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BrBRCVHe0004-28032006000200015

BrBRCVHe0004-28032006000200015

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0004-2803
ano2006
Issue0002
Article number00015

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Tradução e adaptação cultural para o português do instrumento "The Bowel Disease Questionnaire", utilizado para a avaliação de doenças gastrointestinais funcionais EPIDEMOLOGIAEPIDEMOLOGYINTRODUÇÃO As doenças gastrointestinais funcionais (DGF) configuram um grupo de condições caracterizado por sintomas gastrointestinais crônicos que não podem ser explicados por alterações estruturais ou bioquímicas passíveis de identificação pelos testes atualmente disponíveis(6, 8). Tradicionalmente, essas doenças eram consideradas como diagnóstico de exclusão, entretanto, as duas últimas décadas foram marcadas pela realização de diversos estudos voltados para a caracterização dessas doenças, com vistas a contribuir para a elaboração de um diagnóstico positivo das doenças funcionais(15, 27).

Atualmente, as DGF são classificadas de acordo com os critérios de Roma(12), que permitiram a caracterização de um perfil para as mesmas e asseguraram aos pacientes que eles apresentam uma doença real e não apenas sintomas que resultam em investigações de resultados negativos(11). Sob a luz da epidemiologia, a classificação tornou mais comparáveis os estudos que adotam essas definições(36).

Essas doenças apresentam-se como importante problema de saúde pública por sua alta prevalência na população, sendo também responsáveis pela maior parte das queixas dos pacientes avaliados em clínicas e ambulatórios de gastroenterologia, além de interferir na qualidade de vida(1, 4, 10, 13, 16, 18, 22, 26, 34, 36, 44, 47) e resultar em aumento de custos para o sistema de saúde(43, 45).

Grande problema para a abordagem epidemiológica das doenças funcionais reside no fato de que essas não são caracterizadas por anormalidades objetivas mensuráveis, fazendo com que sua classificação seja baseada na sintomatologia (12).

TALLEY et al.(38), em 1989, desenvolveram um instrumento capaz de diferenciar três grandes grupos de indivíduos: a) pacientes com doenças funcionais, em particular a dispepsia funcional e a síndrome do intestino irritável, b) pacientes com doenças orgânicas e c) indivíduos saudáveis. O instrumento desenvolvido foi um questionário auto-aplicável que contempla uma série de sintomas gastrointestinais relevantes para a identificação de doenças funcionais, denominado "The Bowel Disease Questionnaire" (BDQ), previamente validado e que passou a ser amplamente utilizado em estudos de base populacional entre idosos, adultos e adolescentes(2, 3, 14, 23, 24, 25, 33, 38, 39, 40, 41, 42, 46).

LITERATURA Em epidemiologia, é crescente o interesse por questionários previamente validados para mensurar fatores de risco para doenças e agravos à saúde, exposições de interesse e desfechos multidimensionais, como a qualidade de vida (5, 32). Entretanto, nem sempre estão disponíveis em determinado contexto sociocultural instrumentos válidos para a aferição dos diversos aspectos ligados à saúde e à qualidade de vida. De acordo com GUILLEMIN et al.(17), para enfrentar este problema duas opções: desenvolver novo instrumento de aferição para ser aplicado na cultura alvo ou utilizar instrumento previamente desenvolvido em outra cultura. Entretanto, para a utilização de questionários validados em outras culturas, torna-se necessária uma abordagem sistemática do processo de tradução e adaptação transcultural destes instrumentos(17).

HERDMAN et al.(19) propõem um roteiro de investigação que envolve seis subtipos de equivalência, que devem ser sistematicamente considerados no processo de tradução e adaptação de um questionário: a) equivalência conceitual, b) equivalência de itens, c) equivalência semântica, d) equivalência operacional, e) equivalência de mensuração e f) equivalência funcional. Com base nesta proposição, o presente trabalho descreve os resultados da tradução e adaptação transcultural do BDQ, de forma a avaliar a pertinência de sua utilização no contexto sociocultural em nosso meio.

MATERIAIS E MÉTODOS Este estudo foi realizado em uma escola pública da rede federal de ensino do Rio de Janeiro. A população da série abrangeu escolares de 15 a 18 anos de idade regularmente matriculados nas turmas de ensino médio dessa escola.

