Avaliação da imunidade celular nos pacientes Co-Infectados pelo vírus da
hepatite C e vírus da imunodeficiência humana
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLE
Avaliação da imunidade celular nos pacientes Co-Infectados pelo vírus da
hepatite C e vírus da imunodeficiência humana
Evaluation of the cellular immunity in patients coinfected by the hepatitis C
virus and the human immunodeficiency virus
Cristiane Valle TovoI; Diogo Edele dos SantosII; Angelo Zambam de MattosII;
Angelo Alves de MattosII; Breno Riegel SantosI; Bruno GalperimI
IHospital Nossa Senhora da Conceição, Porto Alegre, RS
IIFaculdade Federal Ciências Médicas de Porto Alegre, RS
Correspondência
INTRODUÇÃO
Aproximadamente 2% a 3% da população de países desenvolvidos são infectados com
o vírus da hepatite C (VHC). Essa representa atualmente a causa mais freqüente
de hepatite crônica e é também a principal indicação para transplante hepático
(2, 33). A co-infecção por VHC e vírus da imunodeficiência humana (HIV) é
comum, principalmente porque ambos os vírus compartilham as mesmas rotas de
transmissão, embora a via sexual seja mais importante para o HIV do que para o
VHC(2, 6, 26).
O estado de ativação imune permanente proporcionado pela infecção pelo VHC pode
agir deleteriamente em indivíduos HIV-positivos, favorecendo a destruição mais
rápida dos linfócitos CD4(28). Por outro lado, a recuperação imune observada
após o início da terapia antiretroviral (ARV) efetiva pode ser parcialmente
embotada em indivíduos com infecção pelo VHC, através da infecção de células
imunes pelo próprio VHC(28).
Pela importância que essas infecções adquiriram no mundo contemporâneo e pelas
eventuais divergências na literatura no que tange à evolução dos pacientes co-
infectados, torna-se fundamental que se entenda o comportamento dessas
infecções em nosso meio.
O presente estudo teve por objetivo comparar as características de imunidade
celular dos pacientes co-infectados por VHC/HIV e dos monoinfectados por HIV.
MÉTODOS
Foram avaliados dois grupos de pacientes: o grupo 1 foi constituído de
pacientes co-infectados por VHC/HIV avaliados prospectivamente e de forma
seqüencial no Ambulatório de Gastroenterologia do Hospital Nossa Senhora da
Conceição (HNSC), Porto Alegre, RS, no período compreendido entre janeiro de
2000 e maio de 2004; o grupo 2 foi constituído por pacientes monoinfectados por
HIV, sendo os dados obtidos a partir da revisão de prontuários de pacientes
portadores de HIV do Serviço de Infectologia do HNSC.
Co-infecção por VHC/HIV (grupo 1) foi definida como pacientes com teste anti-
HIV e anti-VHC positivos com HBsAg negativo.
Monoinfecção por HIV (grupo 2) foi definida como pacientes com teste anti-HIV
positivo e anti-VHC e HBsAg negativos.
Dados demográficos (gênero, raça, idade), bem como o uso de ARV, foram
registrados.
A contagem de células CD4 e CD8 foi realizada por citometria de fluxo conforme
orientação do fabricante (Becton Dickinson, Heidelberg, Alemanha).
Os anticorpos anti-VHC foram detectados através do teste ELISA III, de acordo
com as instruções de fabricação (Abbott Axsym System, N. Chicago, IL, EUA) e a
detecção do RNA-VHC pela técnica da PCR, utilizando o teste qualitativo
AMPLICOR (Roche Diagnostics, Nutley, NJ, EUA; limite de detecção: 50 UI/mL).
Anticorpos para o HIV-1/HIV-2 foram detectados pelo teste ELISA II e Immune
Chromatrographic Assay Determine (Abbott Axsym System, N. Chicago, IL, EUA).
Amostras positivas eram submetidas para confirmação pelo teste de
imunofluorescência (Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ). Resultados
indeterminados eram confirmados pelo teste de "western-blot"(15).
