Teste respiratório da 13C-metacetina na doença hepática crônica pelo vírus C
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Diferentes testes têm sido empregados no estudo da função hepática e na
avaliação das alterações estruturais das doenças hepáticas crônicas(1, 9, 12,
14). No entanto, são limitados ao que se propõem, visto que a função hepática é
medida complexa que envolve síntese, metabolismo, estoque e secreção de
substâncias para sangue e/ou bile, detoxificação de xenobióticos, como algumas
das importantes funções do fígado. Isso explica a dificuldade de se obter um
teste único para medidas dessas diferentes vias metabólicas.
Na tentativa de vencer essas limitações, vários testes dinâmicos explorando
determinada função específica do fígado, têm sido propostos na última década. O
princípio básico desses testes é fundamentado na administração de uma dada
substância exógena, que é, principalmente ou quase exclusivamente, metabolizada
pelo fígado, permitindo a determinação da capacidade do órgão em metabolizar e
eliminar tal substância, refletindo a chamada massa funcional hepática(1, 3,
9).
Os testes respiratórios com diferentes substratos exógenos têm sido utilizados
com esse fim e têm as vantagens de serem não-invasivos, de fácil execução e
baixa ou nenhuma toxicidade(1, 9). Dentre os substratos utilizados, a
metacetina marcada com carbono 13 (13C-metacetina), tem sido empregada nas
doenças hepáticas crônicas(1, 6, 8, 9, 13), particularmente em portadores de
cirrose hepática e de hepatite crônica C(2, 3, 7, 10, 11). Essa substância
seria rapidamente absorvida no duodeno e metabolizada pelo sistema microssomal
hepático, dependente do citocromo P450. Nos microssomos a metacetina sofre uma
O-dealquilação em sua estrutura, sendo convertida em acetaminofem e 13CO2, que
será medido no ar expirado, traduzindo a capacidade das células hepáticas em
metabolizar a substância(15, 16). A metacetina apresenta vantagens sobre outros
substratos porque, além de se correlacionar com a capacidade funcional do
fígado, tem rápida incorporação e metabolização pelo fígado, juntamente com a
falta de toxicidade conhecida nas doses habitualmente empregadas(6, 8, 13).
Neste estudo, avaliando pacientes em diferentes fases da doença hepática
crônica causada pelo vírus da hepatite C, procurou-se correlacionar o teste
respiratório da 13C-metacetina (TRM) com os parâmetros histológicos de estádio
e de atividade da doença e com o estado funcional hepático.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Foram incluídos pacientes consecutivos, de ambos os sexos, com idades entre 18
e 65 anos, com hepatite crônica pelo vírus C, diagnosticada através da detecção
do anticorpo anti-HCV, por método imunoenzimático de ELISA de terceira geração
(Abbott Laboratories®, IMX), confirmado pela pesquisa do HCV-RNA através de
técnica de PCR, utilizando kit comercial (Amplicor-Roche Diagnostics®).
Foram excluídos do estudo pacientes com hemorragia digestiva nos últimos 60
dias, co-infecção pelos vírus da hepatite B ou HIV, doença renal, pulmonar ou
tireoidiana, em uso de medicamentos indutores da atividade do citocromo P450
(como corticóides, anticonvulsivantes e cimetidina) e consumo ativo de bebida
alcoólica ou uso crônico prévio maior que 40 g/dia.
Esses pacientes foram submetidos a biopsia hepática percutânea na mesma época
da realização do teste respiratório. Na avaliação histológica, os fragmentos da
biopsia foram corados pela hematoxilina-eosina, reticulina e tricrômio de
Masson e, em seguida, analisados por um único patologista, que não tinha
qualquer informação prévia a respeito dos casos. A avaliação histológica foi
composta pela análise semiquantitativa do grau de desarranjo estrutural e de
atividade necroinflamatória, de acordo com os critérios propostos pela
Sociedade Brasileira de Patologia e pela Sociedade Brasileira de Hepatologia
(4). Pacientes com cirrose hepática e ascite, encefalopatia e/ou icterícia
foram classificados como cirrose descompensada.
