Tradução e validação para a língua portuguesa (Brasil) de instrumentos
específicos para avaliação de qualidade de vida na doença do refluxo
gastroesofágico
EPIDEMIOLOGIA CLÍNICACLINICAL EPIDEMIOLOGY
Tradução e validação para a língua portuguesa (Brasil) de instrumentos
específicos para avaliação de qualidade de vida na doença do refluxo
gastroesofágico
Cross-cultural adaptation and validation for Portuguese (Brazil) of health
related quality of life instruments specific for gastroesophageal reflux
disease
Giedre Ingrid das Neves PereiraI; Carlos Dario da Silva CostaII; Luciana
GeoczeIII; Aldenis Albaneze BorimIV; Rozana Mesquita CiconelliV; Luciana
Camacho-LobatoI
IDiscipline of Gastroenterology, Federal University of São Paulo (UNIFESP), São
Paulo, SP
IISão José do Rio Preto School of Medicine FAMERP, São José do Rio Preto, SP
IIIDepartment of Medicine, UNIFESP
IVDepartment of Surgery, FAMERP
VDiscipline of Rheumatology, UNIFESP
Correspondência
INTRODUÇÃO
A primeira relação entre qualidade de vida e saúde ocorreu em meados de 1930
através do editorial intitulado "Medicina e Qualidade de Vida", publicado por
ELKINGTON(9), em periódico médico. Neste, o autor discute questões sobre a
responsabilidade da medicina relativas a este pormenor, em pacientes submetidos
a transplante renal. Este mesmo autor, em alusão à famosa citação de Francis
Bacon: "A função da medicina é senão afinar esta curiosa harpa do corpo humano
e transformá-la em harmonia", conceitua qualidade de vida como a harmonia entre
o homem e seu mundo e questiona, assim, as aspirações do médico, do paciente e
da sociedade.
O interesse em mensurar qualidade de vida em relação à saúde tem aumentado
significativamente nos últimos anos e seus limites expandidos de forma a
abranger outras dimensões - bem estar físico, competência cognitiva,
estabelecimento de relação interpessoal satisfatória, valorização da ocupação
domiciliar e aquisição de condições suficientes para explorar o mundo(14).
No que tange a avaliação da qualidade de vida, o impacto de doenças crônicas
sobre o funcionamento biopsicossocial dos indivíduos e sua influência sobre a
complexa interação entre comportamento e saúde, tem se tornado o foco principal
de vários pesquisadores(8, 15, 25).
Neste pormenor, merece destaque entre as doenças do trato gastrointestinal, a
doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), pela sua alta prevalência no mundo
ocidental, seu caráter crônico e/ou recurrente(1)e o alto custo decorrente de
seu diagnóstico e/ou tratamento(33).
Estatísticas americanas demonstram que a prevalência da DRGE está em franca
ascensão. De acordo com dados publicados por NEBEL et al.(27), 15% da população
americana tinha sintomas mensais, 14% semanais e 7% diários. Doze anos mais
tarde, pesquisa realizada pela Organização Gallup(13) determinou que 44% dos
americanos têm sintomas mensais. Dados mais recentes(22)revelam ser a
freqüência anual dos sintomas típicos da DRGE da ordem de 58,7% e a semanal de
19,8%. No Canadá, a prevalência semanal desses sintomas é ainda mais alta, em
torno de 30%(42). Na Europa, somente a Finlândia tem prevalência tão elevada
(semanal: 30%). Outros países europeus como a Inglaterra e a Suécia, têm
prevalência mensal estimada em 18% e 25%, respectivamente(6, 20, 32) . Nos
países asiáticos essa prevalência é muito inferior e não ultrapassa 7,5% na
Índia, 3% na Malásia e 0,8% na China(17). Essa tendência tem se verificado
também nas internações pela DRGE. Em nosso meio, inquérito populacional
recente, abrangendo 13.959 indivíduos (6.672 H, 7.287M) em 22 cidades
brasileiras, revelou ser a prevalência semanal de pirose no Brasil em torno de
11,8%(26).