A carga viral do HIV foi realizada através da técnica de b-DNA (Bayer
Corporation, Tarrytown, NY, EUA; limite de detecção: 50 cópias/mL).
A genotipagem foi realizada através de técnica de polimorfismo do fragmento de
restrição, obtido através da secção com enzimas de restrição (RFLP-PCR)(13).
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do HNSC e apresentava risco
mínimo para os pacientes. Todos os pacientes avaliados de forma prospectiva
assinaram o termo de consentimento informado para participação no estudo.
O programa MsExcel 2000 foi utilizado para armazenamento dos dados; o pacote
estatístico SPSS 8.0 (Statistical Package for Social Science) foi utilizado
para análise posterior dos resultados.
As variáveis quantitativas foram apresentadas em forma de média e desvio-
padrão. Para análises de médias, utilizou-se análise de variância (ANOVA), com
comparações múltiplas feitas pelo método de Tukey.
As variáveis qualitativas foram apresentadas em forma de freqüência e
percentual. Para verificar as associações entre essas variáveis, utilizou-se o
teste qui-quadrado de Pearson, com o recurso complementar da análise de
resíduos ajustados para identificar a localização das associações.
O nível de significância assumido foi de 5%.
RESULTADOS
Foram avaliados 385 pacientes co-infectados por VHC/HIV (grupo 1) e 198
monoinfectados por HIV (grupo 2).
Os dados demográficos podem ser observados na Tabela_1.
Os pacientes do grupo monoinfectado por HIV eram mais jovens; o sexo masculino
foi mais prevalente no grupo dos co-infectados; a maioria dos pacientes era de
raça branca nos dois grupos.
Os dados referentes à contagem de células CD4, CD8 e carga viral do HIV podem
ser observados na Tabela_2.
A carga viral do HIV foi realizada em 158 (41,0%) pacientes do grupo 1 e em 125
(63,1%) do grupo 2, sendo indetectável em 70 (44,3%) casos no grupo 1 e em 37
(29,6%) no grupo 2 (P = 0,011).
Não houve diferença estatisticamente significante quando avaliados os valores
médios da contagem de células CD4, CD8 e da carga viral do HIV nos grupos 1 e
2, bem como no número de pacientes com relação CD4/CD8 menor que 1.
Dentre os co-infectados que realizaram genotipagem e contagem de células CD4 (n
= 125), observou-se que o genótipo 1 esteve associado com contagem de células
abaixo de 200/mm3 (13/15 casos ' 86,7%), enquanto que o genótipo 3 apresentou
associação com aqueles com mais de 200/mm3 (56/110 casos ' 50,9%) (P = 0,020).
No que tange à terapia ARV, deve ser ressaltado que 39,9% dos monoinfectados e
61,1% dos co-infectados não a utilizavam (Tabela_3).
DISCUSSÃO
A co-infecção por VHC/HIV pode ser deletéria em ambos os sentidos: o HIV é
importante co-fator para a progressão da hepatopatia causada pelo VHC, aumenta
a viremia e pode acelerar a evolução para cirrose(8). Por outro lado, o VHC
parece acelerar a progressão da infecção pelo HIV, favorecendo o aumento da CV-
HIV e a redução do CD4(8, 24, 30).
O declínio na imunidade celular associado à progressão da infecção pelo HIV,
pode aumentar a replicação do VHC e, conseqüentemente, a lesão aos hepatócitos,
embora exista pouca correlação entre CV-VHC e grau de lesão hepática. Os
linfócitos T têm papel essencial na resolução da infecção aguda pelo VHC(11). A
infecção promovida pelo VHC é controlada pelos linfócitos citotóxicos (CTL),
que eliminam os hepatócitos infectados, e pelas citocinas produzidas pelas
células T, que inibem diretamente a replicação viral(27). A resposta imune
contra a infecção viral ocorre de duas formas: células CD4-T "helper" tipo 1
(Th1) produzem citocinas que ativam a resposta dos CTL, e células CD4-
T "helper" tipo 2 (Th2) que induzem a produção de anticorpos contra o VHC. Tem
sido sugerido que a pobre resposta às células CD4-Th1 pode estar relacionada à
cronicidade da infecção pelo VHC e à progressão da doença hepática relacionada
ao VHC(23). Essa resposta defeituosa pode induzir a alterações nos CTL que, por
sua vez, dificultam a eliminação do VHC mais difícil. Essa possibilidade
explica a alta CV-VHC em co-infectados pelo HIV, cujas células CD4 têm função e
número diminuídos(27). Entretanto, o papel da resposta celular imune na
progressão da doença hepática na infecção crônica pelo VHC é menos conhecido.
