Contracepção e gravidez após transplante hepático: uma visão atual
ATUALIZAÇÃO MEDICAL PROGRESS
Contracepção e gravidez após transplante hepático - uma visão atual
Contraception and pregnancy after liver transplantation - an update overview
Mônica Beatriz ParolinI; Júlio Cezar Uili CoelhoII; Almir Antônio UrbanetzIII;
Melina PampuchIV
IServiço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da Universidade
Federal do Paraná (UFPR)
IIDepartamento de Cirurgia do Aparelho Digestivo da UFPR
IIIDepartamento de Tocoginecologia do Setor de Ciências da Saúde da UFPR
IVSetor de Ciências da Saúde da UFPR
Correspondência
INTRODUÇÃO
O transplante hepático (TH) é o tratamento de eleição para insuficiência
hepática avançada, quando as demais alternativas terapêuticas foram esgotadas.
O TH, além de tratar a doença hepática de base, resgata vários aspectos que
englobam o amplo conceito de qualidade de vida, incluindo a recuperação da
atividade sexual e reprodutiva, frequentemente comprometidas nessa população. O
retorno da fertilidade após TH bem sucedido é evidenciado pelo crescente número
de gestações relatadas por diversos centros de transplantes(1, 2, 3, 4, 10, 12,
13, 15, 17, 19, 23, 25, 26, 27).
Muitos aspectos devem ser considerados antes de se incentivar a gravidez em
receptoras de TH. Questões como o intervalo de tempo entre o transplante e a
concepção, orientações pré-concepcionais, condução do pré-natal, terapia
imunossupressora durante a gestação, escolha da via de parto e amamentação
devem ser planejadas e acompanhadas por equipe multidisciplinar. O objetivo da
presente revisão é apresentar de forma prática os conceitos mais atuais sobre
aconselhamento e manejo da contracepção e gestação em receptoras de TH.
Tal revisão é oportuna visto que o número de TH realizados no país cresce a
cada ano e os bons resultados obtidos se traduzem num contingente cada vez
maior de receptoras em idade fértil.
Função reprodutiva em receptoras de transplante hepático
Alterações na função sexual e reprodutiva são comuns nas candidatas a TH e
incluem irregularidades menstruais, amenorréia secundária, redução da libido e
infertilidade. A mais frequente delas é a amenorréia secundária, que pode
atingir até 50% das pacientes com cirrose(2, 12, 13). Tais anormalidades são
devidas a alterações do sistema endócrino central e periférico, as quais são
agravadas pela desnutrição, comumente presente na cirrose bem como pelo efeito
tóxico direto do etanol sobre o eixo hipotálamo-hipófise e gônadas(2, 6, 20).
Após o TH ocorre rápida recuperação da libido e da fertilidade, mesmo na
presença de algum grau de disfunção do enxerto(20). Cerca de 80% a 90% das
pacientes em idade fértil voltam a menstruar poucos meses após o TH. Estudo
realizado no Serviço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, verificou que 86% das receptoras
de TH em idade fértil voltaram a menstruar precocemente (mediana de 1 mês,
variando de 1 a 7 meses), sendo que todas com idade inferior a 45 anos
reassumiram os ciclos menstruais(17).
Com o aumento da sobrevida após o TH, a perspectiva é que aumentem os casos de
gravidez em receptoras de TH, que deverão ser informadas sobre essa
possibilidade e devidamente orientadas antes de reassumirem as atividades
sexuais.
Aconselhamento pré-concepcional
Em toda gravidez o planejamento pré-concepcional é fundamental para aumentar as
chances de evolução materno-fetal favorável. Como os primeiros meses após o TH
correspondem ao período de maior risco de rejeição hepática com necessidade de
esquema mais intenso de imunossupressão e, consequentemente, maior
possibilidade de infecções oportunistas, recomenda-se que as pacientes
aguardem, pelo menos, 12 meses para engravidar. Durante esse período a
perspectiva é de que a paciente se recupere de eventuais complicações da
cirurgia e dos déficits nutricionais decorrentes da hepatopatia crônica, o
enxerto alcance função adequada, a imunossupressão se estabilize com doses
menores dos fármacos e as infecções oportunistas tenham sido devidamente
tratadas(1).
Para as pacientes que estejam aguardando o TH, as recém-transplantadas e todas
aquelas que não desejam filhos, devem ser dadas orientações sobre
anticoncepção. Os métodos de barreira, como os preservativos masculino e
feminino, são os de eleição, pois além de oferecer proteção contra a gravidez
indesejada, protegem contra doenças sexualmente transmissíveis e não afetam a
função do enxerto(1). O dispositivo intra-uterino não é recomendado pois
aumenta o risco de infecção nas pacientes transplantadas e tem sua eficácia
reduzida pelo fato de que seu mecanismo de ação depende de resposta
inflamatória intacta, condição que se encontra comprometida pelas drogas
imunossupressoras(1). A contracepção hormonal (oral ou implante) deve ser usada
com cautela em pacientes submetidas a TH, sendo contraindicada nas pacientes
com hipertensão arterial sistêmica ou com antecedentes de tromboembolismo.
