Doença de Crohn e cálculo renal: muito mais que coincidência?
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Doença de Crohn e cálculo renal: muito mais que coincidência?
Crohn's disease and kidney stones: much more than coincidence?
Maria Lenise Lopes Viana; Rose Meire Albuquerque Pontes; Waldir Eduardo Garcia;
Maria Emília Fávero; Denise Cavenaghi Prete; Tiemi Matsuo
Departamento de Clínica Médica, Centro de Ciências da Saúde, Universidade
Estadual de Londrina, PR
Correspondência
INTRODUÇÃO
A formação de cálculos renais em pacientes com doença inflamatória intestinal é
mais comum do que na população geral. A freqüência de litíase neste grupo de
pacientes varia de 12% a 28%(10), enquanto que na população em geral afeta de
1% a 14% das pessoas(6). Vários fatores têm sido associados ao seu
aparecimento, entre eles o volume urinário, pH, excreção de oxalato, citrato e
magnésio, embora não se tenha chegado a consenso sobre o grau de importância de
cada um destes fatores litogênicos(2, 5, 9, 12, 15, 18, 19).
Na doença de Crohn, a maioria dos cálculos é constituída de oxalato de cálcio,
devido a maior absorção e excreção urinária de oxalato. O oxalato proveniente
da dieta, normalmente, não é absorvido quando ligado ao cálcio no intestino,
porém nos casos de má absorção ou ressecção cirúrgica do intestino, permanece
livre devido à fixação do cálcio aos ácidos graxos. Pode, também, ocorrer
diminuição da quantidade de Oxalobacter formigens, uma bactéria intestinal
responsável pela degradação do oxalato. Ademais, os ácidos biliares e os
próprios ácidos graxos aumentam a permeabilidade do cólon ao oxalato. O
conjunto dos fatores já mencionados favorece o aparecimento de hiperoxalúria(8,
11, 14).
A formação de cálculos no trato urinário é um processo multifatorial que
envolve o balanço entre os fatores promotores da formação de cálculo e os
inibidores da cristalização(7, 17).
O propósito deste estudo foi analisar os principais fatores promotores da
litogênese (cálcio, oxalato, fosfato e ácido úrico), fatores inibidores
(citrato, magnésio) e o grau de supersaturação urinária em relação ao oxalato
de cálcio, ácido úrico e fosfato de cálcio. Acredita-se que a compreensão
desses fatores seja útil na prevenção do aparecimento e da recurrência da
nefrolitíase nos pacientes com doença de Crohn, condição por si só bastante
agressiva e que desencadeia alterações importantes na vida das pessoas por ela
acometidas.
MÉTODOS
Após aprovação pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário da Universidade
Estadual de Londrina (Parecer CEP 048/03), foram incluídos no estudo 29
pacientes com doença de Crohn, com idade de 17 a 79 anos (40,2 ± 13,1), sendo
18 mulheres. Esses pacientes eram acompanhados no Ambulatório de Doenças
Inflamatórias Intestinais e apresentavam acometimento de intestino delgado
isolado ou delgado e cólon, simultaneamente. O diagnóstico de doença de Crohn
foi estabelecido por meio de critérios reconhecidos e aceitos
internacionalmente(3). As seguintes condições foram excluídas: pacientes com
disfunção renal (creatinina sérica maior que 1,5 mg/dL) e hipertireoidismo. A
coleta das amostras de urina foi realizada na fase inativa da doença,
determinada por CDAI (Crohn's Disease Activity Index) menor que 150(4) e na
ausência de infecção urinária. Foi verificada a utilização de medicamentos que,
sabidamente, poderiam interferir nos resultados bioquímicos dos parâmetros
analisados(1).
A avaliação metabólica incluiu medidas séricas e urinárias, ultra-sonografia de
rins e vias urinárias e determinação do índice de saturação urinária em relação
ao oxalato de cálcio, ácido úrico e fosfato de cálcio. No sangue dos pacientes
em jejum foram dosados creatinina, ácido úrico, cálcio e magnésio e gasometria
venosa para medida de pH e bicarbonato.
Em urina de 24 horas (duas amostras) foram dosados oxalato, citrato, magnésio,
fosfato, sódio, potássio, cloreto e volume. A análise do sedimento urinário e a
medida de pH foram realizadas em amostra isolada de urina. Os pacientes foram
cuidadosamente instruídos como proceder à coleta de urina de 24 horas, que foi
colhida em galão plástico sem conservante.