Um estudo(11) avaliou as diferenças nos padrões de secreção das citocinas na
resposta ao VHC em indivíduos com co-infecção por VHC/HIV e em monoinfectados
por VHC, e observou que pode haver diminuição da secreção de interleucina-10
(IL-10) pelas células CD4 intra-hepáticas em resposta às proteínas não-
estruturais do VHC em co-infectados por VHC/HIV, sugerindo possível implicação
da IL-10 na progressão da doença relacionada ao VHC.
O efeito da infecção pelo VHC na história natural da doença pelo HIV permanece
controverso. Estudo de coorte suíço demonstrou que o VHC acelera a progressão
da doença pelo HIV(12, 19). Esse estudo prospectivo envolvendo pacientes que
iniciaram terapia ARV, observou que o VHC foi independentemente associado com
aumento no risco de progressão para síndrome da imunodeficiência adquirida
(AIDS) e morte. Demonstrou também que o VHC pode prejudicar a reconstituição
imune após a terapia ARV. Indivíduos portadores do VHC foram menos capazes de
obter aumento na contagem de células CD4, de pelo menos 50 células/mm3 em 1 ano
após o início dos ARV, quando comparados com indivíduos sem VHC.
PIROTH et al.(21) utilizaram uma coorte longitudinal para demonstrar que a
presença de infecção pelo VHC acelerou a progressão clínica e imunológica em
estágios precoces da infecção pelo HIV entre usuários de drogas injetáveis e
homens que praticam sexo com homens (HSH). LESSENS et al.(18) relataram rápida
progressão para AIDS em pacientes co-infectados após o desenvolvimento de
doença hepática progressiva em hemofílicos. SABIN et al.(24) mostraram que
pacientes co-infectados com VHC genótipo 1 evoluíram mais rapidamente para AIDS
ou morte que aqueles co-infectados com outros genótipos do VHC,
independentemente de idade na soroconversão e contagem de células CD4 durante o
período de seguimento. O estudo de coorte realizado na Johns Hopkins University
observou que pacientes co-infectados com contagem basal de células CD4 entre 50
e 200/mm3, progrediam para morte mais rapidamente que aqueles com monoinfecção
pelo HIV, embora a morte não estivesse associada ao VHC(31).
No entanto, alguns autores(9, 34) observaram que a presença ou ausência do VHC
em pacientes com HIV não influenciou a progressão clínica e imunológica da
doença pelo HIV ou a sobrevida(29), bem como a resposta à terapia HAART(22).
Apesar da imunidade no paciente portador de HIV ser avaliada primordialmente
através da contagem de células CD4, optou-se no presente estudo por representá-
la conjuntamente com os valores médios da carga viral do HIV, já que ambas são
intimamente relacionadas e que alterações na carga viral do HIV geralmente
implicam alterações na contagem de células CD4.
A característica da AIDS é a depleção seletiva dos linfócitos T CD4. Esse
defeito resulta de um tropismo do HIV por esta população de células, devido à
alta afinidade da proteína do envelope viral pela célula CD4(25).
Alguns estudos(3, 12) observaram que pacientes co-infectados por VHC/HIV
apresentam níveis mais baixos de células CD4 do que os monoinfectados por HIV.
No entanto, neste estudo, os valores médios de células CD4 não diferiram nos
grupos estudados.