LITERATURA
De acordo com a literatura internacional, a DRGE interfere com a qualidade de
vida dos pacientes na medida em que altera sua alimentação e causa
sintomatologia variada, recurrente e/ou prolongada, o que os impede, física e
emocionalmente, de realizarem suas atividades habituais(31), refletindo, como
demonstrado por WAHLQVIST et al.(45), em elevado índice de absentismo ao
trabalho e redução da produtividade durante a semana que precede a consulta ao
médico assistente. Outro aspecto interessante, como demonstrado por LUNDELL et
al.(24) e HIRAN et al.(16), é que o tratamento preconizado para a DRGE, sendo
clínico ou cirúrgico, é eficiente não só no controle desta enfermidade, como
também na melhoria da qualidade de vida dos acometidos pela mesma.
No Brasil, por outro lado, o panorama é bastante diferente, apenas De SOUZA-
CURY et al.(5) e FORNARI et al.(12) se dedicaram ao estudo dessa
característica. A indisponibilidade, até bem pouco tempo, de questionários
adequadamente traduzidos e adaptados para a língua portuguesa é um dos
principais fatores limitantes.
Para que profissionais de saúde e pesquisadores brasileiros possam usufruir em
seu arsenal diagnóstico do assessoramento do grau de comprometimento da
qualidade de vida na DRGE, assim como monitorizar de forma ampla a eficácia da
modalidade terapêutica administrada, é preciso disponibilizar versão em
português (Brasil) dos questionários específicos para esse fim, assim como
comprovar que essa versão é válida e reprodutível.
Este trabalho foi elaborado com este objetivo. Para tal, foi realizada ampla
revisão dos questionários específicos para avaliação da qualidade de vida na
DRGE, principalmente no que tange à capacidade dos mesmos em avaliar as formas
de apresentação desta enfermidade e os diversos componentes do conceito de
qualidade de vida.
A seleção do questionário a ser traduzido foi baseada em critérios objetivos e
internacionalmente aceitos, sendo adotado, para tal, os critérios de
STANGHELLINI(37), que incluem a capacidade de distinguir DRGE de outras
enfermidades digestivas, de avaliar a freqüência e a intensidade de sintomas
típicos e atípicos, assim como as diversas dimensões e/ou domínios da qualidade
de vida e a satisfação do paciente com o tratamento administrado, o grau de
dificuldade para sua aplicação, ter suas propriedades psicométricas comprovadas
e ser de uso internacional. Adicionalmente acrescentou-se, também, a avaliação
da produtividade no trabalho.
MÉTODO
Os pacientes foram selecionados nos ambulatórios de Motilidade Digestiva da
Disciplina de Gastroenterologia da UNIFESP-EPM (Universidade Federal de São
Paulo - Escola Paulista de Medicina) e no de Gastrocirurgia da FAMERP
(Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), de acordo com os critérios de
inclusão e exclusão abaixo relacionados:
Critérios de inclusão: 1 - ter DRGE, confirmada pelos exames de endoscopia
digestiva alta e/ou pHmetria de 24 horas; 2 - ser adulto, sem distinção de
raça, cor, escolaridade ou estado civil; 3 - ausência de alteração na
medicação, esquema terapêutico ou realização de procedimento diagnóstico entre
a primeira e a segunda aplicação dos questionários de qualidade de vida.
Critérios de exclusão: 1 - ter formas moderadas, graves ou descompensadas de
outras doenças crônicas que sabidamente alteram a qualidade de vida; 2 -
evidência de déficit intelectual e/ou deficiência física que impossibilitassem
responder adequadamente os instrumentos de avaliação de qualidade de vida
selecionados.
