O Professor José Fernandes Pontes e a Medicina sociopsicossomática
IN MEMORIAM
O Professor José Fernandes Pontes e a Medicina sociopsicossomática
Nos idos de 1947 o Professor José Fernandes Pontes, em sua Tese de Livre-
Docência, escrevia que em muitas alterações gastrointestinais, a eclosão e/ou
surgimento de sintomas não estavam na dependência, apenas, de fatores
microbianos ou parasitários, mas sofriam uma determinação significativa de
fatores emocionais.
É importante destacar que tais afirmações datam de 1947, o que demonstra o
pioneirismo e a coragem intelectual deste enunciado. Note-se que a American
Psychosomatic Association havia sido fundada poucos anos antes e a Associação
Brasileira de Medicina Psicossomática "somente" surgiria em 1964, tendo o Prof.
Pontes como um de seus fundadores e, em momento posterior, seu Presidente.
Sua vida profissional encarna e representa a história da Medicina
Psicossomática, naquilo que mais a caracteriza: a pesquisa e a prática da
interdisciplinaridade e das conexões sociopsicossomáticas no processo saúde-
doença.
O ano de 1947 foi o anúncio de uma convicção: a promoção de saúde deveria ser
pensada e praticada em uma perspectiva biopsicossocial ou sociopsicossomática.
Desta forma, inicia no recém fundado Serviço de Gastroenterologia do Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 1957, a
construção de trabalho multidisciplinar que congregava médicos (inclusive
residentes), psicanalistas, entre outros profissionais. Este serviço tinha como
escopo prestar assistência integral aos pacientes, o que foi posteriormente
desenvolvido e consolidado no Instituto de Gastroenterologia de São Paulo/
Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas de Gastroenterologia - IGESP/
IBEPEGE fundados pelo Prof. Pontes.
Foi um momento caracterizado por muitas descobertas e constatações, com a
inclusão da Psicanálise no raciocínio clínico, o que permitiu o desenvolvimento
de uma postura diferenciada frente ao paciente, sem deixar de lado os
instrumentos de avaliação clínica como o palpar, percutir e auscultar. O ouvir
assume lugar privilegiado, levando em consideração a associação de idéias, a
história de vida, seus aspectos emocionais e manifestações inconscientes; a
forma de ser, sentir e reagir de uma pessoa foi incluída nesse raciocínio
clínico.
Outra influência importante foi a da Medicina Antropológica de Lain Entralgo e
Von Weizsåcker. Esta escola propõe que o estudo da vida e portanto, do processo
de adoecer, deve incluir dupla determinação: uma de ordem biológica e outra de
ordem biográfica. Ou seja, que na compreensão mais ampla e completa do processo
saúde-doença devem ser incorporados ao pensamento clínico aspectos relacionados
à biologia e a história de vida do paciente.
Fundamentado em sólida formação médica, Prof. Pontes pôde acrescentar ao
raciocínio biofisicoquímico (como gostava de dizer) de medicina voltada
exclusivamente para uma ciência do corpo, um conjunto de conhecimentos advindos
da Psicanálise e da Medicina Antropológica. Sob esta perspectiva de observação
pôde perceber que o adoecer não era um acontecimento casual na vida de uma
pessoa, mas que tinha sentido, que podia ser percebido no discurso dos
pacientes, no relato de suas vidas, revelando significados, até então ocultos,
que estavam inscritos na sua biografia. Poderoso instrumento semiológico foi
então desenvolvido para esta observação a anamnese biográfica.
Importante frisar que o Prof. Pontes manteve-se na prática da Clínica Médica e
da Gastroenterologia e construiu seu conhecimento a partir desta experiência.
Diferentemente de outros nomes importantes para a Psicossomática no Brasil, não
se afastou da atividade, vale lembrar que dos seis primeiros presidentes que a
Associação Brasileira de Medicina Psicossomática apenas o Prof. Pontes manteve-
se fiel a ela, o que o colocava em posição privilegiada de observação na
interação mente-corpo. Os doentes que o procuravam apresentavam-se com queixas
predominantemente orgânicas. Uma história médica minuciosamente colhida, a
atenção à vida mental e aos aspectos psicossociais, seu acompanhamento clínico
(muitos deles em análise) permitiu a observação de forma bastante expressiva da
integração psicossomática. Manteve-se na Clínica Médica, incluiu a Psicanálise
como referencial de compreensão da pessoa e de seu processo de adoecer, mas não
reduziu a Psicossomática à Psicanálise.
