
Os animais dos três grupos foram divididos aleatoriamente em dois subgrupos (n
= 5).
Subgrupo A ' Acompanhados durante 4 dias, quando foram submetidos a nova
laparotomia para inspeção de toda a cavidade abdominal.
Subgrupo B ' Acompanhados por um período de 30 dias, durante os quais se
avaliaram a mortalidade e a causa de morte dos ratos.
Após o período de acompanhamento determinado para cada subgrupo e avaliação da
cavidade peritonial, sob anestesia, os animais foram mortos com dose letal de
éter.
Foram realizados testes de Gram e cultura do material colhido da cavidade
abdominal dos animais do Grupo 1A, que foram relaparotomizados.
Para a análise estatística utilizou-se o teste exato de Fisher e valores
correspondentes para P <0,05 foram considerados significativos.
RESULTADOS
À laparotomia exploradora, encontrou-se em todos os ratos do Subgrupo 1A um
grande abscesso (cerca de 1 cm de diâmetro) no terço médio do abdome, entre as
alças intestinais e o peritônio anterior, que estavam aderidos ao abscesso. Em
seu interior havia líquido purulento fétido.
Em quatro ratos do subgrupo 2A, houve formação de abscesso no terço médio do
abdome e aderências entre as alças intestinais semelhantes ao Subgrupo 1A.
Encontrou-se líquido serossanguinolento em toda cavidade peritonial. No quinto
rato, havia apenas aderências intestinais com o omento.
Todos os animais do subgrupo 3A apresentaram aderências mais delgadas e frouxas
do que as verificadas nos subgrupos 1A e 2A. Havia também líquido
serossanguinolento em toda cavidade peritonial. Apenas dois ratos do subgrupo
3A desenvolveram pequenos abscessos, com cerca de 0,5 cm de diâmetro e escasso
conteúdo purulento.
Com respeito aos subgrupos B, não houve mortalidade dos animais do subgrupo 1B.
Já nos ratos do subgrupo 2B houve duas mortes. À necropsia, um dos animais, que
morreu no 3º dia de observação, apresentou poucas aderências entre alças
intestinais e havia líquido claro na cavidade peritonial, porém sem a presença
de abscesso. No outro rato, que morreu no 16º dia, constataram-se muitas
aderências firmes e também não foi encontrado abscesso.
No subgrupo 3B, todos os ratos morreram na primeira semana (3º, 4º e 5º dias).
À laparotomia, havia líquido serossanguinolento na cavidade peritonial e poucas
aderências delgadas intra-abdominais. Apenas um animal apresentou pequeno
abscesso, de cerca de 0,5 cm de diâmetro, entre as alças intestinais.
Os ratos que sobreviveram nos subgrupos 1B (cinco ratos) e 2B (três ratos)
foram mortos com éter e submetidos a necropsia no 30º dia de acompanhamento.
Nesses animais foram encontradas aderências firmes intra-abdominais, sem
evidência de sepse.
Os resultados com relação à formação de abscessos abdominais e à mortalidade
dos animais encontram-se na Tabela_1. O acréscimo de solução salina a 0,9% à
solução de fezes não aumentou a mortalidade do Grupo 2 (P = 0,222), contudo,
deve-se ressaltar que dois animais com morte precoce não desenvolveram
abscessos. Por outro lado, no grupo 3, em que se acrescentou a solução de CMC,
houve menos aderências e abscessos, com elevação da mortalidade (P = 0,0039).
A bacteriologia revelou a presença de vários bastonetes gram-negativos,
diversos cocos gram-positivos aos pares e em cadeias, vários bastonetes gram-
positivos, além de numerosos leucócitos polimorfonucleares. Na cultura, houve o
crescimento de Escherichia coli, Proteus mirabilis e Enterococcussp.
DISCUSSÃO
Experimentalmente, existem três modelos principais de abscessos intra-
abdominais descritos na literatura: introdução de fezes ou bactérias,
associadas ou não à fibrina na cavidade peritonial, abertura de um segmento
intestinal com corte ou furos e ligadura do apêndice cecal(2, 4, 6, 24, 29).