O processo de tradução e adaptação cultural dos instrumentos HBQOL (Heartburn
Specific Quality of life )(47), GERD-HRQL (Gastroesophageal Reflux Disease
Health Related Quality of Life)(43, 44) e GSAS (Gastroesophageal Reflux Disease
Symptom Assessment Scale)(31) foi precedido pela autorização de uso dos
questionários fornecida pelos seus autores e realizado através do método
descrito por GUILLEMIN et al.(15), que inclui cinco fases, a saber: 1 -
traduções, 2 - versões ao idioma original (retrotradução), 3 - revisão das
traduções e versões por comitê multidisciplinar, 4 - realização de pré-teste
para avaliação da equivalência cultural, 5 - avaliação da necessidade de
atribuir pesos aos escores.
No presente estudo, as versões dos instrumentos de qualidade de vida foram
realizadas por dois professores de inglês sem qualquer informação sobre os
objetivos do trabalho e o comitê multidisciplinar foi formado por equipe
composta por uma psicóloga (GINP) habituada à aplicação de instrumentos de
qualidade de vida, uma médica na área de concentração em qualidade de vida (co-
orientadora) e uma médica especialista em gastroenterologia (orientadora).
Dois pré-testes foram realizados através da técnica "probe" com o
questionamento do significado de todas as perguntas integrantes do questionário
imediatamente após a realização de cada uma delas.
Foram testadas as propriedades psicométricas de confiabilidade (consistência
interna, reprodutibilidade) e validade.
Dois observadores distintos (observador II) da pesquisadora principal
(observador I) foram treinados com a finalidade de testar a reprodutibilidade
das versões finais em português (Brasil) dos instrumentos de qualidade de vida
traduzidos em doentes com DRGE atendidos na UNIFESP e na FAMERP. Os pacientes
selecionados foram avaliados em duas visitas distintas. Na visita 1 a
pesquisadora principal (observador I) aplicava os questionários HBQOL, GERD-
HRQL, SF-36(3) e ESDRGE (Escala Sintomática para DRGE - versão em português do
SQGERD, De SOUZA-CURY et al.(5)) e o observador II aplicava os questionários
HBQOL e GERD-HRQL aproximadamente 15 minutos após o término da primeira
aplicação. Na visita 2, que ocorria, em média, 7 dias após, os questionários
HBQOL e GERD-HRQL eram novamente aplicados pelo observador I. As 10 primeiras
aplicações das versões traduzidas dos questionários GERD-HRQL e HBQOL pelo
observador I, na visita 1, foram cronometradas digitalmente para posterior
cálculo do desgaste ou da carga do respondedor.
A medida de confiabilidade (reprodutibilidade e consistência interna) foi
testada através da comparação dos escores obtidos com aplicação dos
questionários GERD-HRQL e HBQOL pelos observadores I e II (reprodutibilidade
inter-observador) e entre as duas aplicações feitas pelo observador I nas
visitas 1 e 2 (reprodutibilidade intra-observador). A aferição da consistência
interna dos instrumentos em questão foi feita através da comparação dos escores
obtidos entre si para cada domínio pelo observador I na visita 1.
A pesquisa de validade foi realizada mediante a comparação dos instrumentos
GERD-HRQL e HBQOL com questionário padrão-ouro, para avaliação da qualidade de
vida SF-36. Adicionalmente procedeu-se também à comparação dos questionários
traduzidos, como o instrumento ESDRGE (SQGERD), considerado adequado de acordo
com os critérios de STANGHELLINI(37).
A análise estatística deste trabalho foi realizada com auxílio do programa
Statdisk, utilizando o teste de correlação intraclasse (CIC) e de correlação de
Pearson (r), para avaliação das propriedades psicométricas (confiabilidade e
validade), teste tde Student para parâmetro clínico e estatística descritiva
para os dados demográficos. Foi adotado o nível de confiança de 95%, sendo
considerado estatisticamente significantes resultados com P <0,05.