Quando necessário, recomenda-se seu uso na fase mais tardia do pós-transplante
(após 1 ano), quando o enxerto já apresenta função estável. Como os
contraceptivos orais são metabolizados no fígado, podem alterar o nível de
certas medicações que compartilhem a mesma via metabólica (citocromos
hepáticos). Por isso, recomenda-se controlar com maior frequência os níveis
séricos dos inibidores da calcineurina (ciclosporina e tacrolimus),
principalmente nos primeiros meses após início do uso do contraceptivo
hormonal, pela possibilidade de flutuação na concentração sérica dos mesmos,
expondo as pacientes a risco de toxicidade ou, ao contrário, instalação de
rejeição por níveis subterapêuticos. Também é prudente monitorar as enzimas
hepáticas, particularmente nos primeiros meses após introdução dos
contraceptivos orais, para rastrear eventual quadro de colestase(21). Os
métodos cirúrgicos definitivos como a laqueadura tubária e a vasectomia são uma
ótima opção para os casais que não desejam aumentar a prole.
Outro aspecto importante é que as receptoras de TH devem ser educadas quanto à
necessidade de realização periódica de exames para rastreamento de câncer de
colo uterino e câncer de mama, visto que a imunossupressão crônica aumenta
significativamente o risco de neoplasia maligna.
Evolução e complicações na gestação após transplante hepático
O primeiro caso de gravidez após TH foi relatado em 1978 em uma paciente sob
uso contínuo de prednisona e azatioprina. O resultado daquela gestação foi o
nascimento de um menino saudável com 40,5 semanas de gravidez e pesando 2400 g.
Na época do relato, 12 meses após o nascimento, mãe e criança estavam em
excelente saúde(26). A primeira grande série de gestações após TH foi publicada
em 1990 pelo grupo da Universidade de Pittsburgh(23). Em 17 receptoras de TH
que engravidaram, os principais problemas ocorridos durante a gestação foram
hipertensão arterial, anemia e hiperbilirrubinemia. Nenhuma anormalidade
congênita ou defeito ao nascimento foi registrado nos recém-nascidos e 15 das
16 crianças, com idade superior a 1 ano, apresentavam desenvolvimento físico e
mental normal, sendo que apenas 1 apresentava distúrbio na fala.
Desde então, inúmeras publicações oriundas de diferentes centros relatam a
evolução materna e fetal em gestações ocorridas em receptoras de TH1, 2, 3, 4,
5, 7, 10, 12, 13, 15, 17, 19, 25, 27). Com o propósito de compilar e estudar os
resultados maternos e fetais de gestações em mulheres receptoras de transplante
de órgão sólido, bem como em recém-nascidos cujo pai é transplantado, foi
estabelecido em 1991 o "National Transplantation Pregnancy Registry" (NTPR)" na
Universidade Thomas Jefferson (Filadélfia, EUA) e que estão disponíveis no
endereço eletrônico: http://www.temple.edu/ntpr/. Com base nos dados
complicados no NTPR, as gestações após TH são, via de regra, associadas a bons
resultados, apesar da maior incidência de algumas complicações materno-fetais
(4)
No âmbito materno, as complicações mais comuns incluem a instalação de
hipertensão arterial e pré-eclâmpsia, as quais afetam preferencialmente
pacientes com antecedentes de disfunção renal (creatinina >1,3 mg/dL) ou
hipertensão arterial não controlada na época da concepção(5, 11, 14, 18, 21).
Raramente pode haver reativação da infecção pelo citomegalovírus, condição
grave por expor a criança ao risco de malformações e doença hepática.
Felizmente os quadros de reativação do citomegalovírus ocorrem nas fases de
imunossupressão mais intensa, o que corresponde aos primeiros meses após o
transplante. Episódios de rejeição do enxerto durante a gestação são
esporadicamente descritos e habitualmente resultam de níveis sub-terapêuticos
dos imunossupressores, respondendo prontamente ao aumento da imunossupressão,
complementado ou não com pulsoterapia com metilprednisolona(10, 21). Convém
lembrar que receptoras de TH que apresentem alteração das enzimas hepáticas
durante a gestação devem ser investigadas não apenas para rejeição do enxerto,
mas para outras condições como hepatites virais, colelitíase e colestase da
gravidez, não havendo contraindicação para a realização de biopsia hepática, se
necessário. Os níveis séricos dos imunossupressores devem ser monitorados pelo
menos mensalmente, para assegurar que se mantenham no intervalo terapêutico.