O instrumento utilizado foi o BDQ(38), aplicado a 234 alunos do ensino médio da escola citada, no horário de aulas, sob supervisão da pesquisadora principal (M.T.A), em grupos de 20 a 30 adolescentes. Os alunos preenchiam separadamente o questionário e as possíveis dúvidas eram esclarecidas pela pesquisadora.

O BDQ(38) compreende opções de respostas dicotômicas e ordinais. O questionário começa com uma pergunta chave com resposta dicotômica (sim/não) sobre se o indivíduo apresentou "alguma dor na barriga". Se a resposta for positiva, serão feitas 19 perguntas adicionais para caracterizar esta dor. Posteriormente, seguem 21 questões sobre outros sintomas e hábitos intestinais. No final perguntas derivadas do "Psychosomatic Symptom Checklist", instrumento que fornece medida de somatização em que o entrevistado estima, através de uma escala de 0 a 4 pontos, com que freqüência 17 sintomas comuns ocorrem e o quanto eles o incomodam.

A avaliação da equivalência conceitual e de itens envolveu a discussão com um grupo de profissionais afeitos aos temas de saúde pública, gastroenterologia pediátrica e educação em saúde, formado por um médico epidemiologista, uma médica com especialização em História da Medicina, um médico com especialização em Educação em Saúde e uma especialista em Gastroenterologia Pediátrica. Nesta etapa discutiu-se a pertinência dos construtos abordados no questionário(38): a) dor abdominal e suas características, b) hábitos de evacuação, c) uso de medicamentos, d) procura por atendimento médico, e) uso de álcool e tabaco, f) interrupção das atividades diárias, g) história patológica pregressa e h) freqüência e grau de incômodo de determinados sintomas extra-intestinais.

A avaliação da equivalência semântica foi realizada em quatro etapas: a primeira consistiu na tradução do instrumento original em inglês para o português por um tradutor juramentado; na segunda etapa, a edição em português foi retrotraduzida por outro tradutor. A tradução e a retrotradução ocorreram de forma independente e mascaradas em relação aos profissionais envolvidos.

Ambos conheciam os objetivos do trabalho. A terceira etapa consistiu na avaliação da equivalência, com ênfase no significado referencial e geral. A equivalência apreciada sob a ótica do significado referencial de termos e palavras diz respeito a correspondência literal entre eles. a equivalência do ponto de vista do significado geral de cada item transcende a interpretação literal e almeja captar uma correspondência do impacto emocional ou afetivo que estes termos provocam no respondente. O significado referencial foi apreciado entre o instrumento original e a edição retrotraduzida através de escalas analógicas visuais. Para a avaliação do significado geral confrontou-se as questões originais e as traduzidas, cuja equivalência foi avaliada em quatro níveis: inalterado, pouco alterado, muito alterado, e completamente alterado.

Estas apreciações foram feitas de forma independente por dois médicos especialistas em Gastroenterologia Pediátrica e fluentes em inglês e português, cuja língua materna é o português. Na quarta etapa o grupo de especialistas que participou da avaliação da equivalência conceitual e de itens, discutiu os resultados obtidos nas etapas anteriores e propôs uma edição em língua portuguesa mais adequada, utilizando os itens traduzidos ou modificando-os.

Para a apreciação da equivalência de mensuraçãoavaliou-se a confiabilidade, através da concordância e consistência interna dos itens do BDQ. A reprodutibilidade intra-observador foi apreciada repetindo-se a aplicação do questionário a 63 alunos, com intervalo de 10 a 17 dias entre a primeira e a segunda aplicação. O estado de saúde dos adolescentes que participaram do reteste foi apreciado pelas possíveis faltas à escola por motivos médicos no período que compreendeu o intervalo de tempo entre a primeira e a segunda aplicação do questionário. Vale ressaltar que neste período, de acordo com o relato da direção da escola, nenhum dos alunos faltou às aulas por motivos médicos.

Para as variáveis dicotômicas, a reprodutibilidade foi estimada pela estatística simples do kappa e os intervalos de confiança calculados utilizando-se um programa desenvolvido no aplicativo Stata 7.0(31). Para a avaliação das variáveis ordinais, utilizou-se o índice de kappa ponderado com pesos quadráticos e o intervalo de confiança foi calculado via "bootstrap", com 1 000 replicações(37, 43). O índice de kappa foi interpretado utilizando-se a classificação proposta por Landis e Koch(28, 29) em que são colocadas cinco categorias para as estimativas de confiabilidade, a partir dos valores encontrados para a estatística kappa: quase perfeita (>0,80), substancial (0,61 a 0,80), moderada (0,41 a 0,60), regular (0,21 a 0,40), fraca (0,11 a 0,20) e pobre (<0,1).