No grupo de pacientes co-infectados VHC/HIV envolvidos no protocolo APRICOT(32)
para tratamento, o valor médio das células CD4 era 531 células/mm3. Em outros
estudos que avaliaram o tratamento de pacientes co-infectados, os valores
médios foram semelhantes, variando de 478(20) a 500(5, 7) células/mm3, sendo
maiores que o observado na presente série. No entanto, em outros trabalhos que
não incluíram apenas pacientes candidatos ao tratamento anti-VHC, a contagem
média de células CD4 foi inferior à observada nesta casuística(12, 31).
O estudo de GREUB et al.(12) demonstrou que os pacientes com genótipo 3 eram
maioria entre aqueles co-infectados com baixa contagem de células CD4. Este
achado pode ser de interesse, pois o conhecimento quanto à patogenicidade dos
diferentes genótipos de VHC ainda é limitado. Nesta casuística, o genótipo 1
foi mais prevalente em pacientes co-infectados com contagem de células CD4
abaixo de 200/mm3 (86,7%), e o genótipo 3, naqueles com mais de 200/mm3
(50,9%). No entanto, não se pode inferir pior prognóstico em pacientes com
genótipo 1 apenas com base neste fato.
A contagem de células CD8 também é utilizada na avaliação da infecção pelo HIV,
e já foi demonstrado que a resposta celular CD8 se correlaciona com a resposta
celular CD4(1); no entanto, não constitui marcador prognóstico(10). Tem sido
relatado que os indivíduos com infecção pelo HIV apresentam disfunção das
células CD8(14). A possível associação entre a maturação das células CD8 e o
controle imune é sugerida(14). No entanto, mais estudos são necessários para
avaliar o quanto a maturidade das células CD8 está ligada ao controle da
replicação viral(14). Estudo recente(4) sugere que a atividade das células CD8
não controla adequadamente a replicação viral e parece ser criticamente
dependente das células CD4(16). No presente estudo, não houve diferença na
contagem média de células CD8 nos grupos avaliados. Como este parâmetro não tem
sido utilizado em outros estudos que avaliam esta população de pacientes, fica
difícil estabelecer comparação com outras casuísticas.
Normalmente, na ausência de infecção pelo HIV, a relação entre a contagem de
células CD4 e CD8 (CD4/CD8) é maior ou igual a 1. Essa relação é invertida na
presença da infecção pelo HIV e assim se mantém por toda a evolução da doença,
sintomática ou assintomática; raramente volta a ser maior que 1 novamente(17).
Nesta série, a proporção de pacientes com relação CD4/CD8 menor que 1 foi
semelhante nos dois grupos avaliados.
No que tange à viremia, estudo italiano(3) avaliou a interação entre o VHC e o
HIV, relatando que a baixa carga viral do HIV estava associada com a manutenção
do status não-progressor da doença promovida pelo HIV a longo prazo em
pacientes co-infectados com VHC.
A maioria dos pacientes co-infectados incluídos para tratamento anti-VHC,
apresenta CV-HIV indetectável, com percentual variando entre 60% e 81% dos
casos(6, 20, 32).
Na presente casuística, a carga viral do HIV média foi de 83.744,2 cópias/mL no
grupo 1, não havendo diferença significativa em relação à média observada no
grupo 2 (104.464,0); a carga viral do HIV foi indetectável em 70 (44,3%)
pacientes do grupo 1 e em 37 (29,6%) do grupo 2 (P = 0,011). Deve ser destacado
que 38,9% dos pacientes do grupo 1 e 60,1% do grupo 2 não se encontravam em uso
de ARV no momento da inclusão no estudo, o que poderia justificar a carga viral
do HIV elevada.
Em relação ao uso de ARV, a maioria dos pacientes co-infectados (91,7%) e dos
monoinfectados pelo HIV (89,9%) estava em uso de HAART ou apresentava estado
imunológico relativamente preservado que prescindia do uso de ARV, conforme
refletido na contagem de células CD4, não tendo havido diferença
estatisticamente significativa entre o tratamento ARV instituído aos dois
grupos de pacientes avaliados.
Do presente estudo, conclui-se que os pacientes co-infectados e os
monoinfectados por HIV apresentaram características de imunidade semelhantes.