Teste respiratório da 13C-metacetina (TRM)
Após jejum de 12 horas, foram oferecidos 75 mg de 13C-metacetina, via oral. Em
seguida, amostras de ar expirado foram coletadas em intervalos de 10 minutos na
primeira e 20 minutos na segunda hora e o 13C do ar expirado foi quantificado
através de espectrometria infravermelha não dispersiva em aparelho IRIS-Wagner
Analysen Techinik®, Alemanha. Foram calculados o acréscimo do 13CO2 na
respiração na forma de "delta over baseline" (DOB) e o percentual de
recuperação cumulativa do 13CO2 aos 40 (teste respiratório da 13C-metacetina 40
min) e aos 120 minutos (teste respiratório da 13C-metacetina 120 min)(10, 11).
Análise estatística
A correlação entre dados semiquantitativos foi feita pelo teste de correlação
não-paramétrica de Spearman e a comparação entre os grupos foi feita de acordo
com teste de Kruskal-Wallis, complementado pelo teste de Dunn(5).
Utilizou-se a construção de curva ROC ("receiver operator characteristic") para
avaliação do poder discriminativo de cada variável(17). Em todas as análises
estatísticas considerou-se 0,05 (5%) o nível de significância.
O protocolo deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do
Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo, SP, e todos os
pacientes deram seu consentimento por escrito, após esclarecimentos sobre o
estudo.
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo 78 pacientes com hepatite crônica pelo vírus C.
Dentre os 71 pacientes biopsiados, 11 (15,5%) não apresentavam fibrose à
biopsia (F = 0); 40 (57%) tinham algum grau de fibrose (20 = F1, 9 = F2 e 11 =
F3) e em 20 (28%) pacientes foi feito diagnóstico de fígado cirrótico (F4).
Sete outros pacientes com cirrose hepática apresentavam sinais de
descompensação hepatocelular e foram incluídos no grupo com cirrose
descompensada.
Como grupo controle, foram estudados 13 indivíduos sem doença hepática,
clinicamente saudáveis, com idade e gênero semelhantes a dos pacientes
portadores de hepatite C crônica.
Inicialmente foi feita a correlação entre os resultados dos diferentes
parâmetros do teste respiratório da 13C-metacetina com a avaliação histológica
do estádio e da atividade necroinflamatória da doença nos 71 pacientes
biopsiados. Apenas a alteração estrutural mostrou correlacionar-se com os
parâmetros do teste respiratório da 13C-metacetina. Entre esses, o melhor
parâmetro a correlacionar-se com o estádio da doença foi o teste respiratório
da 13C-metacetina 120 min, que apresentou índice de rS = -0,478; P <0,001
(Tabela_1).
Quando os pacientes foram agrupados em controle, hepatite crônica (estádios 0 a
3), cirrose e cirrose descompensada, o teste respiratório da 13C-metacetina,
avaliado pela recuperação cumulativa aos 120 minutos, não foi diferente entre o
grupo controle e aqueles com hepatite crônica. Já os pacientes cirróticos
apresentaram diferenças significativas nas médias em relação aos dois grupos
anteriores. Os pacientes com cirrose hepática descompensada apresentaram
valores médios inferiores aos compensados, mas essa diferença não atingiu
significância estatística (P = 0,106, Gráfico_1, Tabela_2).
Para avaliar a capacidade do teste respiratório da 13C-metacetina em detectar
cirrose na doença hepática C crônica, novamente a dose acumulada aos 120 min
foi o melhor parâmetro discriminante com AUC = 0,853; P <0,001 (IC 95% = 0,757-
0,948) mostrando sensibilidade de 81% e especificidade de 77% na identificação
do estádio avançado ( Tabela_3).
DISCUSSÃO
Os testes respiratórios utilizando carbono marcado (13C ou 14C) são medidas
quantitativas que permitem uma avaliação dinâmica da massa hepática funcional,
através da medida da capacidade de metabolização e de eliminação de determinada
substância exógena de degradação hepática.