O cálcio foi determinado por espectrofotometria de absorção atômica, o ácido
úrico pelo método da uricase, a creatinina pelo método de Jaffé, o fosfato pelo
método do fosfomolibdato, o magnésio pelo método azul de metiltimol, o sódio,
potássio e cloreto foram determinados através de eletrodo de íon seletivo. O
citrato foi dosado por método enzimático, em urina acidificada, utilizando
citrato lyase. O oxalato foi dosado em urina acidificada através de método
indireto por determinação do cálcio contido no precipitado de oxalato de
cálcio, induzido na amostra(16). O pH urinário foi medido em amostra isolada
através de determinação potenciométrica em pHmetro Celm.
O exame ultra-sonográfico foi realizado por um mesmo observador com aparelho
Voluson 730 GE, transdutor de 2 a 5 MHZ para verificar a presença de cálculo
renal e avaliar a morfologia do trato urinário.
O índice de saturação urinária foi calculado utilizando-se do software EQUIL-
93.
Foi realizada a análise estatística descritiva e os dados identificados com
média, desvio padrão, valores mínimo e máximo, mediana e freqüências relativa e
absoluta. Para comparação das medianas utilizou-se teste U de Mann-Whitney.
Para determinar associação entre as variáveis foi utilizado teste do Qui-
quadrado ou o teste Exato de Fisher. O nível de significância adotado foi de 5%
em todos os testes.
RESULTADOS
Dos 29 pacientes avaliados, o segmento ileal encontrava-se acometido em 55,2%
deles. Em 48% o diagnóstico da doença era recente (menos de 5 anos) e 65,5%
deles já haviam sido submetidos a procedimento cirúrgico em região intestinal,
sendo que em 57,9% desses houve remoção de algum segmento ileal. Apenas dois
pacientes não apresentaram nenhum parâmetro urinário considerado como potencial
distúrbio metabólico associado à nefrolitíase. Três pacientes apresentaram
somente um distúrbio e 24, dois ou mais distúrbios urinários litogênicos
(Figura_1). Todos tinham função renal normal com níveis de creatinina de 0,8 ±
0,2 mg/dL. Seis mostraram pH urinário abaixo de 5,5, mas esse parâmetro
isoladamente não foi considerado fator potencial para a litogênese, uma vez que
os pacientes não revelaram supersaturação para ácido úrico. A Tabela_1 mostra a
freqüência das alterações metabólicas urinárias, sendo a hipocitratúria (72,4%)
e a hipomagnesiúria (48,3%) os achados mais freqüentes. Nenhum paciente
desenvolveu hiperfosfatúria. Dos 21 que apresentaram hipocitratúria (72,4%), 8
possuiam ressecção ileal. Dos 14 pacientes com hipomagnesiúria (48,3%) somente
1 não mostrou hipocitratúria associada e 6 deles possuiam ressecção ileal.
A análise ultra-sonográfica detectou a presença de cálculo renal em 13
pacientes (44,8%). Nove eram do sexo feminino (69,2%) e quatro do masculino
(30,8%), com média de idade de 37,8 anos. Destes, cinco apresentaram
hipocitratúria isolada, três, hipocitratúria associada com hipomagnesiúria, um
apresentou hiperoxalúria, hipocitratúria e hipomagnesiúria, dois, baixo volume
urinário, hipocitratúria e hipomagnesiúria, um, hipocitratúria e
hipomagnesiúria e apenas um deles não apresentou nenhuma alteração metabólica
urinária.
Quando se compararam os parâmetros urinários dos pacientes operados e não
operados, verificou-se que nos primeiros (sobretudo naqueles com ressecção do
íleo), a excreção dos fatores inibidores (citrato e magnésio) foi menor e dos
fatores promotores (cálcio, oxalato, ácido úrico, fósforo e sódio), maior que
nos não operados. O oxalato urinário foi significativamente maior nos pacientes
com cirurgia intestinal (28,4 ± 17,5) do que naqueles sem antecedentes de
cirurgia (16,4 ± 11,0). Nos pacientes que haviam sido submetidos a ressecção de
algum segmento ileal, a excreção de oxalato urinário também foi maior (35,3 ±
19,2) do que naqueles que possuíam segmento ileal intacto (17,6 ± 10,1)
(P<0,05). A excreção urinária de fósforo também foi maior nos pacientes com
ressecção ileal (612,3 ± 192,0) em comparação com os com íleo intato (442,8 ±
226,7) (P<0,05). Nos pacientes com cálculo renal não se observou diferença
estatisticamente significante para os fatores metabólicos em relação aos não
possuidores de cálculo (Tabela_2).