A confiabilidade foi também avaliada através da medida do montante de consistência interna, utilizando-se os dados da primeira aplicação do questionário e calculando-se o coeficiente alfa de Cronbach e respectivos intervalos de confiança de 95% para os itens que compõem grupos de doenças funcionais (dor abdominal crônica, constipação, síndrome do intestino irritável, dispepsia/refluxo) e os sintomas abordados no "Psychosomatic Symptom Checklist".

Os dados foram armazenados num programa criado para este fim no aplicativo EPI- INFO e analisados nos aplicativos STATA 6 e 7. Este estudo foi avaliado e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESULTADOS Características demográficas da população estudada Dentre os 321 alunos do ensino médio convidados a participar, 234 aceitaram, representando 73% da população abordada; 129 pertenciam ao sexo feminino e 105 ao sexo masculino (55,13% vs. 44,87%), com idades variando de 15 a 18 anos.

Equivalência conceitual e de itens O painel de especialistas concluiu que os conceitos abarcados pelo instrumento original são relevantes no nosso meio.

Equivalência semântica A Tabela_1 mostra os resultados da avaliação da equivalência semântica sob a perspectiva do significado geral de cada pergunta. Na Tabela_2 estão os resultados da avaliação da equivalência semântica sob a perspectiva do significado referencial.

Na avaliação do significado referencial, oito questões e o item "stomach pain" na lista de sintomas apresentam percentual de concordância inferior a 70%, mostrando que no processo de retrotradução houve perda do significado. Destaca- se a retrotradução do termo "barriga" para "stomach", que apesar de ter resultado em perda do significado referencial não afetou o significado geral, que se manteve inalterado ou pouco alterado.

Equivalência de mensuração - confiabilidade Para o reteste foram abordados 89 alunos, dos quais 63 concordaram em responder (70,8%), o que representa 27% do total de alunos que responderam inicialmente.

Esses alunos foram selecionados por ainda estarem freqüentando a escola, que os demais haviam entrado de férias. Dentre os alunos que participaram do reteste, 55,6% pertenciam ao sexo feminino e 44,4% ao masculino, com idades de 15 a 18 anos, sendo que 90,5% dos alunos tinham entre 16 e 17 anos. As populações das duas aplicações não diferiam em relação ao gênero, porém houve predomínio de alunos com idades entre 16 e 17 anos na segunda aplicação.

A Tabela_3 resume os resultados da confiabilidade das questões do BDQ. Em quatro questões não foi possível determinar a confiabilidade pelos métodos estatísticos empregados, provavelmente porque o número de replicações foi muito pequeno. Por outro lado, em três questões não foi possível o cálculo do intervalo de confiança do kappa, possivelmente pelo mesmo motivo. Mais da metade das questões apresentaram concordância substancial a quase perfeita; a primeira pergunta do questionário apresentou estimativa de kappa 0,9.

Neste estudo indivíduos foram classificados segundo as seguintes síndromes, de acordo com os critérios de Roma aplicados ao BDQ: dor abdominal não especificada, dispepsia, apenas dor epigástrica, síndrome do intestino irritável e ausência de dor. A Tabela_4 mostra as estimativas de ponto do kappa para as diversas doenças abordadas, indicando concordância para as síndromes apenas de regular a moderada.

Equivalência de mensuração - consistência interna As doenças avaliadas foram aquelas mais comumente observadas na população: dor abdominal crônica não especificada, constipação, dispepsia/refluxo e síndrome do intestino irritável, além dos 17 sintomas abordados no check-list. Na Tabela 5 estão listados os valores dos coeficientes alfa de Cronbach e o limite inferior de seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Exceto para o check-list, que apresentou consistência muito boa, para as diferentes síndromes a consistência interna ficou em torno de 0,6.

