Determinação de risco nutricional e desnutrição por antropometria em crianças e
adolescentes com cirrose
GASTROENTEROLOGIA PEDIÁTRICA PEDIATRIC GASTROENTEROLOGY
Determinação de risco nutricional e desnutrição por antropometria em crianças e
adolescentes com cirrose
Nutritional risk and malnutrition determination by anthropometry in cirrhotic
children and adolescents
Ana Cláudia Reis Schneider; Raquel Borges Pinto; Themis Reverbel da Silveira
Setor de Gastroenterologia Pediátrica ' Departamento de Pediatria do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre, RS
Correspondência
INTRODUÇÃO
O fígado é um órgão importante no metabolismo, armazenamento e distribuição de
nutrientes, portanto a ocorrência de alterações nutricionais na doença hepática
crônica é bastante comum. Os problemas nutricionais dos cirróticos são
multifatoriais e além da ingestão inadequada de nutrientes, ocorrem ainda
problemas de hipermetabolismo(4), digestão e absorção(20, 29). Recentemente,
CARVALHO e PARISE(8) avaliaram o estado nutricional de 300 pacientes cirróticos
adultos e encontraram sinais de desnutrição protéico-calórica em 75,3% dos
pacientes avaliados. Outros estudos realizados em nosso país demonstraram que a
ingestão calórico-protéica, assim como a proporção de nutrientes, costuma ser
inadequada tanto em hepatopatas adultos(15) como em crianças(2) e estes fatores
predispõem à desnutrição associados à disfunção hepática. Estudos que avaliam o
estado nutricional de pacientes cirróticos são mais freqüentes em adultos,
alcoólicos ou não(1, 5, 7, 8, 10, 19, 24, 28), porém há poucos dados de estudos
com crianças e adolescentes com hepatopatias crônicas e estes são limitados,
devido principalmente ao número pouco expressivo de pacientes(6, 9, 14, 21,
31). A observação das alterações nutricionais são especialmente importantes
quando ocorrem em crianças e adolescentes, que estão em fase de crescimento e
desenvolvimento intensos, portanto pacientes pediátricos com doenças hepáticas
crônicas devem ter seu crescimento constantemente monitorados e o risco
nutricional prontamente identificado(29). A detecção de sinais precoces de
comprometimento nutricional pode evitar o aumento de sua gravidade e as
seqüelas da desnutrição na vida adulta.
Dentre os métodos utilizados para avaliação nutricional temos: a avaliação
subjetiva global e a dinamometria do aperto de mão(1), que não foram validados
para crianças; a análise por bioimpedância, que no caso da doença hepática é
afetada pela flutuação na hidratação do paciente; a absormetria por emissão de
duplo raio-X (DEXA), que é considerado o padrão-ouro para avaliação da
composição corporal, contudo tem o seu uso limitado pelo alto custo e está
disponível apenas em centros especializados. A antropometria, pela facilidade
de execução, inocuidade e baixo custo, além da obtenção rápida dos resultados,
tem se revelado como o método isolado mais utilizado para o diagnóstico
nutricional, sobretudo na infância e adolescência(30).
Este estudo teve como objetivo avaliar o estado nutricional de pacientes
pediátricos com cirrose, com uso de antropometria, para determinar a
prevalência de risco nutricional e desnutrição.
MÉTODOS
Foi realizado um estudo transversal, que avaliou, no período de agosto de 2003
a julho de 2005, 42 pacientes com cirrose atendidos regularmente no Ambulatório
de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA),
RS. Dos participantes do estudo, 37 eram de ambulatório e 5 estavam
hospitalizados para realização de exames. Todos os pacientes eram compensados,
lúcidos, sem edema e/ou ascite perceptível ao exame físico, no entanto, em oito
a ascite de pequena intensidade foi comprovada por ecografia abdominal,
realizada a não mais de 30 dias da data da coleta de dados.
Foram averiguados os fatores causa da cirrose, a presença de colestase e a
classificação de gravidade da doença, determinada pelo escore de Child-Pugh
(25). A doença de leve intensidade é classificada como A, moderada B e severa
C. Os exames para investigar a presença de colestase e determinar a gravidade
da cirrose foram solicitados no mesmo período da avaliação antropométrica. Para
determinação da causa da hepatopatia crônica, foram realizados exames para
investigação de hepatites virais (HbsAg, IgM anti-HBc, anti-Hbc total, anti-
HCV), anticorpos anti-músculo liso, anti-LKM, fator anti-nuclear,
ceruloplasmina, cobre urinário, eletrólitos no suor, dosagem sérica de a1-
antitripsina, pesquisa de alelos PiZZ e triagem para erros inatos do
metabolismo. Os pacientes cuja causa da cirrose não pôde ser definida foram
considerados como criptogênicos.