Utilizou-se, também, o coeficiente alfa de Cronbach (SPSS versão 12) para
análise da consistência interna do instrumento HBQOL. Este teste é aplicável
apenas aos questionários com domínios compostos por duas ou mais perguntas.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa das instituições
FAMERP e UNIFESP ' Hospital São Paulo antes de sua realização e todos os
participantes deram o seu consentimento por escrito, através da assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, antes da sua inclusão no estudo.
RESULTADOS
Foram arrolados para este trabalho 132 pacientes com DRGE, sendo os pré-testes
1 e 2 (tradução e adaptação cultural) realizados em 40 pacientes e as fases
subseqüentes (confiabilidade e validade) realizadas nos 92 pacientes
remanescentes. Os dados demográficos e os respectivos cálculos estatísticos
encontram-se apresentados na Tabela_1. Como pode ser observado na referida
tabela, nenhuma diferença estatisticamente significante foi observada entre os
dois grupos citados para as variáveis idade, sexo, cor, nível de escolaridade e
renda familiar, confirmando a homogeneidade das amostras populacionais
selecionadas.
Como observado durante os pré-testes 1 e 2, a aplicação da versão obtida após
tradução literal dos instrumentos selecionados, constatou-se que nove perguntas
do questionário GSAS, quatro do questionário GERD-HRQL e seis do HBQOL não
foram completamente compreendidas, necessitando de substituição de palavras e/
ou expressões, ou adição de termos.
No questionário GSAS, as palavras que precisaram ser trocadas, foram: tórax,
osso esterno, borborigmos, pressão, distensão, sensação de plenitude,
flatulência ou eliminação de gases por baixo e rouquidão. Estas palavras foram
substituídas respectivamente por: peito, usada tanto para tórax como também
para osso esterno, barulho, aperto, inchaço, sensação de estar cheio,
flatulência ou seja eliminação de gases por baixo e voz rouca, com 100% de
compreensão.
No questionário GERD-HRQL as palavras que precisaram ser trocadas foram: o quão
ruim, dieta, deglutição, distensão. Estas expressões foram substituídas por: o
quanto ruim, o que você come, engolir e inchaço, respectivamente. Para o HBQOL
as palavras e/ou expressões que necessitaram substituição foram: em que
extensão, em que porção de tempo, o quê ou o quanto você comia, nenhum pouco
apetitosa, nível de energia, preocupado/afligido. Substituiu-se por: o quanto,
em que quantidade de tempo, o tipo de comida ou a quantidade que você comia,
nenhum pouco apetitosa ou gostosa, disposição e preocupado ou afligido,
respectivamente. Após as trocas supracitadas, as perguntas foram compreendidas
por 100% da população.
Foram testadas as propriedades de confiabilidade e validade apenas para os
questionários GERD-HRQL e HBQOL, haja vista a impossibilidade de cálculo do
escore do instrumento GSAS.
As dificuldades enfrentadas com o questionário GSAS estão relacionadas à
obrigatoriedade dos pacientes de apresentarem 12 dos 15 sintomas avaliados para
que se possa efetuar o cálculo do escore. Na presente casuística, apenas 20%
dos pacientes atingiram tal meta, impedindo o cálculo do escore e, por
conseqüência, a continuação do estudo.
Os resultados obtidos para a propriedade psicométrica reprodutibilidade
encontram-se listados na Tabela_2. Nesta, observam-se coeficientes elevados de
reprodutibilidade inter e intra-obervador (>0,824) para ambos os questionários
testados. O achado de coeficientes de reprodutibilidade relativamente menores
para as correlações intra-observador podem denotar a influência de fatores
externos vivenciados pelos pacientes em questão durante o período de 7 dias
decorridos entre a primeira e a segunda aplicação dos instrumentos estudados.