DISCUSSÃO As DGF são um problema de Saúde Pública e vêm ganhando crescente importância clínica, social e econômica. No entanto, o diagnóstico preciso é uma das principais dificuldades na abordagem de pacientes com suspeita de doenças funcionais. Métodos diagnósticos válidos, baseados num mínimo de exames complementares, teriam implicações óbvias para os pacientes e serviços de saúde em geral. Pesquisadores que estudam as DGF no mundo inteiro vêm, desde 1978 (27), buscando estabelecer critérios diagnósticos baseados em sintomatologia com o objetivo de discriminar entre pacientes com DGF e orgânicas. Esses especialistas se reúnem periodicamente e, atualmente, estão desenvolvendo os critérios de Roma III(11, 12), que serão uma revisão e atualização dos critérios diagnósticos previamente elaborados. Nesta perspectiva, o objetivo maior é estabelecer critérios universalmente aceitos, que possam ser aplicados em diferentes países, culturas, etnias, religiões, idiomas e faixas etárias.

Paralelamente, vários questionários para a aferição de sintomas gastrointestinais baseados nestes critérios vêm sendo elaborados. Observa-se, no entanto, que diversos autores, em várias instituições de pesquisa, cada qual com suas peculiaridades e inseridas em distintos contextos sociais e culturais, elaboram diferentes instrumentos com a finalidade de identificar pacientes com DGF. É notável o esforço para o estabelecimento de critérios diagnósticos para as mesmas, mas a aferição baseada em instrumentos nem sempre validados pode comprometer a qualidade das informações obtidas e, por conseqüência, gerar diagnósticos incorretos.

No final da década de 80 observou-se também crescente preocupação no que concerne à validade de instrumentos de aferição da qualidade de vida relacionada à saúde, assim como a sua ampla utilização em diversos contextos socioculturais. A aferição dos vários aspectos relacionados à qualidade de vida, assim como dos sintomas gastrointestinais que compõem as DGF, não se baseia em marcadores físicos, químicos ou biológicos com os quais possam ser comparados. Assim como na avaliação da qualidade de vida, a percepção, a valorização e a caracterização dos sintomas gastrointestinais podem sofrer grandes variações étnicas, culturais e sociais. Nessas circunstâncias, torna-se necessário realizar algum tipo de adaptação cultural dos instrumentos de aferição, de forma a viabilizar a sua aplicação a uma população num contexto sociocultural diferente daquele em que foi elaborado.

Considerando as relativas similaridades da problemática da aferição das dimensões da qualidade de vida e das DGF, este trabalho utilizou metodologias extensivamente investigadas e utilizadas para a tradução e adaptação transcultural de instrumentos que avaliam a qualidade de vida relacionada à saúde, para adaptar o BDQ ao nosso contexto sociocultural.

Não na literatura consenso sobre a tradução e adaptação cultural de instrumentos para a aferição de sintomas gastrointestinais. Nas situações em que o BDQ foi aplicado em outras culturas, que não aquela em que foi elaborado, não relato de apreciação da sua adaptação transcultural(20, 21, 33). Quando o BDQ foi aplicado nos EUA numa população de adolescentes, não foi realizada uma adaptação formal, mas sim um teste em campo em que o instrumento pareceu ser facilmente compreendido por essa população(23). Para aplicação na Singapura, o BDQ foi traduzido para o chinês e malaio e testada sua aceitabilidade e replicabilidade nesse novo contexto, porém não foi realizada adaptação transcultural formal(20).

Neste estudo seguiu-se o modelo universalista proposto por HERDMAN et al.(19) para a tradução e adaptação de instrumentos, com o objetivo de avaliar a qualidade de vida relacionada à saúde.

No presente processo de tradução e adaptação cultural deste instrumento, o grupo de discussão formado para avaliar as equivalências conceitual e de itens, entendeu que os conceitos abordados pelo BDQ foram interpretados de forma semelhante no presente contexto sociocultural e os itens abarcavam adequadamente os domínios estudados. Os itens abordados no questionário são pertinentes na nossa cultura, tanto os que se referem a sintomas gastrointestinais, quanto aqueles relacionados a hábitos como consumo de álcool, tabagismo, dados sociodemográficos, procura por atendimento médico, história patológica pregressa, uso de medicamentos e sintomas gerais. O grupo concordou que todos os itens captam adequadamente os domínios avaliados no questionário original Admite-se que os conceitos de dor abdominal ou outros sintomas gastrointestinais, hábitos intestinais, procura por atendimento médico, uso de medicamentos, história de doenças prévias e interferência desses sintomas nas atividades sejam universais. Uma limitação desta etapa da avaliação reside no fato de que os conceitos abarcados pelo BDQ não foram previamente discutidos com a população de adolescentes. Autores(30, 32) alertam para o fato de que, no processo de adaptação de um questionário a uma nova cultura, é importante realizar grupos focais com a população a que se dirige para conhecer os significados que são dados aos conceitos abordados no questionário.