O diagnóstico de cirrose foi obtido por confirmação histopatológica (alteração
da arquitetura do parênquima hepático com presença de formação nodular e
fibrose na biopsia hepática) e na ausência desta, por exames laboratoriais
(alterações de coagulação, hipoalbuminemia), ultra-sonográficos (fígado com
ecogenicidade heterogênea, nódulos regenerativos e sinais de hipertensão
portal) e/ou exames endoscópicos (presença de varizes gastroesofágicas e/ou
gastropatia hipertensiva porta).
A presença de colestase foi definida pelo seguinte critério da Sociedade Norte
Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica (NASPGHAN):
quando o resultado da bilirrubina total (BT) sérica for maior do que 5,0 mg/dL
e a bilirrubina direta (BD) apresentar-se acima de 20% do valor da BT, ou se a
bilirrubina total for menor do que 5,0 mg/dL, porém a bilirrubina direta
estiver acima de 1,0 mg/dL(22).
Antropometria
Os dados antropométricos foram obtidos pelo mesmo observador (Schneider ACR).
Foram verificados peso, altura, circunferência braquial (CB), prega cutânea
tricipital (PCT), circunferência muscular do braço (CMB) e índice de massa
corpórea (IMC). Todos os pacientes abaixo de 1 ano foram pesados sem roupa em
balança digital com capacidade até 16 kg. Os maiores foram pesados com roupas
leves em balança manual Filizola com capacidade até 150 kg. As medidas de CB e
PCT foram tomadas em triplicata, a meia distância entre o olécrano e o acrômio,
sendo utilizada a média de cada verificação. Para medir a CB foi utilizada fita
métrica flexível, inelástica e para a PCT o adipômetro científico de fabricação
nacional (Cescorf). A CMB foi calculada segundo a fórmula de FRISANCHO(12): CMB
(mm) = CB (mm) -3,14 X PCT.
O IMC foi calculado para crianças acima de 24 meses através do resultado da
divisão do peso em kilogramas, pela estatura ao quadrado em metros.
Os índices antropométricos peso para idade (P/I), estatura para idade (E/I) e
índice de massa corporal (IMC) foram calculados pelo escore Z. Por este escore
determina-se que pacientes em risco nutricional encontram-se no escore Z < -
1,28 (correspondente ao percentil 10) e os desnutridos apresentam escore Z < -
2,0 (percentil 3)(19, 34). O escore Z = 0, correspondente ao percentil 50,
indicando a média da população normal na mesma faixa etária de acordo com a
tabela de referência do National Center for Health Statistics (NCHS).
A espessura de prega cutânea tricipital (PCT) e a circunferência muscular do
braço (CMB) foram comparadas com os valores normais das tabelas de FRISANCHO
(13) em relação ao sexo e idade e também foi utilizado como ponto de corte para
risco nutricional o percentil <10 e desnutrição o percentil <3.
Considerações éticas
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Pesquisa em Ética e Saúde do HCPA e
todos os responsáveis pelos pacientes assinaram o termo de consentimento
informado.
Estatística
A análise dos dados foi feita com auxílio do programa NutStat (EPIINFO, versão
3.2, CDC/WHO 2000). Em relação à idade e aos índices P/I, E/I e IMC os dados
apresentaram distribuição simétrica (testes Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk)
e foram apresentados em média e desvio padrão. Os índices PCT e CMB
apresentaram distribuição assimétrica e foram apresentados em mediana.
RESULTADOS
As características dos pacientes estão apresentadas na Tabela 1. Os fatores
etiológicos de cirrose determinados foram os seguintes: atresia biliar em 15
pacientes, hepatite auto-imune em 11, fibrose cística em 3, deficiência de a 1-
antitripsina em 1 e histiocitose de Langerhans em 1 paciente. Dos 11 pacientes
com doença auto-imune, 3 foram avaliados antes de iniciarem o tratamento com
corticóides.
Dos pacientes que participaram do estudo, 17 apresentaram colestase. Destes, 6
pacientes estavam abaixo do ponto de corte para risco nutricional para os
índices estudados.