A Tabela_3 mostra a supersaturação relativa de oxalato de cálcio, fosfato de
cálcio e ácido úrico. Os pacientes com cirurgia intestinal apresentaram urina
supersaturada para oxalato de cálcio e fosfato de cálcio (P = 0,007 e P =
0,015, respectivamente), assim como aqueles com ressecção ileal (P= 0,007 e P =
0,019). Não se observou associação entre a presença de cirurgia intestinal, de
ressecção ileal e supersaturação urinária em relação aos pacientes com cálculo
renal.
DISCUSSÃO
Em pacientes com doença de Crohn, o aumento da excreção urinária de oxalato tem
sido descrito como o principal fator de risco litogênico em decorrência da
hiperoxalúria associada à síndrome de má absorção vivenciada por eles(5, 10,
12).
Apesar dos pacientes deste estudo não apresentarem grandes alterações na
excreção de oxalato, quando se comparam os pacientes submetidos a cirurgia
intestinal com não operados, observa-se diferença com significância estatística
(P<0,05) entre os grupos. Quando esses pacientes submetidos a cirurgia são
estratificados de acordo com o tipo de cirurgia, a excreção urinária de oxalato
mostra-se, em média, maior naqueles com cirurgia ileal.
A oxalúria esteve, de maneira geral, dentro dos limites de normalidade,
provavelmente pela ingestão deficiente de alimentos ricos em oxalato pela
população brasileira (espinafre, ruibarbo, beterraba, nozes, acelga, amendoim,
etc)(11) ou pelo fato do estudo ter sido realizado em período de inatividade da
doença.
A excreção urinária dos outros fatores promotores como o cálcio e o ácido úrico
também não mostrou alteração significativa neste grupo de pacientes,
entretanto, observou-se alta freqüência de hipocitratúria (72,4%) e
hipomagnesiúria (48,3%). Considerando que tanto o citrato quanto o magnésio são
importantes agentes inibidores da cristalização, suas deficiências podem
favorecer o processo de crescimento e agregação dos cristais, principalmente
dos sais de cálcio(2).
Nesta série foi observada litíase renal em 44,8% dos pacientes, achado
considerado alto. NISHIURA et al.(11)observaram litíase renal em 25% dos
pacientes com diagnóstico de doença inflamatória intestinal, SOTO et al.(15)
encontraram litíase renal em 16,3% e CAUDARELLA et al.(5) encontraram
freqüência de cálculos renais de 8,3% no pré-operatório e de 11,9% no pós-
operatório dos pacientes submetidos a procedimento cirúrgico.
É descrito que a presença de supersaturação associada à insuficiência de
inibidores da cristalização como magnésio, citrato e/ou outros fatores
inibidores na urina, predispõe à formação de núcleos de cristalização(7, 13).
Os pacientes deste estudo que haviam sido submetidos a intervenção cirúrgica
intestinal mostraram possuir alterações significativas na saturação urinária e
de acordo com ALVES et al.(2), em todas as situações clínicas nas quais ocorre
a supersaturação de oxalato de cálcio, observa-se aumento do risco de formação
de litíase urinária.
Nos pacientes com cálculo renal, não se observam diferenças na excreção dos
solutos e na saturação urinária quando comparados com indivíduos livres de
cálculos urinários. Provavelmente esse resultado se deve ao número pequeno de
pacientes da amostra. Entretanto, as alterações metabólicas encontradas em
93,1% deles, assim como a alta freqüência de hipocitratúria e de
hipomagnesiúria e o alto número de pacientes com litíase urinária, mostram que
esses pacientes possuem alterações significativas. Investigação em maior escala
ou com duração mais longa e compreensão mais específica dos mecanismos
determinantes da formação de cálculos renais neste grupo de pacientes, poderiam
favorecer a atuação preventiva sobre os fatores que propiciam a formação do
cálculo, diminuindo as complicações deles decorrentes.