A consistência interna pôde ser aferida somente no questionário HBQOL, tendo em
vista que o instrumento GERD-HRQL é de escore único, ou seja, não possui
domínios. Esta avaliação foi realizada pelo coeficiente alfa de Cronbach. Esse
último é aplicável apenas aos domínios compostos por pelo menos duas questões,
ou seja, no caso do referido questionário: aspecto físico (0,969), dor (0,874),
sono (0,864) e dieta (0,575).
Os resultados das validações das versões finais em português dos instrumentos
GERD-HRQL e HBQOL com os questionários SF-36 e ESDRGE, respectivamente,
encontram-se expostos nas Tabelas_3 e 4. A Tabela_3 diz respeito à comparação
dos instrumentos GERD-HRQL e HBQOL com o instrumento genérico SF-36. As
correlações negativas observadas são conseqüência do fato de que no SF-36 o
índice de qualidade de vida é diretamente proporcional ao escore obtido,
enquanto no HBQOL e no GERD-HRQL este é inversamente proporcional ao escore.
São observadas correlações de leve a moderada intensidade apenas para os
domínios aspecto físico, dor, estado geral de saúde e aspecto social. A
ausência de correlação para os demais domínios se deve à presença de domínios
diferentes no SF-36 e no questionário HBQOL e o caráter de escore único do
questionário GERD-HRQL. Na Tabela_4 estão ilustradas as correlações entre os
questionários traduzidos e o instrumento específico ESDRGE. O achado de índices
de correlação moderado a alto se devem às semelhanças na construção desses
instrumentos com a priorização do sintoma azia em todas as perguntas.
As versões finais em português (Brasil) dos questionários GERD-HRQL e HBQOL,
traduzidos neste trabalho, estão ilustradas respectivamente nos Quadros_1 e 2.
DISCUSSÃO
Como enfatizado por Spilker et al.(36), a realização do processo de tradução
pura e simples de questionário de qualidade de vida desenvolvido em outro país
está fadada ao insucesso, haja vista as diferenças lingüísticas e culturais
entre os dois países envolvidos.
Há que se considerar também, como ressaltado por KLEINMAN et al.(21), as
diferentes formas de percepção e expressão de problemas de saúde verificados em
indivíduos provenientes de países com culturas distintas.
Como conseqüência, médicos e pesquisadores interessados na avaliação da
qualidade de vida, porém provenientes de países sem disponibilidade de
questionários para este fim, devem optar entre desenvolver novo instrumento ou
adaptar questionários previamente desenvolvidos e validados em outras línguas
para o idioma de seu país. Tendo em vista ser a criação de novo instrumento
processo por demais demorado e trabalhoso, a segunda opção é a
preferencialmente adotada(2).
Regras para padronização deste processo foram propostas por GUILLEMIN et al.
(15). Simplificação do método de Guillemin foi sugerida em nosso meio por da
MOTA-FALCÃO et al.(4). No presente trabalho deu-se preferência ao método de
tradução e versão ao idioma original de GUILEMIN et al.(15), haja vista sua
maior difusão e adoção no meio científico internacional.
A população estudada foi selecionada nos hospitais universitários de duas
instituições universitárias distintas (FAMERP e UNIFESP). Levantamento recente
do grau de escolaridade dos pacientes atendidos no Setor de Ambulatório do
Hospital São Paulo (UNIFESP) revelou ser a distribuição do nível de
escolaridade semelhante à da população brasileira*.
Tendo em vista a heterogeneidade desses questionários e a inexistência de
instrumento único que conciliasse avaliação ampla da qualidade de vida com a
pesquisa das manifestações típicas e atípicas da DRGE, optou-se por traduzir
simultaneamente três destes questionários GSAS(31), GERD-HRQL(43, 44) e HBQOL
(47), de forma a disponibilizar em nosso meio três opções distintas, cada qual
com as suas peculiaridades, de forma a dar maleabilidade a pesquisadores e
médicos em geral, na seleção o questionário mais apropriado para analisar
qualidade de vida na DRGE de acordo com os objetivos de seu trabalho.