A média de P/I de todos os pacientes investigados foi de - 0,38 ± 1,40 DP
(amplitude de -5,2 a 2,15), a média da E/I foi de -0,83 ± 1,16 DP (-3,92 a
1,76) e do IMC foi de 0,17 ± 1,3 DP (-3,1 a 1,97). Observa-se nas Figuras_1 e
2, que a maioria dos pacientes encontrou-se abaixo da média populacional para
os índices de P/I (23/42, 54,8%) e E/I (32/42, 76,2%). Para o índice P/
I encontraram-se 3/42 (7,1%) pacientes em risco nutricional e 6/42 (14,3%) em
estado de desnutrição. Em relação a E/I, 8/42 (19%) pacientes apresentaram
risco nutricional e 7/42 (16,7%) já apresentaram crescimento comprometido por
desnutrição. Ao determinar-se o escore Z do IMC, foi detectado comprometimento
nutricional em 5/38 (13,2%) pacientes, estando por este índice 2/38 (5,3%)
pacientes em risco e 3/38 (7,9%) desnutridos.
As avaliações de PCT e CMB foram obtidas de 37 pacientes. Os pacientes
encontrados abaixo do percentil 50, foram respectivamente 24/37 (65%) e 20/37
(54%). Ao se utilizar o ponto de corte para risco nutricional, os pacientes em
risco eram 12/37 (32,4%) para a PCT e 9/37 (24,3%) para a CMB. Foram
considerados desnutridos 4/37 pacientes (10,8%), tanto pela PCT como pela CMB.
As medianas das medidas de PCT e CMB estiveram no percentil 25 com amplitude do
percentil 3 ao 90.
DISCUSSÃO
Apesar da desnutrição grave ser facilmente reconhecida, a distinção entre
nutrição adequada e desnutrição leve a moderada não é tão clara. Alguns estudos
na literatura consideram inadequado qualquer índice nutricional encontrado
abaixo do valor de referência da população normal(11, 31). A implementação da
terapia nutricional mais adequada depende da avaliação do estado nutricional do
paciente. A Organização Mundial de Saúde (OMS), considera desnutridas as
pessoas com índices antropométricos inferiores a -2 desvios-padrão abaixo da
média de referência. Indivíduos com índices entre os desvios-padrão -1,28 a -
2,0 do escore Z estão em risco nutricional, portanto momento adequado a
intervenção visando a sua recuperação(34). O comprometimento do estado
nutricional é um fator de risco para aumento da morbidade e mortalidade nas
hepatopatias, portanto o constante e cuidadoso monitoramento do paciente é
fundamental(31).
Índices que envolvam o peso corporal não são os mais adequados para constatação
de comprometimento nutricional nos hepatopatas crônicos, porém o acompanhamento
regular do P/I é importante para observação de dificuldade de ganho de peso ou
perdas agudas. Foram detectados nove pacientes abaixo do ponto de corte
considerado como de risco, destes três se encontravam em risco nutricional e
seis desnutridos. Pode-se conjecturar que se não houvesse a interferência da
visceromegalia e, em alguns casos, da retenção hídrica ocasionada por ascite,
edema e/ou uso de corticóides, talvez o número de pacientes em risco
nutricional fosse mais elevado.
Na Figura 3 são apresentados resultados obtidos em estudos com crianças e
adolescentes com doença hepática crônica. Assim como no presente estudo, os
desvios-padrão para os índices P/I e E/I são muito altos, o que denota grande
variação dos valores individuais. Há crianças hepatopatas crônicas, com o
estado nutricional adequado e outras muito comprometidas. Pode-se observar a
heterogeneidade de achados em relação aos mesmos índices utilizados. Por
exemplo, no estudo de CHIN et al.(9), onde foram avaliadas crianças com doença
hepática em estado terminal, as médias de P/I e E/I se encontravam no escore Z
-2,0, indicando número considerável de crianças bastante depletadas
nutricionalmente. No presente estudo e em outros(14, 31) com hepatopatas
compensados, considerando as médias dos mesmos índices, não se encontraram
amostras com alterações tão significativas.
CHIN et al.(9) mostraram ainda que o índice E/I foi o que apresentou o maior
número de crianças abaixo do ponto de corte para desnutrição de -2,0 Z. Em
outros estudos (Tabela 2), com exceção do de HAMBIDGE et al.(18), pode-se
perceber que este índice é o mais afetado em crianças com hepatopatias. Este
déficit mais acentuado no crescimento, indica a presença de comprometimento
nutricional de longa duração o qual afetou o ganho estatural, contudo a
retomada do crescimento pode ser alcançada com orientação nutricional adequada
ou após o transplante hepático(26, 33).
