Prevalência de infecção pelo vírus da hepatite C em pacientes com diabetes
melito tipo 2
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLESINTRODUÇÃO
O vírus da hepatite C (VHC) é uma das principais causas de doença hepática
crônica em todo o mundo e a indicação mais freqüente de transplante hepático na
atualidade. Estima-se que existam hoje, pelo menos, 170 milhões de portadores
do VHC e que parte destes irá desenvolver complicações como cirrose e
hepatocarcinoma. A infecção pelo VHC tem sido implicada na gênese de algumas
doenças extra-hepáticas como a crioglobulinemia mista essencial, porfiria
cutânea tardia esporádica, doença da tireóide e glomerulonefrite(8).
Mais recentemente, estudos epidemiológicos sugerem que o diabetes melito (DM)
possa representar também manifestação da infecção crônica pelo VHC(12, 13).
Vários autores relataram prevalência aumentada de infecção pelo VHC em
diabéticos tipo 2, em contraste com a população geral(5, 15, 18, 19). A
possível associação entre VHC e DM também é sugerida por estudos transversais
que encontraram prevalência aumentada de DM tipo 2 em pacientes com hepatite
crônica C, quando comparada à observada em pacientes com outras formas de
doença hepática crônica, mesmo na ausência de cirrose(1, 2, 6, 9, 11, 13).
Embora sua patogênese não esteja definitivamente estabelecida, o encontro de
índices aumentados de resistência insulínica em pacientes transplantados
hepáticos portadores de VHC pode representar a base patogênica da associação
VHC e DM tipo 2(3).
Com o propósito de verificar esta questão em nossa população, que apresenta
perfil genético e fatores ambientais próprios, desenvolveu-se estudo
transversal para determinar a prevalência de infecção pelo VHC em adultos
diabéticos.
MATERIAL E MÉTODOS
No período de agosto de 2001 a março de 2002 foram avaliados, consecutivamente,
145 adultos (idade >18 anos) com DM tipo 2 e 104 adultos com tipo 1, em
acompanhamento regular no Ambulatório de Diabetes do Serviço de Endocrinologia
e Metabologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná ' HC-
UFPR, Curitiba, PR, sem investigação prévia para hepatite C. Os pacientes
incluídos no estudo foram entrevistados e tiveram seus prontuários médicos
revisados. Os seguintes dados foram coletados: idade atual, sexo, cor, tempo de
diagnóstico do DM e exposição prévia a fatores de risco para infecção pelo VHC.
Os pacientes selecionados submeteram-se a determinação dos valores séricos da
alanina aminotransferase (ALT; homens: 10 ' 40 UI/L; mulheres 7 ' 35 UI/L) e à
pesquisa de anticorpos contra o VHC (anti-VHC) por método de enzimoimunoensaio
(ELISA) de quarta geração (ABBOTT Murex Anti-HCV 4.0, Abbott Diagnostic,
Chicago, IL, EUA). Todos os resultados positivos foram repetidos, sendo
considerados positivos apenas os que persistiram reagentes.
Como grupo controle foram utilizados 16.720 doadores de sangue atendidos no
Banco de Sangue do HC-UFPR no período de janeiro a dezembro de 2002. Cabe
ressaltar que o grupo controle representado por doadores de sangue não é uma
população sabidamente diabética, visto que indivíduos com diagnóstico prévio de
diabetes não são habitualmente aceitos para doação de sangue. O teste empregado
para detecção anti-VHC foi o mesmo utilizado nos pacientes diabéticos. Todos os
doadores com testes reagentes para o anti-VHC tiveram suas amostras repetidas
em duplicatas, sendo considerados positivos apenas os que persistiram
reagentes. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres
Humanos do HC-UFPR.
As variáveis categóricas foram expressas em percentagens e as contínuas em
média ± desvio padrão ou mediana (variação), de acordo com sua distribuição. Na
comparação do grupo de pacientes com DM tipo 1 e tipo 2 foram empregados os
seguintes testes estatísticos: teste t de Student, teste de Mann-Whitney e
teste Qui-quadrado de Pearson. Na comparação da prevalência de infecção pelo
VHC entre portadores de DM tipo 2 e doadores de sangue empregou-se teste Qui-
quadrado de Pearson. Para os testes aplicados adotou-se nível de significância
de 5% (P <0,05).
RESULTADOS
As principais características dos pacientes diabéticos tipos 1 e 2 avaliados
estão dispostas na Tabela_1. Nos dois grupos houve predomínio de indivíduos de
cor branca e do sexo feminino, sendo que diabéticos tipo 2 apresentaram média
de idade superior aos do tipo 1 (55,25 ± 11,24 vs. 24,32 ± 7,12; P <0,01). A
prevalência de anti-VHC nos diabéticos tipo 2 foi maior que a do grupo tipo 1
(2% vs. 0%, P = 0,14), embora não se tenha alcançado significância estatística,
possivelmente pelo tamanho reduzido da amostra. A mediana do nível sérico de
ALT dos pacientes com DM tipo 2 foi significativamente maior à encontrada no
grupo tipo 1. Em relação à exposição prévia a fatores de risco para hepatite C
os dados estavam disponíveis nos 104 pacientes com DM tipo 1 e em 142 dos 145
do tipo 2. Houve tendência de maior ocorrência de fator de risco no grupo tipo
2, embora com nível de significância limítrofe.
Ao se considerar o grupo total de diabéticos (n = 249) e comparar os 3
pacientes anti-VHC (+) com os com 246 anti-VHC (-), não se observou diferença
estatisticamente significante em relação à idade média, raça, tempo de evolução
do DM, taxas de ALT e exposição a fatores de risco. Quando se analisou apenas o
grupo com DM tipo 2 (n = 145) constatou-se que os 3 pacientes anti-VHC (+) e os
142 anti-VHC (-) se comportaram de maneira semelhante em relação à idade (P =
0,45), distribuição por sexo (P = 0,21) e raça (P = 0,61), tempo de evolução do
DM (P = 0,65) e exposição a fatores de risco (P = 0,33). A única variável na
qual se observou diferença estatisticamente significante entre os diabéticos
tipo 2 anti-VHC (+) e os anti-VHC (-) foi a mediana da taxa sérica de ALT (64
UI/L vs. 18 UI/L, P = 0 <0,01).
A positividade ao anti-VHC nos doadores de sangue na população de Curitiba no
mesmo período em que foi realizado o estudo, foi de 0,65%. A prevalência de
infecção pelo VHC encontrada nos 145 pacientes com DM tipo 2 foi
estatisticamente superior aos valores obtidos nos doadores de sangue (2% vs.
0,65%; P = 0,04; OR 3,2; 95% IC = 1,00 -10,21). Cabe ressaltar que com esta
amostra obteve-se poder de teste de 75%, considerando um erro do tipo I de 5%.
DISCUSSÃO
O presente estudo encontrou prevalência aumentada de infecção pelo VHC em
pacientes com DM tipo 2, se comparada à população adulta saudável de Curitiba,
representada pelos doadores de sangue. A prevalência de anti-VHC neste grupo
está de acordo com os dados de inquérito nacional conduzido pela Sociedade
Brasileira de Hepatologia e recentemente publicado(7), no qual se encontrou
prevalência de anticorpos para hepatite C em 0,65% de 377 066 doadores de
sangue testados na região sul do país.
O achado de prevalência aumentada da infecção pelo VHC em diabéticos tipo 2 em
nosso meio corrobora as observações de outros pesquisadores que encontraram
índices variando de 3,09% até 28%, sendo que os maiores índices são encontrados
quando se analisam particularmente os diabéticos com elevação das
aminotransferases(5, 14, 17, 18, 19). Neste estudo os pacientes com DM tipo 2
apresentaram taxas mais elevadas de ALT que os diabéticos tipo 1 (P <0,01).
Diversos fatores podem contribuir para a elevação das taxas de ALT em pacientes
com DM tipo 2, independentemente da presença de VHC, tais como obesidade e
esteatose hepática, condições que podem acompanhar os quadros de resistência
insulínica.
Ao se postular sobre os fatores capazes de explicar a associação entre infecção
pelo VHC e DM, uma das hipóteses aventadas é que os pacientes com DM são
freqüentemente expostos a situações de risco para contrair hepatite C durante
as hospitalizações. Investigando tal hipótese RUDONI et al.(17) encontraram
prevalência de 3,09% de anti-VHC (+) em 259 diabéticos, não observando
diferença na freqüência de exposição a possíveis situações de risco como tipo
de tratamento, hospitalizações prévias em unidades de tratamento de diabetes,
uso de medidores de glicemia por punção digital entre os pacientes anti-VHC
positivos e os negativos. Esses autores sugerem que tais práticas não são
relevantes na transmissão nosocomial do VHC nessa população. No presente
estudo, embora com amostra reduzida, não se encontrou diferença
estatisticamente significante na exposição a fatores de risco entre pacientes
diabéticos tipo 2 anti-VHC positivos e negativos.
Outra hipótese mais atraente para elucidar a associação entre VHC e DM seria a
possibilidade da infecção pelo VHC atuar como fator adicional na instalação de
DM tipo 2 em indivíduos com outros fatores de risco reconhecidos para essa
enfermidade. METHA et al.(13) acompanharam prospectivamente 1 084 adultos, dos
quais 548 desenvolveram DM ao longo de 9 anos de seguimento. Os pacientes foram
categorizados como de baixo e alto risco para DM, de acordo com idade e índice
de massa corporal. Entre os pacientes de alto risco para DM, os com infecção
pelo VHC estavam 11 vezes mais predispostos a desenvolver DM do que aqueles sem
a infecção (risco relativo 11,58; 95% IC: 1,139-96,6). Esses dados preliminares
sugerem que a infecção pelo VHC serviria como fator de risco adicional para
instalação de DM tipo 2 em pessoas com outros fatores de risco estabelecidos
para diabetes. Estudos recentes(3, 16, 20) têm documentado a ocorrência de
resistência insulínica em portadores do VHC, mesmo na ausência de doença
hepática avançada. A instalação de resistência insulínica poderia ser elo de
ligação entre a infecção viral e o desenvolvimento de DM tipo 2 em indivíduos
com outros fatores de risco presentes. O mecanismo pelo qual a infecção pelo
VHC induz à resistência insulínica tem sido alvo de intensa investigação.
Algumas das hipóteses aventadas incluem a ação de citocinas, que induzem à
resistência insulínica como a interleucina-6 e fator de necrose tumoral, que
habitualmente se elevam na presença de inflamação desencadeada pelo VHC e, mais
recentemente, a descoberta que a infecção pelo VHC induz à expressão dos genes
de uma proteína que desempenha papel central na via de sinalização da insulina
(4, 10, 21).
Este estudo apresenta limitações visto que aborda apenas um aspecto da possível
associação entre VHC e DM, além de trabalhar com população de tamanho limitado.
Entretanto, os achados positivos sinalizam como estímulo para que se estude
mais profundamente a inter-relação entre a infecção pelo VHC e DM na nossa
população. Considerando que além do presente estudo, vários outros autores têm
observado prevalência aumentada de infecção pelo VHC em diabéticos tipo 2, tal
achado deve ser lembrado na avaliação dessa população, particularmente na
presença de alteração das enzimas hepáticas. Por outro lado, os dados recentes
que associam a infecção pelo VHC a maior risco de resistência insulínica
alertam para importância de controle de fatores de risco sabidamente conhecidos
para o DM em portadores do VHC.