O questionário GSAS, através da avaliação dos sintomas globus, dor de garganta,
gosto ácido, halitose, tosse e rouquidão, era o instrumento que melhor se
prestava para a avaliação de manifestações extra-esofagianas da DRGE. Essa
opinião é também compartilhada por STANGHELLINI et al.(38), que o classificam
como a escala sintomática mais completa até o momento. Por outro lado, os
mesmos autores sinalizam que este instrumento não foi testado em pacientes com
as diversas formas de apresentação da DRGE e que o mesmo não foi devidamente
avaliado em protocolos clínicos. Segundo os autores do presente trabalho, a
obrigatoriedade do paciente de apresentar 12 dos 15 sintomas avaliados para o
cálculo do escore restringe a sua aplicação a pequeno grupo de pacientes,
tornando-o inapropriado para utilização na população em geral.
Os dois outros questionários escolhidos (GERD-HRQL e HBQOL) utilizam o sintoma
pirose como principal forma de avaliação das possíveis repercussões da DRGE
sobre os diversos aspectos da qualidade de vida. Este sintoma está presente em
aproximadamente 89% dos acometidos por essa enfermidade(31) e constitui fator
de inclusão primordial na maioria dos trabalhos realizados nesta doença.
Ambos os questionários avaliam as influências da DRGE sobre a alimentação,
assim como as possíveis alterações que a presença de sintomas noturnos possam
vir a ter sobre o sono. De acordo com TALLEY et al.(39) essas são as áreas mais
comumente afetadas em pacientes com a forma não-erosiva. Alterações da
alimentação foram encontradas em 45% a 81% dos 984 pacientes estudados, e
problemas do sono em 39% a 49%. Essa opinião também é compartilhada por SHAKER
et al.(34), cujo estudo revelou que 79% dos 1000 entrevistados referiam que a
presença de pirose noturna prejudicava o seu sono, impedindo-os de dormir em
63% dos casos.
Outros aspectos que não podem ser esquecidos são a freqüência e intensidade dos
sintomas. O instrumento GERD-HRQL avalia esses dois quesitos, enquanto que o
HBQOL se concentra na avaliação da intensidade. Ambas as características, como
demonstrado por ELOUBEIDI e PROVENZALE(10)e FARUP et al.(11)são capazes de
predizer a qualidade de vida.
O questionário GERD-HRQL avalia adicionalmente a presença de flatulência,
distensão abdominal e disfagia. Esses sintomas foram acrescentados
posteriormente ao questionário original(43, 44) com o intuito de avaliar
pacientes submetidos a cirurgia anti-refluxo. A ocorrência de flatulência,
distensão pós-prandial e disfagia pode atingir respectivamente 20%, 10% e 40%
dos indivíduos operados(23).
Outra vantagem do instrumento GERD-HRQL é a avaliação da influência do uso de
medicação sobre a vida pessoal do paciente. O uso de medicação constitui não
somente fonte de gastos, mas também e, principalmente, preocupação com efeitos
colaterais, interações medicamentosas e o incômodo de ter que carregar e se
lembrar de tomar o remédio nos horários adequados. Esse critério é
particularmente importante nesta enfermidade em que os altos índices anuais de
recurrência (80% a 90% para as formas erosivas e 44% a 75% para as formas não-
erosivas) obrigam, com raras exceções, que esses pacientes sejam colocados em
esquemas de manutenção que implicam, no uso diário, de demanda ou intermitente
de remédios(7, 35).
Entre as vantagens do questionário HBQOL, verifica-se a sua capacidade de
avaliar os diferentes aspectos da qualidade de vida, a saber: aspectos físicos,
social, dor, trabalho, sono, dieta, vitalidade, estado geral de saúde, saúde
mental, além de produtividade no trabalho e nas atividades do dia-a-dia.