A tradução do questionário resultou na primeira edição em língua portuguesa do BDQ, que foi revista pelo grupo de discussão, obtendo-se a edição que foi aplicada aos adolescentes. Poucas palavras ou expressões foram modificadas. O item que aborda a profissão e tipo de trabalho gerou muitas dúvidas, uma vez que a maioria dos entrevistados não sabia como distinguir estes dois aspectos.

Muitos também não conseguiam recordar o início da dor. Provavelmente as perguntas que geraram dúvidas poderiam ser substituídas ou melhor esclarecidas se a avaliação da equivalência conceitual e de itens tivesse considerado a participação de adolescentes. Apesar desses problemas pontuais, não houve dificuldade no que tange a aceitabilidade do questionário, os adolescentes se sentiram à vontade para respondê-lo e relataram experiências próprias de sintomas gastrointestinais abordados por ele.

Autores(30, 35) enfatizam a importância de se utilizar e se confrontar mais de uma tradução, o que permite a escolha e a composição de itens oriundos de diferentes versões. No presente trabalho, por problemas operacionais, não foi possível obter outra tradução do questionário. No caso específico da adaptação do BDQ, apesar do reconhecimento dos potenciais ganhos que poderiam ter sido obtidos pela inclusão de adolescentes nos grupos de discussão e pelo uso de mais de um par de tradução-retradução, julga-se que uma única tradução foi suficiente para a elaboração da edição em português do BDQ semanticamente equivalente ao instrumento original.

No que tange a avaliação da equivalência operacional, a forma como o questionário foi aplicado (anônimo e voluntário), não diferiu do original. Nos EUA e na Sibéria, a aplicação aos adolescentes foi feita durante o período de aulas em escolas aleatoriamente selecionadas(23, 33). Quando da elaboração do BDQ, os respondentes eram pacientes que procuraram atendimento na clínica gastroenterológica, clínica da dor ou na divisão de medicina preventiva(39). Em trabalhos subseqüentes, o questionário foi enviado pelo correio a uma população aleatoriamente selecionada(3, 40, 41, 42, 45). Não estudos comparando o modo de aplicação do BDQ, entretanto parece razoável comparar os resultados obtidos no presente estudo com aqueles de RESHETNIKOV et al.(33) e HYAMS et al.(23), uma vez que todos foram respondidos em ambiente escolar e durante o horário de aulas.

De acordo com a classificação de Landis e Koch, 11 questões do BDQ apresentaram confiabilidade ruim, mínima ou razoável. Embora a primeira pergunta do questionário apresente uma classificação quase perfeita, vale ressaltar que as duas respostas discordantes ocorreram no sentido da afirmação na primeira e negação na segunda aplicação, o que pode indicar interesse pelo participante de preencher mais rapidamente o questionário, que as 19 questões subseqüentes são respondidas apenas por aqueles que apresentaram dor nos últimos 12 meses.

O item que aborda a localização da dor abdominal apresentou baixa concordância, provavelmente porque na prática clínica, muitas vezes esta característica é de difícil definição. Outros itens com baixa confiabilidade referem-se à relação da dor com as refeições, informação também de difícil caracterização, uma vez que a percepção da dor limitada ao tempo é imprecisa. Duas questões referindo- se ao número de evacuações por semana também apresentaram concordância insatisfatória. As discordâncias ocorreram em ambos os sentidos, porém ninguém afirmou menos de três evacuações por semana na primeira aplicação e mais de três por dia na segunda ou vice-versa. Dados da literatura mostram que de 94% a 97% das pessoas apresentam freqüência de evacuação entre três por dia e três por semana(7, 9). No presente estudo, 80% dos adolescentes apresentavam esse padrão de evacuação.

Outro item com baixa confiabilidade no presente estudo é um dos três respondidos apenas por aqueles que encontraram algum sangue no vaso sanitário ou nas fezes no último ano, representado por 13% dos entrevistados. O pequeno número de pessoas avaliadas pode explicar os resultados insatisfatórios da confiabilidade dessa questão.

