Prevalência e fatores associados à doença do refluxo gastroesofágico
EPIDEMOLOGIA CLÍNICACLINICAL EPIDEMOLOGYINTRODUÇÃO
A doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), bem como os demais sintomas
oriundos do sistema digestório superior são de alta freqüência na prática
clínica diária. Ainda que suas complicações não sejam freqüentes, constituem-
se, pela elevada prevalência, tema de relevância nas questões de saúde pública.
As taxas de prevalência de DRGE, caracterizada por presença de sintomas de
pirose e regurgitação ácida, são bastante variáveis mas, principalmente em
países ocidentais, quase sempre elevadas. Na Espanha, estudo transversal
publicado em 2004, identificou prevalência de 31,6% de DRGE ao ano(2). Na
Bélgica também é elevada, tendo sido de 28% em 2002(7). Em estudo realizado na
Austrália em 1996, 56% dos indivíduos relataram ter tido sintomas de DRGE pelo
menos alguma vez em suas vidas, sendo que 37% os têm pelo menos uma vez a cada
4 meses(1). Na Dinamarca, em 1994, a prevalência foi de 38% entre os homens e
30% entre as mulheres(5). No Brasil, em 2001 foi de 48,2%(10). Em estudo de
revisão publicado em 1997, a variação da prevalência fica na faixa de 10% a 48%
para pirose, 9% a 45% para regurgitação ácida e 21% a 59% para ambos os
sintomas(4).
Elevado número de consultas é originado a partir de sintomas de DRGE. Na
Inglaterra, em 1994, 8% das consultas médicas em atenção primária à saúde e 11%
da demanda espontânea foram ocasionadas por sintomas do sistema digestório(3).
Em Autumn, na Alemanha, em estudo realizado no ano de 2000, 81,7% dos
indivíduos com sintomas de DRGE já haviam realizado pelo menos uma gastroscopia
para investigação de seus sintomas(14). Estudo realizado entre trabalhadores na
Itália, em 1999, mostrou que pelo menos 2,6% dos indivíduos sintomáticos têm
seu trabalho afetado pelos sintomas(13).
Estudos de base populacional com baixos índices de perdas ou recusas ainda são
minoria entre as publicações sobre este tema. Os estudos para investigar
fatores determinantes de DRGE são, em sua maioria, realizados em serviços de
saúde, podendo indicar fatores agravantes e não necessariamente fatores de
risco para os indivíduos da população que não procura ajuda médica para seus
sintomas.
O presente estudo visou determinar a prevalência de sintomas de DRGE e
contribuir para elucidação dos diferentes fatores de risco para essa patologia.
METODOLOGIA
Em 1999 e 2000, na cidade de Pelotas, RS, foi realizado um grande estudo
transversal, com pelo menos 12 temas de interesse diferentes, em que foram
entrevistados quase 6.000 indivíduos de todas as idades, através de processo
amostral dos cerca de 250.000 habitantes residentes na zona urbana do
município. A cidade de Pelotas localiza-se na metade sul do Rio Grande do Sul,
sendo sua formação étnica baseada, principalmente, na imigração européia.
A população alvo desse estudo foram os adultos, com 20 ou mais anos de idade,
residentes na zona urbana.
Desejava-se entrevistar 3.717 indivíduos nesta faixa etária, amostra calculada
a partir dos seguintes parâmetros: poder de 80% para detecção de um risco
relativo de pelo menos 1,5, significativo ao nível de 5%, considerando-se pelo
menos 10% de indivíduos expostos aos fatores em estudo e prevalência estimada
de DRGE de 20%. Foi acrescido, ainda, um fator de 1,5 para correção do efeito
de delineamento amostral, 10% para perdas e 30% para controle de variáveis de
confusão.
Para que se encontrassem os 3.717 indivíduos necessários para o desenvolvimento
do estudo, seria necessário visitar 2.100 domicílios, considerando a média de
moradores adultos por domicílio, divulgada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) a partir dos dados do censo demográfico de 1991.
O processo amostral utilizado foi aleatório em estágios múltiplos.
Para escolha dos 2.100 domicílios a serem visitados, realizou-se uma amostragem
sistemática, onde foram sorteados 48 dentre os 281 setores censitários da zona
urbana do município de Pelotas. Em cada setor censitário foram visitados 44
domicílios e nestes entrevistavam-se todos os adultos residentes. A
identificação dos domicílios a serem visitados foi feita a partir de visita e
mapeamento de cada um dos setores censitários sorteados, ocasião em que todos
os quarteirões foram numerados, bem como as esquinas de cada um destes.
Aleatoriamente foram sorteados os quarteirões, e, nestes, a esquina pela qual
se iniciaria o processo amostral de escolha dos domicílios. A partir da esquina
sorteada, um entre os três primeiros domicílios era sorteado e, a partir deste,
de maneira sistemática, eram visitados um de cada três domicílios.
O único critério de exclusão para o presente estudo foi a presença de doença
física ou mental que causasse limitação na compreensão das perguntas ou
respostas. Consideraram-se como perdas ou recusas, respectivamente, aqueles
indivíduos que após, pelo menos, três visitas da entrevistadora em dias e
horários diferentes e, no mínimo, uma do supervisor de campo, não puderam ser
encontrados ou mantiveram a negação de resposta.
Para coleta dos dados, utilizou-se questionário padronizado, pré-testado e
codificado, abordando além das variáveis necessárias à definição do desfecho,
fatores socioeconômicos: renda per capita em salários mínimos da época,
escolaridade em anos completos de aprovação na escola e estado civil (casado
(a), solteiro(a), viúvo(a) ou separado(a)/divorciado(a)); fatores demográficos:
sexo observado pelo entrevistador, cor da pele, classificada como branca ou
não-branca, e idade em anos completos; características emocionais: presença de
insônia durante os últimos 30 dias, ocorrência de eventos estressantes durante
o último ano (desemprego, separação, morte de familiar próximo, acidente
pessoal grave, assalto ou roubo, presença de doença grave entre os moradores do
domicílio) e bem-estar psicológico, medido por uma escala de sete faces(8);
variáveis comportamentais: freqüência semanal de uso de álcool, tabagismo,
medido pelo número de cigarros fumados por dia, e índice de massa corporal
(IMC), calculado através de peso e altura referidos.
Como definição de sintomas de DRGE utilizou-se o relato de ocorrência de pirose
numa freqüência de, pelo menos, uma vez por semana durante o último ano. Essa
definição tem sido considerada a mais sensível para DRGE. O relato de "amargor
na boca" foi queixa associada e muito freqüente nos indivíduos deste estudo.
Vinte e duas entrevistadoras realizaram o trabalho de campo, que teve a duração
de 4 meses. As entrevistadoras foram treinadas para aplicação do questionário
em curso com duração de 40 horas.
Foi realizado controle de qualidade, através de re-entrevista de 10% dos
indivíduos, pelo supervisor de campo, com objetivo de verificar a consistência
de algumas informações e conferir o adequado cumprimento da logística do
estudo. O resultado do teste de concordância entre as variáveis nas duas
entrevistas (Kappa) foi considerado muito bom, na ordem de 0,79.
Utilizou-se o software SPSS/PC+ 8.0 para a análise por regressão logística,
seguindo modelo teórico hierarquizado construído previamente e composto por
três níveis: o primeiro, agregando as variáveis socioeconômicas e demográficas;
o segundo, constituído pelas variáveis de perfil emocional; e o terceiro nível,
com as variáveis comportamentais (tabagismo, consumo de álcool) e IMC.
Inicialmente todas as variáveis entravam no modelo e, a cada nível hierárquico,
eram retiradas aquelas que apresentavam valor P maior que 0,20. Desse modo,
cada variável encontra-se ajustada para todas as do mesmo nível hierárquico no
modelo e ainda para todas as outras dos níveis hierárquicos superiores.
Os dados foram também analisados considerando-se o efeito de delineamento. Em
razão de ocorrer variação apenas na segunda casa decimal dos intervalos de
confiança em relação à análise convencional, optou-se por apresentar os
resultados sem a correção para o efeito do delineamento.
RESULTADOS
O processo amostral definido foi capaz de identificar 2.052 domicílios
elegíveis para o estudo. Todos os domicílios foram visitados, tendo-se
encontrado 4.203 indivíduos que preencheram os critérios de inclusão do estudo.