Do ponto de vista fetal, a evolução habitual é o nascimento de uma criança
saudável sem malformações. Parto prematuro e retardo no crescimento
intrauterino são comuns e refletem em parte a maior frequência de hipertensão
arterial e pré-eclâmpsia nessa população de mulheres(4, 21). Sofrimento fetal é
a maior indicação de cesárea nessas mulheres.
A revisão de literatura mostra 3% de incidência de malformações em crianças de
mães transplantadas, o que é comparável à incidência na população em geral(7).
A terapia imunossupressora intraútero parece afetar minimamente a organogênese.
Entretanto, acompanhamento a longo prazo deve ser realizado para determinar se
crianças nascidas de mães receptoras de TH têm risco de desenvolver certos
distúrbios imunológicos, oncológicos ou metabólicos durante adolescência e
idade adulta.
Questiona-se se a doença hepática que motivou o TH poderia ter algum papel no
resultado das gestações. Abortos foram mais frequentes em pacientes que tinham
cirrose autoimune(7). Mecanismos relacionados à doença, como a presença de
anticoagulante lúpico, comum em portadoras de hepatite autoimune, é sabidamente
relacionado a abortos em mulheres não-transplantadas, podem ter algum
envolvimento(9). Por esta razão, receptoras de TH com antecedentes de doença
autoimune devem ser rastreadas para condições como lúpus anticoagulante(7).
Estudos prospectivos randomizados são necessários para definir o papel de
citocinas na gravidez e determinar se profilaxias primárias podem ser efetivas.
Existem evidências de que drogas antiagregantes (principalmente ácido
acetilsalicílico em baixas doses) previnam pré-eclâmpsia(8). Alguns autores
sugerem que o uso de doses baixas de ácido acetilsalicílico (em pacientes com
contagem normal de plaquetas) poderia melhorar o resultado de gestações após
TH, considerando o risco aumentado de hipertensão arterial, pré-eclâmpsia e
abortos(7).
Terapia imunossupressora durante a gestação: escolhas para saúde materna e
fetal
Um dos grandes avanços responsáveis pelo aumento da sobrevida pós-TH foi o
desenvolvimento de drogas imunossupressoras mais potentes e com menos efeitos
colaterais, que permitiram a redução da perda dos enxertos por quadros de
rejeição. Atualmente a maioria dos centros de TH emprega esquema de
imunossupressão baseado no uso do tacrolimus associado à corticoterapia e,
eventualmente, drogas antiproliferativas como o micofenolato e o sirolimus. O
tacrolimus, considerado hoje a base da imunossupressão pós-TH, apresenta menor
impacto na função renal, assim como decréscimo do risco de hiperlipidemia e
hipertensão arterial(16). O maior temor entre as gestantes transplantadas é que
a medicação imunossupressora possa ter algum efeito negativo sobre os fetos, o
que pode levar à conduta equivocada de interromper inadvertidamente o uso de
tais drogas. É preciso enfatizar que a manutenção do regime imunossupressor é
imprescindível para uma gravidez com sucesso, "o que é bom para a mãe é bom
para a criança"(1).
Embora todas as medicações imunossupressoras atravessem a barreira placentária,
não há evidências que haja aumento na incidência de malformação fetal em RN de
mães sob uso de imunossupressores. Os corticosteroides são amplamente
utilizados em terapia de imunossupressão, sendo considerados classe B pelo FDA.
Doses aumentadas endovenosas devem ser administradas em pacientes que se
encontrem em uso contínuo de tais medicamentos e que serão submetidas a
cesariana. É recomendável suplementação com cálcio pelo efeito adverso dos
corticosteroides no metabolismo ósseo. Os corticoides não são relacionados a
malformações, mas podem favorecer a ruptura prematura de membranas e agravar
hipertensão arterial e hiperglicemia maternas(1).
A ciclosporina e o tacrolimus (classe C), conhecidos como inibidores da
calcineurina, impedem a síntese da interleucina-1 e 2, têm sua dose ajustada de
acordo com o nível sérico. A determinação do nível sérico dessas drogas deve
ser realizada pelo menos mensalmente e as gestantes devem ser aconselhadas a
evitar medicações que possam alterar os níveis desses imunossupressores (Figura
1). As taxas de malformações com o uso dessas drogas não são diferentes das
taxas encontradas da população geral(1).
Embora a azatioprina (classe D) possa levar a um risco maior de anomalias
fetais quando usada em doses maiores, não há padrão algum de anormalidades
descritas. As crianças nascidas de mães que usaram a medicação têm taxas
maiores de leucopenia, trombocitopenia e anemia(1).