O processo infeccioso intra-abdominal é freqüentemente caracterizado pela
presença de material fibrinopurulento. A resposta do hospedeiro à sepse
peritonial envolve produção de anticorpos, ativação do complemento, imunidade
celular e destruição bacteriana por leucócitos polimorfonucleares e macrófagos
(4). O peritônio normal tem atividade fibrinolítica inerente, que pode ser
reduzida por abrasão das serosas e praticamente abolida em peritonites(12).
Nessas afecções, constata-se diminuição de todas as funções peritoniais,
inclusive a fibrinolítica. O papel da fibrina em processos infecciosos
abdominais ainda é controverso. Essa proteína foi associada a menos óbitos
precoces, mas maior mortalidade tardia e à formação de abscessos(1).
Estudos com heparina(4, 29, 31), mostraram que ela prolonga a vida dos animais
com peritonite e diminui o desenvolvimento de aderências e abscessos na
cavidade peritonial. Esse fenômeno é atribuído aos efeitos dessa droga sobre o
fibrinogênio dentro da cavidade peritonial, tornando a bactéria mais
susceptível aos mecanismos de defesa celular e humoral. Entretanto, a
experiência clínica com a heparina é limitada, provavelmente devido ao receio
de complicações hemorrágicas decorrentes de seu uso.
REIJNEN et al.(24) destacaram a redução de aderências e de abscessos intra-
abdominais com o uso de solução de ácido hialurônico, sem afetar a morbidade e
a mortalidade, em modelo experimental de peritonite bacteriana em ratos. Por
outro lado, observou-se que a associação de ácido hialurônico e CMC é ineficaz,
em presença de peritonite, para reduzir aderências e evitar a formação de
abscessos(11, 16). MOREIRA et al.(16) verificaram que, apesar da introdução do
ácido hialurônico combinado com a CMC na cavidade peritonial, ocorreram
aderências e abscessos em coelhos após enterotomia, mas não houve aumento da
mortalidade por sepse. Recentemente, constatou-se que a associação de óxido de
polietileno e CMC (Oxiplex) diminui de fato a formação de aderências, porém não
afeta a resistência de ratos à infecção peritonial(25). Já a maioria dos
estudos verificou que a CMC é efetiva contra a formação de aderências apenas em
condições assépticas(8, 9, 13, 15, 17, 18, 22, 26, 27, 28, 33).
Na literatura, não foram encontrados estudos sobre a mortalidade após o uso da
CMC em processos infecciosos intra-abdominais. O presente trabalho mostra que o
uso intraperitonial da CMC aumenta a mortalidade em presença de contaminação
fecal. Os óbitos deveram-se, provavelmente, à sepse abdominal generalizada,
tendo em vista a não localização do processo infeccioso. Mesmo quando houve
formação de abscessos, eles foram de tamanho reduzido, com cápsula tênue,
constituída por aderências frouxas. Diante da grave agressão peritonial, as
aderências intra-abdominais foram aparentemente ineficazes para prevenir a
disseminação séptica.
Por outro lado, os óbitos dos animais que receberam a CMC também podem ser
explicados por outros fatores. TZIANABOS et al.(30) afirmaram que o uso de
certos métodos para a redução de aderências peritoniais, em presença de
processo infeccioso, pode aumentar o risco de peritonites devido à presença de
elementos químicos existentes na composição dos géis de ácido hialurônico e
CMC, como, por exemplo, o ferro iônico. Até em condições assépticas, o processo
de remoção da CMC da cavidade peritonial de eqüinos acompanha-se de inflamação
intensa e prolongada, com aumento do afluxo de macrófagos, que tem a finalidade
de englobar as partículas da CMC(15). Essa função inibe, pelo menos em parte, a
ação do sistema mononuclear fagocitário (SMF) sobre a contaminação abdominal(7,
19, 20).
CONCLUSÕES
De acordo com os resultados da presente investigação, a formação de abscessos e
de aderências intra-abdominais parece ser benéfica ao organismo, localizando o
processo infeccioso e reduzindo o risco de sepse. Todavia, não se pode afirmar
que o aumento da mortalidade do grupo no qual se usou a CMC se deva
exclusivamente à difusão do processo infeccioso na cavidade peritonial, pois
ainda são necessários estudos sobre a resposta do SMF à infusão intra-abdominal
de substância coloidal.