Foi possível entrevistar 3.934 pessoas, perfazendo um índice de perdas e
recusas de 6,8%.
A Tabela_1 mostra que, entre os 3.934 indivíduos estudados, 2.243 (57%) eram do
sexo feminino. Sete por cento dos indivíduos possuíam 70 anos ou mais e a média
de idade foi de cerca de 43 anos. Pouco mais de 80% dos indivíduos
entrevistados referiram ser de cor branca.
Oito por cento dos entrevistados nunca freqüentaram a escola e a média de
escolaridade da amostra foi de aproximadamente 7 anos e meio. A média de renda
per capita chegava a quase três salários mínimos, porém 15% da amostra tinha
renda per capita inferior a meio salário mínimo.
Insônia foi problema relatado por mais de um terço dos entrevistados e 60%
haviam sofrido algum evento estressante nos últimos 12 meses. Ainda assim, mais
de 50% da amostra enquadraram-se nas faixas de bem-estar mais elevado, quando
perguntado sobre seu estado durante a maior parte do último ano.
Mais de 25% das pessoas elegíveis eram fumantes e quase metade delas referiu
ingestão regular semanal de bebidas alcoólicas no último mês. Cerca de 45% dos
indivíduos encontravam-se numa faixa de IMC adequada e 15,6% apresentavam-se
obesos, de acordo com a classificação do IMC.
A prevalência de DRGE no último ano foi de 31,3% (IC 95% 29,9-32,8).
Observando ainda a Tabela_1, pode-se verificar a prevalência dos sintomas de
DRGE e sua distribuição para cada uma das variáveis independentes. Os sintomas
de DRGE são mais freqüentes entre os não-brancos que apresentam maior
prevalência (34,2%), enquanto os indivíduos de cor branca têm 30,6%, com valor
Plimítrofe de 0,05. Quanto ao sexo, a prevalência foi bem mais elevada entre as
mulheres (34,3%) do que entre os homens (27,4%). Com relação ao estado civil,
os indivíduos solteiros (22,9%) ou casados (32,5%) apresentaram menor
prevalência do que os viúvos (36,6%) e os separados/divorciados (38,2%). Na
análise da idade dos entrevistados, verificou-se uma relação direta de aumento
das taxas de prevalência conforme aumentava a faixa etária dos indivíduos (P de
tendência linear <0,001). Porém, para os indivíduos acima de 69 anos, observou-
se redução importante (30,9%), voltando a apresentar taxa semelhante a do grupo
com 30 a 39 anos. Para a escolaridade e a renda per capita houve diminuição da
prevalência conforme aumentava a renda e a escolaridade, apresentando P de
tendência linear em ambos os casos <0,001.
De maneira geral, taxas mais elevadas de prevalência de sintomas de DRGE
encontram-se significativamente associadas com o sexo feminino, cor não-branca,
estado civil (viúvo ou separado/divorciado), menor escolaridade e renda, faixas
etárias mais elevadas, insônia no último mês, baixos índices de bem-estar
psicológico, ocorrência de eventos estressantes no último ano, IMC mais
elevado, tabagismo e consumo de bebidas alcoólicas.
Entre os indivíduos que apresentavam insônia, encontra-se a maior diferença
entre as taxas de prevalência de sintomas de DRGE, 45,5% entre os insones e
23,6% entre os demais, com valor P altamente significativo <0,001. A ocorrência
de sintomas de DRGE entre os que sofreram eventos estressantes no último ano,
obedece a uma relação linear de aumento da prevalência conforme aumentava o
número de eventos estressantes ocorridos, com P de tendência linear menor que
0,001. Situação semelhante ocorre quando se analisa escala de bem-estar
psicológico. Os indivíduos com melhores índices de bem-estar apresentavam
prevalência de 25,3% de sintomas de DRGE, enquanto que os com piores índices
tinham um coeficiente da ordem de 53,8%, igualmente com importante associação
estatística de tendência linear.
A associação com IMC obedeceu tendência linear com significância estatística
(P<0,001), onde os indivíduos com IMC acima de 30 apresentavam prevalência de
39,1%, comparada com 28,2% entre os com IMC menor de 20.
A prevalência de sintomas de DRGE encontrou-se igualmente associada linearmente
ao hábito de fumar. Indivíduos que fumavam mais cigarros por dia apresentavam
maiores taxas de prevalência, sendo de quase 10 pontos percentuais a diferença
entre fumantes de mais de 20 cigarros ao dia e os não-fumantes.
Quanto ao consumo de bebidas alcoólicas, encontrou-se associação
estatisticamente significativa. Os indivíduos que relatavam ingestão menos
freqüente de bebida alcoólica (menos de 3 vezes por semana), tiveram menor
prevalência que os demais bebedores (26,9%), versus 32,1% e 29,3%,
respectivamente, entre os que consumiam de 3 a 6 vezes por semana e
diariamente, enquanto que os que não consumiam álcool tiveram prevalência de
35,1%.
Na Tabela_2 observam-se os efeitos brutos das variáveis independentes sobre a
prevalência de sintomas de DRGE. Dentre as variáveis dicotômicas, o sexo
feminino está associado a aumento de 39% do risco de apresentar sintomas; a cor
não-branca, a um aumento de 18%, e a ocorrência de insônia aumenta em 2,71
vezes o risco do indivíduo apresentar DRGE.
O risco bruto cresce linearmente com a idade, o IMC, a intensidade do hábito de
fumar, a freqüência de consumo de bebidas alcoólicas e o número de eventos
estressantes vivenciados no último ano.
Entre os indivíduos com 60 a 69 anos de idade, o risco é 42% maior do que o
verificado entre os maiores de 69 anos, tomados como referência. Entre os com
menos de 40 anos de idade, o risco é menor do que entre os demais grupos
etários.
O risco aumenta com o IMC, sendo 21% e 64% maior entre indivíduos com IMC,
respectivamente, de 25,00 a 29,99, e de maior ou igual a 30, comparativamente
àqueles com IMC menor que 20.
Os fumantes de mais de 20 cigarros por dia têm risco 49% maior de serem
sintomáticos do que os não-fumantes. Indivíduos que fumaram no máximo 5
cigarros por dia, no entanto, apresentam risco maior do que o verificado entre
os fumantes de 6 a 10 cigarros por dia e 11 a 15 cigarros por dia
(respectivamente, razão de chance = 1,22; 0,99 e 0,79).
O risco bruto de DRGE entre não-consumidores de bebidas alcoólicas foi 31%
maior do que o encontrado entre os bebedores diários. A freqüência de consumo
menor do que 3 vezes por semana apresentou efeito bruto protetor, com risco 11%
menor do que o observado entre bebedores diários.
O risco de DRGE foi crescente com o número de eventos estressantes
experimentados no último ano. Aqueles com história de três ou mais eventos
apresentaram risco 77% maior do que o observado entre os controles (indivíduos
com nenhum evento).
A renda per capita e a escolaridade apresentaram associação inversa à presença
de sintomas de DRGE. Entre os analfabetos, o risco foi 4 vezes maior do que
entre indivíduos com 11 anos ou mais de escolaridade. O primeiro grau completo
e incompleto associaram-se a risco 2 vezes maior de DRGE do que os controles.
O risco associado à renda inferior a meio salário mínimo foi 2 vezes maior do
que o encontrado para indivíduos com renda mensal superior a cinco salários
mínimos.
Entre os viúvos e os separados/divorciados, o risco foi de 20% a 30% maior do
que entre os casados. E os que apresentaram baixo escore de bem-estar
psicológico, tiveram risco 3,42 vezes maior do que o observado entre aqueles
com escore alto.
Quando se controlam os fatores de confusão (Tabela_3), algumas das variáveis
que anteriormente se mostravam associadas com o desfecho perdem sua
significância estatística e saem do modelo de análise, como a cor da pele, a
renda per capita e o tabagismo. As variáveis idade e consumo de bebidas
alcoólicas são mantidas no modelo para controlar as demais variáveis, mas
também não se mostram associadas ao desfecho. Entre as variáveis
socioeconômicas e demográficas, apenas a escolaridade e o sexo feminino
permaneceram associados com o relato de DRGE, essa última mantendo a tendência
de aumento do risco conforme a diminuição do grau de instrução dos indivíduos.