A aplicação do questionário SF-36, em doentes com DRGE sintomática moderada a
grave, revelou ser esta enfermidade capaz de alterar significativamente todos
os oito domínios (aspectos físicos, social, emocional, capacidade funcional,
dor, saúde geral, saúde mental e vitalidade) estudados pelo referido
questionário(30). Essa observação é corroborada também por WAHLQVIST et al.
(45). Esses autores demonstraram ser o prejuízo sobre a qualidade de vida
diretamente proporcional à gravidade dos sintomas.
A avaliação de custos diretos e indiretos causados pela DRGE é extremamente
importante, haja vista esta enfermidade liderar a lista das cinco doenças do
sistema digestório com maior impacto financeiro para a sociedade(33). Calcula-
se que somente no ano de 1998 nos EUA, a DRGE implicou em gastos da ordem de
9.8 bilhões de dólares, sendo 9.3 bilhões associados a custos diretos
(medicações, consultas em ambulatório, visitas hospitalares, consultas de
emergência, cirurgias e exames complementares) e 500 milhões de dólares em
custos indiretos relacionados ao absentismo no trabalho(33).
A influência da DRGE sobre a produtividade no trabalho e demais atividades do
dia-a-dia foi extensivamente investigada por WAHLQVIST et al.(45), nos diversos
níveis de intensidade do sintoma pirose, sendo observado que o número de horas
ausentes no trabalho variou de 4 horas para pirose de leve intensidade a 7
horas para pirose de forte intensidade. A perda da produtividade no trabalho
por sua vez variou de 16% (leve intensidade) a 32% (forte intensidade). A perda
da produtividade nas atividades diárias, semelhante à do trabalho, foi
significativa, variando de 19% para os pacientes com pirose leve a 48% nos com
pirose de forte intensidade.
O método de aplicação, originalmente testado para os instrumentos selecionados,
é o de auto-aplicação, não havendo referência ao método de entrevista com
observador treinado ou a outros métodos de aplicação(43, 44, 47).
Tendo em vista as características sócio-culturais da nossa população(19),
mormente aos elevados índices de analfabetismo, os dois instrumentos estudados,
assim como os questionários ESDRGE e SF-36, quando apropriados, foram aplicados
através de entrevista realizada pela pesquisadora principal e por dois
observadores II treinados para atuar na UNIFESP e FAMERP.
De acordo com a literatura internacional o método de entrevistas, embora mais
trabalhoso, é o que certamente fornece resposta de melhor qualidade quando
comparado com a auto-aplicação, aplicação por cartas ou por meio de entrevista
telefônica, não obstante eventual viés relacionado com a preocupação do
paciente em não desagradar o seu médico(32), os custos deste método, em
contrapartida, são mais elevados(28, 29, 46).
Em nosso meio, apenas FORNARI et al.(12) utilizaram a auto-aplicação do
questionário traduzido (versão antiga do instrumento GERD-HRQL)(42), o que lhes
obrigou a excluir analfabetos da casuística, tornando-a menos representativa da
população brasileira.
No que tange ao presente estudo, mais especificamente à utilização de dois
observadores II atuantes em cidades diferentes, simula situação de estudo
multicêntrico, permitindo não só vislumbrar eventuais dificuldades técnicas
emanadas em estudos deste tipo, mas também, e principalmente, concluir que os
instrumentos estudados podem ser aplicados por meio de entrevistas realizadas
por pesquisadores diferentes, atuando em sítios distintos, com fornecimento de
resultados confiáveis e reprodutíveis, como pode ser observado na Tabela_2.
Quanto à consistência interna pode-se concluir que as correlações observadas
são inerentes às características da própria doença avaliada, ou seja, a
presença de pirose, principal manifestação álgica da DRGE, acarreta alterações
na percepção individual de diversos domínios simultaneamente. De fato, a
análise da consistência interna dos domínios dor, sono e aspecto físico do
instrumento HBQOL pelo coeficiente alfa de Cronbach se mostrou excelente (alfa
de Cronbach 0,874; 0,864; 0,969, respectivamente). O mesmo, no entanto, não foi
observado para o domínio dieta (alfa de Cronback 0,575).