A metacetina tem sido empregada com esse fim e preferida às outras substâncias,
dada sua rápida incorporação pelo fígado e falta de toxidade conhecida nas
doses habitualmente utilizadas. Trata-se de substância cuja metabolização
ocorre, quase exclusivamente, através do sistema de enzimas microssomais
hepáticas dependentes do citocromo P450, onde sofre uma O-dealquilação em sua
estrutura, sendo convertida em acetaminofem e 13CO2, que será medido no ar
expirado, traduzindo a capacidade e integridade das células hepáticas em
metabolizar tal substância. Assim, as alterações observadas nos valores do
teste respiratório da 13C-metacetina nesses pacientes poderiam traduzir maior
atividade oxidativa desse sistema microssomal, ou alternativamente perda de
massa hepática funcionante e shunts circulatórios, com conseqüente redução da
quantidade de CYP2E1 disponível para a degradação da metacetina exógena.
Na hepatite crônica pelo vírus C o teste respiratório da 13C-metacetina tem se
mostrado correlacionado com a classificação funcional de Child modificado por
Pugh, mostrando ser útil na avaliação funcional hepática. Em estudo recente,
esse teste foi avaliado no pré e no pós-transplante de fígado(11) e, além de
confirmar sua correlação com função hepatocelular, demonstrou-se que na fase
anepática do transplante, a metabolização da metacetina é praticamente nula,
confirmando sua alta especificidade na avaliação hepática.
No presente trabalho pôde-se observar que nos casos de hepatite C, os
diferentes parâmetros do TRM apresentaram correlação significante com o grau de
desarranjo estrutural do fígado, mas não com a atividade necroinflamatória da
doença. Além disso, apenas os pacientes com cirrose hepática apresentaram
valores do teste significativamente diferentes dos observados para o grupo
controle e foram capazes de os distinguir dos portadores de hepatite crônica
com fibrose menos intensa. Esses dados sugerem que as alterações do teste da
metacetina acompanham a progressão da fibrose hepática, particularmente na
doença avançada, mesmo na situação de função hepatocelular mantida, sugerindo
que o TRM não traduza apenas medida de massa funcional hepática, mas que ele
seja útil também como marcador não-invasivo do grau de fibrose hepática na
hepatite crônica C, mesmo antes de deterioração da função hepatocelular.
Já entre aqueles indivíduos com fibrose avançada, porém com diferentes estados
funcionais do fígado, o teste mostra nítida tendência a comportar-se
diferentemente entre os indivíduos compensados e aqueles descompensados, onde
se somam outros fatores que devam interferir na dinâmica do TRM, principalmente
com o aparecimento de shunts da circulação portossistêmica, que interferem com
a perfusão hepática e dificultam a metabolização da droga pelas células
efetoras. Nesse sentido, a ausência de diferenciação do TRM entre as formas
compensadas e descompensadas da doença só podem ser creditadas ao pequeno
número de pacientes descompensados incluídos neste estudo, uma vez que é clara
a tendência de valores mais rebaixados do teste nesse grupo de pacientes quando
comparados aos cirróticos compensados.
Por outro lado, enquanto os estudos iniciais utilizaram a medida do DOB como
parâmetro diagnóstico do TRM(6, 8, 13), os trabalhos mais recentes têm
empregado a recuperação do 13C na unidade de tempo como um parâmetro mais
sensível nessa avaliação funcional(3, 7, 11). De fato, no presente trabalho, o
percentual de recuperação do 13CO2 aos 40 e aos 120 minutos apresentaram melhor
especificidade e sensibilidade diagnóstica que o DOB aos 20 minutos. Além
disso, a medida da produção de 13CO2 acima da produção basal de CO2 sofre maior
influência das características metabólicas do indivíduo. Na comparação entre os
acumulados de 40 e 120 minutos, esse último além de mostrar melhor correlação
com alteração estrutural histológica, também apresentou melhor desempenho
diagnóstico na identificação dos pacientes com cirrose. Embora o teste
acumulado aos 40 minutos tenha a vantagem de permitir um exame mais rápido e
menos cansativo para o paciente do que teste que se prolongue por mais 1 h e 20
min, a superioridade diagnóstica do acumulado de 120 minutos deve ser o
parâmetro preferido para melhor avaliação não-invasiva funcional do parênquima
hepático dos doentes com hepatite C crônica.
AGRADECIMENTO
Trabalho parcialmente financiado por projeto FAPESP 02/05260-6.