O estado civil permanece associado, sendo maior o risco para indivíduos
separados/divorciados.
As variáveis insônia, bem-estar psicológico e eventos estressantes mantêm-se
fortemente associadas com o desfecho, mesmo quando se controla para possíveis
fatores de confusão.
Entre as variáveis comportamentais, apenas o IMC mantém-se associado com a
ocorrência de sintomas de DRGE, com uma razão de chance de 1,68 para os mais
obesos.
DISCUSSÃO
Quando se comparam as características da amostra obtida no presente estudo com
os dados do censo realizado pelo IBGE em 2001, considerando-se apenas a
população residente na zona urbana da cidade, é possível concluir que o
processo amostral utilizado obteve bom resultado e que o estudo foi conduzido
com amostra representativa da população da cidade, uma vez que as distribuições
por sexo, idade, escolaridade e renda são semelhantes aos dados oficiais do
IBGE para Pelotas.
O presente estudo utilizou para diagnóstico de DRGE os critérios mais comumente
empregados em estudos anteriores. Comparando-se com a definição do atual
Consenso Brasileiro sobre DRGE(9), o critério utilizado foi mais sensível. A
definição de sintomas presentes 2 vezes por semana durante, pelo menos, 4 a 8
semanas, utilizada pelo consenso, é mais específica. Sendo a DRGE uma
enfermidade de evolução crônica, no entanto, é possível que o número de
indivíduos sintomáticos 2 a 4 vezes por semana nas últimas 4 a 8 semanas não
seja muito diferente dos que responderiam afirmativamente à presença de
sintoma, pelo menos, uma vez por semana no último ano. Sendo diferente, a
repercussão do uso de um critério mais sensível seria no sentido de
superestimar a prevalência real. O efeito do critério diagnóstico utilizado
sobre os reais fatores de risco para DRGE foi, provavelmente, conservador, uma
vez que provoca diminuição da força de associação.
As dificuldades e limitações de delineamentos transversais em determinar
fatores de risco para doenças são bem conhecidas(10). Este estudo não está
isento de viéses como o de causalidade reversa(12), uma vez que não se pode
determinar com precisão a cronologia da ocorrência de alguns fatores estudados
e do surgimento dos sintomas de DRGE. O efeito de variáveis que representam
hábitos de vida modificáveis pela presença de sintomas de DRGE, como tabagismo
e consumo de bebidas alcoólicas, foi potencialmente alterado por este tipo de
viés.
As variáveis socioeconômicas e demográficas estão, muito provavelmente, isentas
deste tipo de erro, uma vez que se mantêm aproximadamente constantes ao longo
da vida, não se alterando em conseqüência deste tipo de patologia. Mesmo a
escolaridade já costuma estar bem definida na faixa etária estudada.
Para as variáveis insônia e bem-estar psicológico é possível a ocorrência deste
viés, uma vez que os sintomas poderiam afetar a qualidade de vida e o sono dos
pacientes. Sintomas digestivos, no entanto, não figuram entre as causas mais
freqüentes de insônia relatada por pacientes(11). Em geral, apenas pequena
parte de indivíduos referiu alteração do seu ritmo de trabalho em decorrência
de DRGE(8) e a ocorrência de eventos estressantes não parece ser logicamente
afetada pela patologia. Como as três variáveis tentam indicar fatores
semelhantes e apresentam comportamento muito parecido no presente estudo, é
razoável supor que este viés não tenha afetado de maneira importante os
resultados destas variáveis.
As variáveis comportamentais, portanto, seriam as com maior potencial de
alteração pela causalidade reversa. É possível que a presença de sintomas de
DRGE tenha implicado em interrupção do hábito de fumar e de consumir bebidas
alcoólicas, seja por recomendação médica, ou por auto-manejo dos indivíduos
afetados.
A prevalência de sintomas de DRGE encontrada neste estudo é semelhante às
encontradas em outros realizados em diferentes locais do mundo(1, 2, 10),
diferentemente da encontrada por KHOSHBATEN no Irã(6), 2,7% indicando provável
diferença étnica na determinação dessa patologia. Os 31,3% de prevalência
encontrados no presente estudo encontram-se dentro da faixa de prevalências
encontradas por HEADING(4) em seu estudo de revisão (21% a 59%), demonstrando,
mais uma vez, a grande relevância desta patologia e sua importância para os
serviços de saúde.