Dentro destes princípios de assistência integral aos pacientes, constrói o
IGESP/IBEPEGE, junto a outros colegas, que se torna pólo formador de
profissionais e de construção de conhecimento na Gastroenterologia e na
Psicossomática, que no seu entendimento, eram indissociáveis.
Nos cursos de pós-graduação em Gastroenterologia especialização e mestrado
a disciplina de Psicossomática era obrigatória e o enfoque a ela dado era tão
proeminente, que se transformou em curso aberto a todos os profissionais de
saúde; tornou-se, assim, espaço importante para a formação de abordagem
Psicossomática, inicialmente com 1 ano e a seguir, 2 anos de duração. As aulas,
seminários, supervisões de atendimento, discussões de casos clínicos, se
constituíam em exercícios de ensino e prática multi e interdisciplinares.
Esta trajetória, aqui muito sumarizada, sinaliza o porquê da mudança posterior
da denominação do curso de Psicossomática do IBEPEGE: um conjunto de
conhecimentos foi assimilado, os fundamentos básicos permaneciam, mas outros
saberes foram incorporados, progressivamente. Esta evolução não se evidenciava
no título original do curso e não mais transmitia a concepção que fora
construída, da atenção integral aos pacientes e familiares. Num sábado, em
reunião habitual do grupo de Psicossomática que se realizava em sua residência,
em atmosfera impregnada por sua imensa biblioteca, Prof. Pontes fez uma
pergunta, que na verdade era uma comunicação: "Estou pensando em denominar o
nosso curso de Abordagem Sociopsicossomática, o que vocês acham?". Era fácil
concordar, já que há muito falávamos de uma forma de compreensão e intervenção
biopsicossocial no processo saúde-doença. Daí a inclusão do elemento "Sócio" à
Psicossomática.
É necessário destacar que este grande edifício de conhecimentos que o Prof.
Pontes denominou de Abordagem Sociopsicossomática foi construído a partir da
prática, de histórias clínicas minuciosamente colhidas e avaliadas, segundo as
necessidades de investigação que incluía instrumentos laboratoriais e
tecnológicos da Medicina, integrado aos aspectos psicossociais. Parte desta
experiência está relatada na revista Arquivos de Gastroenterologia, nas
Discussões de Observações Clínicas do IBEPEGE, além de outros artigos ali
publicados.
Prof. Pontes sempre impressionou por sua enorme disponibilidade e capacidade de
ensinar. Foram inúmeras as aulas e conferências que proferiu, vale destacar sua
Conferência Magna no XIII Congresso Panamericano de Gastroenterologia que se
realizou em Buenos Aires, em 1973 e que tinha como título: A integração dos
sintomas nos planos somático e psicoemocional. Participou de forma bastante
ativa, enquanto lhe foi possível, de todos os congressos da Associação
Brasileira de Medicina Psicossomática, onde foi homenageado inúmeras vezes.
Ministrou uma aula histórica, em um dos Congressos, munido apenas de uma lousa
e giz, mas que galvanizou a atenção da enorme platéia presente, não só pela
excelência da didática e capacidade de transmissão do conhecimento, mas também,
e principalmente, pelo conteúdo clínico e humanístico. Grande parte do conteúdo
desta aula está presente no capítulo: Medicina sociopsicossomática em
Gastroenterologia do Livro Gastroenterologia Clínica, de Renato Dani e Luiz de
Paula Castro.
No exercício da docência fazia a distinção entre o mestre e o professor, a ele
bastante pertinente. Isto é retratado no prefácio que escreveu para a 4ª edição
do livro A medicina da pessoa de Danilo Perestrello: "Professor informa e o
Mestre faz aprender; quantos dele se aproximaram sabem que, além de ensinar,
sempre tem despertado nas novas gerações o amor ao trabalho sistematizado, o
espírito de observação (...) a atitude de questionar ' digo eu - de rigorosa
observação do paciente".
Falava de Perestrello, mas dizia de si mesmo. E este foi o seu legado.
Avelino Luiz Rodrigues*
* Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo.