A relação do uso crônico de fenobarbital com áreas potencialmente pré-
neoplásicas em fígado de ratos
GASTROENTEROLOGIA EXPERIMENTALEXPERIMENTAL GASTROENTEROLOGYINTRODUÇÃO
A carcinogênese é um processo dinâmico que envolve os estágios de iniciação,
promoção e progressão e nesse processo as alterações gênicas são acompanhadas
de modificações no fenótipo das células(5, 7, 8, 9, 10, 21, 23).
Agentes químicos iniciadores induzem alterações celulares na interação com o
ácido desoxirribonucléico (DNA) da célula-alvo, o que leva a uma alteração
celular irreversível por meio de ligações covalentes, distorção ou quebra da
molécula tornando, assim, a célula iniciada. Essa célula tem seu genoma
alterado, mas sem expressão fenotípica. A eficiência da iniciação depende da
capacidade da célula de se dividir após a interação com o agente iniciador.
Assim, a célula permanece, geralmente, em estado de latência.
Agentes químicos promotores proporcionam a expressão de alterações neoplásicas
em células iniciadas, mediante a interação com receptores celulares
específicos, interferindo na transdução e apoptose. Eles estimulam a
proliferação celular e não alteram o DNA. Os agentes promotores são abundantes
no meio ambiente, sua natureza química inclui polipeptídios, proteínas
circulantes, hormônios esteróides, ésteres de forbol, fenóis e drogas como o
fenobarbital.
O envelhecimento, a dieta, fatores hormonais, ambientais e tipo celular são
fatores moduladores da atuação dos agentes promotores, bem como do estágio da
promoção(3, 5).
O fenobarbital é um barbitúrico de ação prolongada, de administração oral,
parenteral e retal, indicado como hipnótico ou sedativo no tratamento de
insônia, sedação pré-operatória, manuseio de emergências convulsivas tônico-
clônicas generalizadas e focais. Esse fármaco mostra-se um importante agente
promotor hepatocarcinogênico em fígado de ratos, além de ser não-genotóxico,
órgão-específico e dose-dependente, na presença de elementos indutores
iniciadores da carcinogênese, administrados previamente, embora o mecanismo de
sua ação ainda não esteja bem elucidado(6, 7, 8, 9, 13, 15, 16, 18, 19, 30).
Postula-se que a ação de promoção relaciona-se com a ruptura das junções "gap"
intercelulares com o que as células estão liberadas do controle de divisão,
permitindo uma proliferação celular descontrolada. Outras teorias apontam uma
resistência seletiva das células iniciadas à ação de compostos citotóxicos
inibidores da mitose, bem como a indução de crescimento adaptativo em resposta
às mudanças químicas e à capacidade de aumento do volume hepático ocupado nos
focos hepáticos alterados. A administração crônica de barbitúricos causa
aumento importante no conteúdo protéico e lipídico do retículo endoplasmático
liso hepatocitário, bem como na atividade da glucoronil-transferase e oxidases
contendo o citocromo P450 (família de enzimas de maior poder de catalisação nas
reações de biotransformação de drogas). O efeito indutor dessas enzimas resulta
em aumento da taxa de metabolismo de drogas exógenas e substâncias endógenas
(30).
Os modelos animais utilizam os estudos em ratos como forma de estimativa
qualitativa e quantitativa na demonstração in vivo do estabelecimento do risco
de câncer em humanos, mediante experimentos em que são tratados com agentes
iniciadores, promotores e progressores, envolvendo protocolos de iniciação-
promoção-progressão evidenciado pela relação entre as alterações pré-
neoplásicas e neoplásicas hepáticas e a idade do animal na fase de iniciação(5,
7, 22).
As alterações fenotípicas podem ser estudadas utilizando-se marcadores para a
detecção das lesões ocorridas nesse processo destacando-se entre eles o estudo
imunoistoquímico com glutationa S-transferase forma placentária (GSTP). Em
ratos idosos, após a administração de agentes hepatocarcinogênicos, detectaram-
se hepatócitos individualmente aberrantes, expressando GSTP e sugerindo que
essas células constituem uma população hepatocitária iniciada(5, 6, 7, 8, 9,
10, 16, 20, 21, 24, 25, 28).
Não se conhece a ação da administração crônica do fenobarbital em ratos com
mais de 24 meses de vida (ratos velhos), desde o nascimento, na ausência de
administração de agentes iniciadores, embora existam estudos até o oitavo mês
de vida(9, 16). Entretanto, é conhecida a ação do fenobarbital administrado
como indutor da carcinogênese em ratos de 12 e 36 meses de idade(4, 29).
A análise qualitativa, por meio da expressão de áreas GSTP positivas e de
outras alterações fenotípicas, é possível mediante estudos morfométricos em que
podem ser quantificadas as áreas de interesse no estudo do processo da
carcinogênese(1).
O presente estudo objetiva verificar a ação do uso de fenobarbital sobre o
fígado de ratos velhos (24 meses de idade), ministrado diária e cronicamente
desde o nascimento, sem a administração concomitante de agentes químicos
iniciadores da carcinogênese.
MATERIAL E MÉTODOS
Para o experimento, aprovado pelo comitê de ética em pesquisa animal da
Universidade de Munique, Alemanha, protocolo MT 95, usaram-se ratos machos
Wistar (Wistar AF/Hann) do biotério do Instituto de Patologia da Universidade
de Munique, mantidos em biotério climatizado, sob ritmo circadiano, abrigados
em gaiolas de cinco roedores.
A administração de 20 mg/kg de peso de fenobarbital a 0,05%, ocorreu desde o
nascimento até os 24 meses de idade, adicionado à dieta básica diária quando,
então, os animais foram submetidos a hepatectomia parcial de dois terços do
volume total hepático, conforme protocolo(2, 8, 12, 18, 21).
Os ratos foram divididos em dois diferentes grupos, a saber:
1. grupo controle: constituído por nove animais, que receberam dieta
padronizada (Altromin-R, Lage, BRD) e água à vontade, depois submetidos a
hepatectomia parcial de dois terços após 24 meses de administração diária
de dieta básica;
2. grupo tratado: constituído por 10 animais, que receberam dieta
padronizada (Altromin-R, Lage, BRD), a qual se adicionou fenobarbital e
água à vontade. Estes animais foram submetidos a hepatectomia parcial de
dois terços após 24 meses de administração diária de dieta básica,
acrescida de fenobarbital.
O grupo tratado, decorridos 24 meses, foi submetido a hepatectomia parcial de
dois terços(12), sendo retirados o lobo médio e o lobo direito, que foram
submetidos a exame histológico padronizado pela coloração de hematoxilina-
eosina (H-E) e imunológico pela técnica imunoistoquímica do complexo avidina-
biotina-peroxidase com anticorpo anti-GSTP(7, 8, 9, 11, 18, 24). Para posterior
estudo do fígado, os animais foram mantidos vivos, com dieta normal, até o
momento de sua morte espontânea.
Consideraram-se áreas GSTP positivas aquelas que estivessem constituídas por
cinco ou mais células com citoplasma e/ou núcleos evidentemente corados; não se
levaram em conta as que somente apresentassem núcleos ou citoplasma corados, as
que estivessem fracamente coradas e em que não se podia determinar o contorno
celular, bem como os hepatócitos isoladamente marcados(27) (Figura_1).
A análise quantitativa das áreas GSTP positivas ocorreu de forma integrada,
utilizando-se microscópio da marca Olympus BX40, acoplado a uma câmera de vídeo
JVC, e o programa computadorizado de Sistema de Análise de Imagem LEICA Q 500
MC.
Para os dados de número de áreas GSTP positivas e suas respectivas áreas, foram
calculados a mediana e os valores mínimo e máximo, uma vez que estas variáveis
apresentaram assimetria. A comparação entre os grupos foi realizada pelo teste
U de Mann-Whitney e confirmada pelo teste t de Student, realizado nos dados
submetidos a transformação logarítmica. O nível de significância adotado foi de
a= 0,05.
RESULTADOS
Os cortes examinados sob coloração de H-E não revelaram alterações fenotípicas
isoladas ou focais.
As áreas GSTP positivas caracterizaram-se histologicamente por serem múltiplas
áreas de coloração amarronzada no parênquima, envolvendo hepatócitos isolados
ou grupamentos focais com tamanhos variados e dispersamente distribuídos pelos
cortes histológicos, assim caracterizando áreas onde era evidente a
positividade da GSTP em núcleo e citoplasma, havendo áreas com contornos bem e
áreas com contornos mal definidos (Tabela_1).
Ao se compararem os dois grupos, pôde-se observar que o número mediano de áreas
GSTP positivas, apesar de ser nominalmente maior no grupo controle, não
apresentou significância estatística. Além disso, tanto a área total GSTP
positiva (TTAE), bem como o tamanho médio das áreas GSTP positivas (TMAE) não
apresentou diferença significativa entre os grupos.
Assim, os dados deste estudo revelam uma semelhança nas áreas GSTP positivas
observadas entre o grupo de ratos controle e o grupo de ratos tratados com
fenobarbital.
DISCUSSÃO
Os aspectos da promoção da carcinogênese química revelaram a presença de áreas
focais características pré-neoplásicas tanto em ratos não tratados com
fenobarbital, quanto em ratos tratados com essa droga desde o nascimento. Os
ratos controle estiveram, por maior tempo, expostos à ação ambiental de
possíveis agentes cancerígenos, o que poderia ter contribuído para o
desenvolvimento de áreas focais iniciadas, de forma espontânea, positivas para
o GSTP. Essas áreas, quando tratadas com fenobarbital, tendem a desenvolver-se
e a tornarem-se áreas pré-neoplásicas focais, de características irreversíveis.
A administração crônica de fenobarbital causa inibição da mitose no hepatócito,
porém sem qualquer citotoxicidade(8, 9). É possível que a ocorrência espontânea
de células iniciadas também seja similar à ação de agentes promotores(7, 8).
Áreas pré-neoplásicas, expressando GSTP, podem ser encontradas em ratos não
tratados com cancerígenos e o número de lesões aumenta com a idade. Ratos
velhos são mais suscetíveis à ação carcinogênica da administração de agentes
promotores(8, 17), embora haja contradição entre os autores(11). Em trabalhos
prévios, após utilização de protocolo de iniciação da carcinogênese, a
atividade de GSTP é significativamente aumentada em fígado de ratos púberes,
assim como em adultos, quando comparados com animais controle não submetidos a
processo de iniciação(10). Focos espontâneos aumentam com a idade e são mais
visíveis em ratos machos(20). De igual importância é a ocorrência de células
não iniciadas de forma espontânea como resposta a agentes promotores em
condições semelhantes(7).
A perda de células iniciadas, na ausência de agentes promotores, pode resultar
na remoção dessas células pela apoptose(7, 9, 13). Tanto a apoptose, quanto a
proliferação celular estão relacionadas ao desenvolvimento de focos pré-
neoplásicos e a inibição da apoptose pela ação de agentes promotores, incluindo
o fenobarbital, sugerem um papel crítico na promoção tumoral(26). A ocorrência
de neoplasias espontâneas em fígado de rato é muito rara e poderia depender da
participação de um agente promotor como o fenobarbital. Estudos recentes
revelam a estimulação do fator de crescimento TGF-beta em experimentos com
fenobarbital(14).
A expressão de GSTP pode indicar hepatócitos iniciados na carcinogênese de
fígado de ratos. Áreas pré-neoplásicas desenvolvem-se a partir de clone de uma
única célula iniciada(7, 9, 20). Campos de hepatócitos isolados, expressando
GSTP, têm sido detectados em ratos idosos, na administração de agentes
carcinogênicos, o que sugere possam constituir uma população de hepatócitos
possivelmente iniciados(7).
O crescimento clonal isolado de hepatócitos GSTP positivos, com a ação de um
promotor, confirma o potencial papel precursor das áreas pré-neoplásicas e é
evidência adicional do papel da GSTP como marcador de iniciação dos hepatócitos
(7, 20). A regeneração e o crescimento celular rápido tendem a apresentar
diminuição na adesividade celular, o que deve contribuir para a evolução do
processo neoplásico(2).
Em fígados de ratos, o fenobarbital mostra diminuição no índice de crescimento
de hepatócitos fora dos focos considerados pré-neoplásicos. Após administração
de fenobarbital por períodos curtos ocorre aumento de síntese de DNA e mitoses,
em áreas pré-neoplásicas. O mesmo não ocorre quando da administração crônica
dessa droga(8). O fenobarbital aumenta a síntese de DNA com uma hiperplasia
transitória, síntese de ácido ribonucléico (RNA), hipertrofia e proliferação do
retículo endoplasmático liso e atividade microssomal aumentada. Em grupos
experimentais submetidos a cancerígenos iniciadores, submetidos a dietas com
fenobarbital, há marcado aumento da carcinogênese hepática. Não existe, porém,
evidência clínica experimental de que o fenobarbital seja intrinsecamente
cancerígeno, sendo no entanto, reconhecidamente agente promotor da
carcinogênese(19).
CONCLUSÃO
O uso crônico de fenobarbital não alterou o número de áreas GSTP positivas.
Entretanto, os dados sugerem influência no tamanho médio de áreas GSTP
positivas, com conseqüente aumento da superfície GSTP positiva, sendo este
aumento provavelmente relacionado a maior capacidade evolutiva dessas lesões e
possível irreversibilidade das mesmas.