A medida de CMB estima a reserva protéica e a PCT a reserva de gordura. A PCT é
uma medida que apresenta boa correlação com a reserva adiposa corporal e em
conjunto com a CMB, são métodos sensíveis a mudanças no estado nutricional(23,
27, 32). Estes parâmetros são menos influenciáveis pelas manifestações clínicas
das hepatopatias(31). Nos pacientes avaliados, o índice que melhor refletiu o
risco nutricional foi a espessura de PCT. Alguns pacientes, apresentaram
valores de P/I dentro da normalidade e PCT diminuído, o que demonstra que o
acompanhamento desta medida pode indicar precocemente o risco nutricional.
Outros estudos(27,31), também observaram que medidas que estimam reservas
calóricas e protéicas se encontram mais deprimidas do que outros parâmetros
nutricionais nos hepatopatas. Vários fatores contribuem para a desnutrição
calórico-protéica e deficiências de vitaminas e minerais na cirrose(29): a
ingestão pode ser insuficiente devido à anorexia, náuseas, vômitos, saciedade
precoce, mudanças de paladar provocadas por medicamentos ou por distúrbios
bioquímicos e também por causa de dificuldades comportamentais em relação à
alimentação; os comprometimentos da digestão e absorção podem ser ocasionados
por redução do fluxo biliar, causando a má absorção de gorduras, vitaminas
lipossolúveis e deficiência de ácidos graxos essenciais e pela enteropatia
devido à hipertensão portal. Os hepatopatas também podem ter necessidades
nutricionais aumentadas por causa de hipermetabolismo(16), infecções freqüentes
e síntese insuficiente de proteínas. GREER et al.(17) observaram a presença de
hipermetabolismo em crianças com doença hepática avançada. Este achado implica
na importância da orientação nutricional a fim de minimizar os efeitos do
estado catabólico. O gasto metabólico aumentado contribui para a depleção de
reservas adiposas e protéicas, por este motivo, para estes pacientes, a
recomendação de calorias é definida em cerca de 30% a 50% acima da RDA(3, 4,
23). Frente aos problemas de ingestão, digestão e absorção anteriormente
mencionados e devido à necessidade de maior aporte de calorias e nutrientes, é
difícil alcançar o valor energético demandado pelo paciente e há necessidade da
inclusão de fórmulas e suplementos para facilitar o manejo dietoterápico. A
deficiência protéico-calórica de nutrientes específicos e de micronutrientes
como zinco, ferro e selênio, estão associados com o déficit de crescimento e à
diminuição da síntese de proteínas e devem ser prevenidos ou tratados.
Outro índice antropométrico avaliado nos pacientes do atual estudo foi o IMC.
Constatou-se que somente cinco pacientes apresentaram comprometimento
nutricional por este índice, que não demonstrou ser um método adequado para
avaliar cirróticos por superestimar o seu estado nutricional.
Na presente série, por apresentar um número pequeno de pacientes com risco
nutricional e desnutridos, não foi possível realizar associações conclusivas
entre os índices antropométricos e a gravidade da cirrose e com a presença de
colestase, entretanto em outros estudos de avaliação nutricional com pacientes
pediátricos cirróticos(6, 14) também não foram observadas tais associações. Em
relação à presença de colestase, neste estudo observou-se que 11/17 pacientes
com colestase apresentaram estado nutricional adequado. No estudo de BASTOS e
SILVEIRA(2) não foi observada relação entre a desnutrição determinada pela
antropometria com a colestase, porém esta relação foi estabelecida no estudo de
MATTAR et al.(21).
A inclusão de pacientes com uso de corticóides merece algumas considerações, já
que estes pacientes freqüentemente apresentam retenção hídrica. Estimativas da
reserva de gordura corporal pela PCT e da proteína pela CMB são melhores
indicadores do estado nutricional, mesmo na presença de retenção de fluidos,
porque o edema ocorre em menor extensão nos membros superiores(3).
Em conclusão, observaram-se importantes alterações, considerando o risco
nutricional das crianças e adolescentes avaliados, especialmente relacionados
aos índices antropométricos PCT e CMB. O índice E/I foi o que apresentou maior
número de pacientes comprometidos nutricionalmente para o escore Z -2,0. Devido
a importância do estado nutricional em pacientes com doença hepática crônica,
recomenda-se o acompanhamento destes pacientes, com a realização de avaliações
seriadas com ênfase na utilização de medidas que avaliem a composição corporal
e determinem precocemente o risco nutricional, principalmente a PCT.