Há controvérsias na literatura quanto à associação entre sintomas de DRGE e o
sexo. Alguns estudos encontraram maior risco para homens(1, 5), outros para
mulheres(7). Em todos os estudos revisados, os riscos relativos tanto para
homens, quanto para mulheres são pequenos, nunca superiores a 1,5, o que pode
sugerir que o sexo é pouco importante na determinação da ocorrência de sintomas
de DRGE.
A ausência de associação entre DRGE e indivíduos não-brancos é consistente com
o achado de outros autores, uma vez que estudos em diferentes partes do mundo
não têm encontrado relação com raça ou cor da pele(1, 5, 10).
O aumento do risco para desenvolvimento de sintomas de DRGE conforme diminui a
faixa etária, encontrado neste estudo, é coerente com oa achados na Austrália
(5). A queda na prevalência entre aqueles com 70 ou mais anos de idade, pode
ser explicada pelo menor número de indivíduos neste grupo, o que determina
diminuição do poder de identificação da relação entre o desfecho e esta faixa
etária.
Não parece haver plausibilidade biológica para justificar o efeito protetor de
ser solteiro sobre a ocorrência de DRGE, como observado no atual estudo. Tal
resultado deve-se, provavelmente, à associação dessa característica com outras
não conhecidas e não medidas no mesmo.
A baixa escolaridade e a renda mais baixa que se mostram claramente associadas
com a ocorrência de sintomas de DRGE na análise bruta, tem sua significância
alterada, que se mantém apenas para a escolaridade após ajuste para fatores de
confusão, fato compreensível pela alta colinearidade existente entre estas duas
variáveis. A comparação destes achados com os de outros autores é dificultada
por serem fatores pouco estudados, uma vez que a maioria das investigações
sobre este tema foi conduzida em países desenvolvidos, onde as diferenças entre
faixas de renda e de escolaridade não são marcantes.
Os achados de maior risco associados a todas as variáveis que envolvem aspectos
psicológicos confirmam a grande importância destes fatores na determinação da
doença. Outros estudos(1, 2) encontram resultados semelhantes. Ainda que as
definições utilizadas para identificar problemas de origem psicológica sejam
bastante diversas entre cada estudo, o aumento de risco aparece sempre que de
alguma forma se estuda este tipo de exposição. Para garantir a comparabilidade
e confirmar a importância desses achados, seria desejável que houvesse uma
padronização dessa exposição em estudos futuros.
É nítida também a tendência de aumento de risco para sintomas de DRGE conforme
aumenta o IMC dos indivíduos. No presente, somente a faixa de IMC
correspondente à obesidade teve significância estatística, porém a faixa de
sobrepeso apresentou um intervalo de confiança no limite da significância
estatística, achado este em perfeito acordo com a literatura(2, 10).
A elevada prevalência de sintomas de DRGE detectada em Pelotas, associada ao
grande desconforto causado(8, 13) e ao elevado número de consultas originadas
por este tipo de sintoma(1), bem como ao custo também elevado, ocasionado pela
freqüente solicitação de exames complementares que estas consultas originam(1,
13), confirmam a necessidade de melhores estudos dos fatores determinantes da
ocorrência da patologia. Programas de prevenção eficazes e protocolos clínicos
adequados para a diminuição dos custos com a investigação da doença baseados no
conhecimento da epidemiologia da DRGE no nosso meio, precisam ser
desenvolvidos.
Atenção adequada aos indivíduos com relato de sintomas psicológicos e com
sobrepeso/obesidade, particularmente tratando-se de mulheres com menos
escolaridade, constitui-se em importante estratégia para a prevenção da DRGE.
Apesar da haver ampla publicação sobre este tema, a maioria dos estudos utiliza
metodologia transversal e é baseada em serviços de saúde, o que superestima a
prevalência real do desfecho na população. Uma vez que ainda persistem
controvérsias sobre os fatores de risco para DRGE, seria recomendável investir
em investigações com desenhos mais robustos, como os estudos de casos e
controles e coortes.