A baixa concordância também observada no item que se refere a algum episódio de dor abdominal na infância pode dever-se ao fato do assunto por ele abordado referir-se a um episódio ocorrido muito tempo, podendo introduzir neste caso um viés de memória. Outra possível explicação seria o fato da primeira aplicação do questionário ter sensibilizado os informantes no sentido de recordar com maior interesse os episódios dolorosos ocorridos na infância.

Neste estudo foram calculados os valores de kappa também para os seguintes grupos: indivíduos com dor abdominal crônica não especificada, com dispepsia, apenas dor epigástrica, indivíduos com síndrome do intestino irritável e normais. Observou-se que a confiabilidade do diagnóstico de síndrome do intestino irritável foi muito baixa (k = 0,31). duas possíveis explicações para este resultado: o instrumento não se presta ao diagnóstico desse distúrbio na população estudada, ou o número de replicações foi muito pequeno, fazendo com que o número de indivíduos com esta condição no reteste fosse também baixo.

Na classificação de dispepsia, que envolve três itens do questionário: presença de dor, mais de seis episódios nos últimos 12 meses e sua localização, número considerável de adolescentes classificados sem dispepsia na primeira aplicação apresentava esta condição no reteste. A concordância do item que abordava a localização da dor foi muito baixa, o valor do kappa na abordagem de pessoas que apresentavam dor não localizada apenas abaixo da cicatriz umbilical foi de 0,46, o que provavelmente contribuiu para a baixa confiabilidade observada também na abordagem desse distúrbio.

Os indivíduos classificados como apresentando apenas dor epigástrica preenchiam dois critérios: dor abdominal mais que seis vezes e localização acima da cicatriz umbilical. Nesse distúrbio, a confiabilidade pode ser baixa em função do erro de classificação da localização da dor, aspecto comentado anteriormente.

Por último, as pessoas saudáveis são aquelas que não apresentaram dor abdominal nos últimos 12 meses e a estimativa de ponto do kappa foi 0,90.

De maneira geral, observou-se que a concordância foi satisfatória para a maioria dos itens do questionário, mas baixa para a avaliação sindrômica. É possível que a baixa prevalência de certas doenças necessárias para o diagnóstico destas síndromes, aliado ao pequeno tamanho amostral deste estudo de confiabilidade, tenham contribuído para isto. Admite-se que, em geral, boa confiabilidade das informações individuais fornecidas pelo questionário adaptado, mas é possível que os critérios para o diagnóstico sindrômico necessitem ser revistos e/ou flexibilizados para sua utilização no nosso contexto sociocultural.

Não , na literatura, estudos que abordem a consistência interna utilizando o BDQ. No entanto, em geral, os resultados encontrados demonstram boa consistência interna das questões relacionadas às principais doenças funcionais e particularmente daquelas referentes aos sintomas extra-intestinais, abordados no check-list.

Os resultados apresentados nas diversas etapas da adaptação transcultural foram satisfatórios, portanto a edição em língua portuguesa do BDQ mostrou ser funcionalmente equivalente à edição original.

Este estudo veio mostrar a importância de se adaptar culturalmente instrumentos para a aferição de DGF, cujo diagnóstico é eminentemente baseado em sintomas.

Assim como as dimensões subjetivamente avaliadas no que tange à qualidade de vida, a percepção, valorização e caracterização dos sintomas gastrointestinais podem sofrer grandes variações culturais e sociais.

CONCLUSÕES Verificou-se que, utilizando a metodologia proposta por HERDMAN et al.(19), foi possível obter uma edição do BDQ adequadamente adaptada ao nosso contexto sociocultural.

Esta constitui a primeira fase para a obtenção de instrumento de medida de DGF na população de adolescentes, porém pretende-se aprimorar esta edição para sua subseqüente utilização em amplas populações de adolescentes. Este trabalho também pretende alertar para a necessidade do uso de instrumentos validados e culturalmente adaptados para garantir a qualidade das informações epidemiológicas em estudos que avaliam DGF. Aos instrumentos de aferição de DGF deve ser dado o mesmo valor que aos critérios diagnósticos, sob pena de se comprometer em muito a qualidade das informações obtidas e por conseqüência o diagnóstico, o tratamento, o prognóstico e a qualidade de vida dos indivíduos acometidos.


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