Esse resultado pode ser conseqüência da heterogeneidade das duas questões que
integram este domínio. A primeira diz respeito a alterações qualitativas e
quantitativas da dieta, enquanto a segunda investiga a alteração do sabor ou o
paladar dos alimentos.
De acordo com o presente estudo, observou-se que 40% (n = 37) dos participantes
apresentaram respostas diferentes para as duas perguntas formuladas. Desses, a
maioria (n = 33/89%) praticou alterações na quantidade e ou qualidade dos
alimentos ingeridos. A perda do seu sabor ou do paladar, no entanto, só foi
observada em quatro pacientes (11%).
Revisão da literatura internacional revela que 56% dos pacientes alteram o tipo
de comida ingerida e 50% passam a comer refeições menores, porém mais
freqüentes. Alterações dos horários das mesmas também foram verificadas,
principalmente no que tange ao jantar(34). Nenhuma referência, contudo foi
descrita com relação à perda do sabor dos alimentos.
Essa pergunta, possivelmente, tem a finalidade de diferenciar pacientes com
DRGE dos com dispepsia. De acordo com TERNER et al.(40), 60% daqueles com
dispepsia apresentam distúrbio do paladar, com predomínio de heterogeusia e
disgeusia. Este achado pode estar associado com alterações do fenótipo e da
função das vias sensoriais iniciadas por episódios agudos de infecção, trauma
ou inflamação em doentes com distúrbios funcionais do sistema digestório e que
persistem a despeito da cessação do estímulo inicial. Essas alterações, em
geral, ocorrem não só pelo aumento da sensibilidade de fibras nervosas
aferentes periféricas, mas também pela distorção do processamento e da
representação do estímulo aferente no cérebro(18).
O atributo validade foi avaliado neste estudo através da comparação dos
questionários específicos de qualidade de vida na DRGE em tradução, a saber,
HBQOL e GERD-HRQL, com o questionário genérico de qualidade de vida (SF-36) e
com o questionário específico de qualidade de vida ESDRGE traduzido e validado
em nosso meio por CICONELLI(3) e De SOUZA-CURY et al.(5), respectivamente.
Como ressaltado nos Resultados, ambos os instrumentos se mostraram válidos,
sendo a ausência de correlação ou o achado de correlações de baixa intensidade
para alguns domínios, conseqüentes às diferenças entre os quatro questionários
em questão. Entre essas sobressaltam-se as diferenças entre os domínios
incluídos em cada questionário, o fato de GERD-HRQL e ESDRGE serem de escore
único, o grau de detalhamento dado a cada domínio, a inclusão do sintoma azia
na formulação de todas as perguntas dos questionários específicos e a forma de
interpretação de qualidade de vida em cada um dos instrumentos.
A comparação de questionários específicos para DRGE entre si deve, ao contrário
do observado para as comparações com o genérico SF-36, fornecer correlações de
maior intensidade, haja vista a vinculação das perguntas aos sintomas da
doença. De fato, isso foi verificado para as comparações dos escores obtidos
nos questionários GERD-HRQL e ESDRGE (0,825).
Desta forma pode-se concluir que as versões para a língua portuguesa (Brasil)
dos instrumentos GERD-HRQL e HBQOL, adaptadas ao nível cultural brasileiro,
configuram-se em opções válidas, confiáveis, com baixo nível de desgaste do
paciente e de fácil aplicação para avaliação de qualidade de vida na DRGE em
nosso meio. O instrumento HBQOL é a única opção de avaliação multidimensional
de qualidade de vida atualmente disponível para uso no Brasil. A versão em
português do instrumento GSAS se mostrou inadequada para avaliação de qualidade
de vida na DRGE em nosso meio.
AGRADECIMENTO
À CAPES ' Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo
suporte financeiro parcial dado a este trabalho.