Em relação aos novos imunossupressores de ação antiproliferativa - micofenolato
(classe D) e sirolimus (classe C) -, tais drogas devem ser evitadas, pois a
experiência em gestantes é ainda limitada. Publicação recente(24) sobre a
evolução da gestação em receptoras de transplante de órgão sólido expostas ao
micofenolato mofetil ou sirolimus, com base nas informações enviadas ao NTPR,
indica maior incidência de malformações estruturais em crianças expostas ao
micofenolato mofetil. Nas sete pacientes transplantadas expostas ao sirolimus
na fase da concepção, nas quais o esquema de imunossupressor foi alterado com
suspensão imediata do sirolimus, quatro tiveram recém-nascidos saudáveis e três
evoluíram com abortamento espontâneo. ROOS et al.(22) publicaram os resultados
de estudo experimental no qual identificaram a proteína mTOR (mammalian target
of rapamycin), alvo do imunossupressor rapamicina (sirolimus), como sensor de
nutrientes na placenta e regulador do transporte placentário de aminoácidos,
adaptando o crescimento fetal com a disponibilidade materna de nutrientes. Como
o comprometimento do transporte de aminoácidos na placenta pode levar ao
crescimento intrauterino restrito, estudos sobre o impacto do uso do sirolimus
no crescimento fetal e organogênese são necessários antes que seu uso possa ser
considerado seguro em gestantes.
Devido ao uso dos imunossupressores, as pacientes transplantadas têm risco
aumentado de infecção. É importante diagnosticar e tratar prontamente qualquer
quadro infeccioso, sendo prudente o uso profilático de antibióticos antes de
procedimentos invasivos, principalmente amniotomia e episiotomia(1).
Via de parto e aleitamento materno
A taxa de cesarianas é aumentada em pacientes com TH prévio. Muitos desses
partos cirúrgicos são realizados prematuramente. Mesmo em centros que realizam
cesarianas apenas por indicação obstétrica, a taxa é maior que 50%(5). As taxas
de cesarianas relatadas no NTPR são semelhantes entre transplantadas tratadas
com ciclosporina, Neoral® (ciclosporina em microemulsão) e tacrolimus(3). O
parto vaginal deve ser o objetivo de qualquer gestação em paciente
transplantada, devendo a cesariana ser reservada às mesmas indicações
obstétricas que em qualquer gravidez. Se a cesariana for escolhida, a cirurgia
anterior pode dificultar a realização técnica(1).
As drogas imunossupressoras são excretadas no leite humano onde são encontradas
nas mesmas quantidades que no soro materno, embora a dose recebida pelo
lactente seja geralmente pequena. A maioria dos médicos contraindica a
amamentação em mulheres em terapia imunossupressora para evitar qualquer
exposição do recém-nascido a medicações tóxicas(1).
Os principais pontos chaves no acompanhamento da gestação em receptoras de TH
estão sumariados abaixo:
Toda gestação em receptora de TH é considerada de alto risco e
necessita de acompanhamento multidisciplinar especializado.
A gestação é considerada mais segura após o primeiro ano do
transplante em paciente com bom estado geral, função adequada do
enxerto, sem evidência de disfunção renal ou hipertensão arterial não
controlada e com esquema estável de imunossupressão.
O esquema de imunossupressão deve ser mantido e os níveis séricos
dos imunossupressores devem ser monitorados com frequência. Evitar
drogas como micofenolato e sirolimus, que devem ser suspensas se
possível 6 semanas antes da concepção.
Investigar prontamente alterações de enzimas hepáticas, se
necessário, com biopsia.
Episódios de rejeição são raros mas podem ocorrer, inclusive no
pós-parto imediato. Portanto, é importante manter monitoramento
rigoroso dos níveis de imunossupressão nas primeiras semanas após o
parto.
Rastrear durante toda a gestação e tratar prontamente complicações
como diabete, hipertensão arterial, pré-eclâmpsia, retardo do
crescimento intrauterino e infecções.
Parto vaginal é preferível sempre que possível.
Aleitamento materno não é recomendado.
CONCLUSÃO
As gestações após TH são, via de regra, associadas a altas taxas de sucesso e
baixos índices de complicações se forem respeitadas algumas condutas. A
gestação em receptora de TH deve ser considerada de alto risco e requer
acompanhamento pré-natal multidisciplinar com monitorização rigorosa da terapia
imunossupressora, da funções renal e do enxerto hepático e diagnóstico e
tratamento precoces e adequados de quaisquer complicações. O parto vaginal é
preferível sempre que possível e o aleitamento materno não é recomendado com
base nos conhecimentos atuais.