Ética no trabalho científico
FÓRUM DO JOVEM PESQUISADOR YOUNG RESEARCHER FORUM
Ética no trabalho científico
The ethics of writing a scientific paper
Newton Sergio De Carvalho
Setor de Pesquisa Clinica e Infecções em Ginecologia e Obstetrícia do
Departamento de Tocoginecologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR
Correspondência
Deve-se considerar a Ética como sendo um termo genérico englobando diversas
reflexões sobre as relações entre os seres humanos e seu modo de ser e de
pensar. Encontra-se disseminada em todas as atividades onde possa existir o
confronto entre o bem e o mal, ou melhor, ações positivas ou negativas. Ainda,
como sendo uma reflexão filosófica sobre de como devemos viver, portanto sobre
questões de certo e errado, bom e mau, direito e deveres. Dentro das
publicações científicas se enquadra na Bioética, ou seja, a ética aplicada às
áreas das Ciências da Vida e da Saúde. Assim, tem-se a Bioética como regente da
Ética na Pesquisa Clínica e esta obedece aos seguintes princípios básicos
resumidos abaixo:
1. Autonomia: que requer do profissional respeito à vontade, à crença, aos
valores morais do paciente (também chamado sujeito de pesquisa),
reconhecendo o domínio sobre sua própria vida e o respeito a sua
intimidade. Este princípio gera várias discussões, sobretudo quando o
poder decisório do paciente possa estar comprometido, como no caso dos
chamados grupos vulneráveis (p. ex. menores de idade, indígenas, débeis
mentais, pacientes terminais, militares, etc). Relacionando este
principio com a Pesquisa, encontramos o "termo de consentimento livre e
esclarecido" a ser aplicado pelo pesquisador e assentido pelos sujeitos
da pesquisa ou seus representantes legais como sendo o ponto principal.
2. Beneficência: que deve assegurar o bem-estar das pessoas, evitando danos
e garantindo que sejam atendidos seus interesses. Trata-se de princípio
indissociável ao da autonomia.
3. Não maleficência: onde se assegura que sejam minorados ou evitados danos
físicos aos sujeitos da pesquisa ou pacientes. Riscos da pesquisa são as
possibilidades de danos de dimensão física, psíquica, moral, intelectual,
social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer uma de suas
fases ou dela decorrente.
4. Justiça: onde se exige equidade na distribuição de bens e benefícios em
qualquer setor da ciência.
5. Proporcionalidade: priorizando o equilíbrio entre os riscos e benefícios,
visando alcançar o menor mal e o maior benefício às pessoas. Está
intimamente relacionado com os riscos da pesquisa clínica, os danos e o
princípio da justiça.
Em relação ao Trabalho Científico fundamentado na Pesquisa Clínica, pode-se
dizer que o processo se inicia na "inquietude intelectual" do pesquisador ou de
um grupo de pesquisadores que, a partir de uma dúvida ou de uma ideia, decide
realizar um trabalho científico para responder a suas perguntas ou viabilizar a
sua ideia. Tal processo, fundamentalmente, deve seguir normas científicas
rígidas e éticas. Esta obediência deve se manter desde esta fase inicial até a
publicação ou estágio final de toda a pesquisa. Obviamente que a não publicação
implica na não divulgação e, portanto, não se torna disponível para a
comunidade científica ou população leiga, podendo ser considerada até mesmo
como não tendo sido realizada. Alguns fundamentos de interesse a este respeito
são referentes a sua realização e publicação.
REALIZAÇÃO DO TRABALHO CIENTÍFICO
Eticamente deve obedecer às leis internacionais denominadas de Boas Práticas
Clínicas consideradas como padrões de qualidade científica e ética
internacional para o desenho, condução, registro e relato de estudos que
envolvam a participação de seres humanos. Baseiam-se na Declaração de Helsinki
e a adesão a este padrão assegura a garantia pública de que os direitos, a
segurança e o bem-estar dos pacientes participantes destes estudos estejam
protegidos, bem como a credibilidade dos dados. Nacionalmente estão
fundamentadas na resolução 196 de 1996 do Conselho Nacional de Saúde (para leis
nacionais veja = conselho.saude.gov.br/comissao/.../resolucao.html e ,
www.anvisa.gov.br/medicamentos/.../boaspraticas_americas e para realizar um
curso de GCP on line veja, www.onlinegcp.org, e www.fda.gov/.../
RunningClinicalTrials, ).
Estas normas surgiram a partir dos abusos cometidos em pesquisas com humanos,
realizadas de acordo com o único interesse do Estado, no esforço de guerra
tanto da Alemanha como nos países aliados, bem como no interesse científico -
como nos três casos paradigmáticos de abusos em pesquisas nos Estados Unidos no
pós-guerra (Tuskegee Syphilis Study de 1932 a 1972, Jewish Chronic Disease
Hospital em 1963 e no Willowbrook State Schoolem 1956) -. Dentre estes, o mais
comentado é o episódio de Tuskegee, onde de 1940 a 1972, no Alabama, EUA, cerca
de 400 negros, a maioria analfabeta, com sífilis foram seguidos sem qualquer
tratamento, visando a estabelecer a história natural da sífilis, apesar do
surgimento em larga escala da penicilina como tratamento eficaz, em 1945. Esse
fato só foi descoberto em 1973 e posteriormente mereceu inclusive o pedido de
desculpas por parte do governo americano.
Pode-se dizer que o princípio moral relevante que é o da autonomia dos sujeitos
de pesquisa, considerado o princípio-mor da experimentação humana, emerge no
pós-guerra com o Código de Nuremberg (1947), destacando o consentimento
voluntário do ser humano como sendo absolutamente essencial. Neste, afirma-se
que o sujeito, objeto da pesquisa, deve poder "exercer o livre direito de
escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira,
coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior".
Portanto, na execução de qualquer pesquisa envolvendo seres humanos, entre
vários pontos importantes, ressalte-se:
- Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos é o órgão
institucional que tem por objetivo proteger o bem-estar dos
indivíduos pesquisados. É um comitê independente, interdisciplinar,
constituído por profissionais de ambos os sexos, além de pelo menos
um representante da comunidade, que tem por função avaliar os
projetos de pesquisa que envolva a participação de seres humanos. Nos
Estados Unidos estes comitês são denominados de IRB (Institutional
Review Board). No Brasil estão interligados a um Comitê Central
denominado Comitê Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP.
- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Trata-se de um
documento onde, em linguagem clara e em nível de entendimento do
sujeito da pesquisa, o pesquisador deverá explicar e esclarecer cada
passo do que está sendo proposto. Após completamente entendido e
concordado, deverá ser assinado e datado por ambos, ficando uma cópia
com o paciente e outra nos arquivos do estudo. Entendido este
consentimento como livre por não poder haver nenhum tipo de limitação
a influenciar a vontade e a decisão do sujeito da pesquisa, e
esclarecido na medida em que se considera que o compromisso com o
sujeito da pesquisa não é apenas de informar, mas, sobretudo, de
esclarecer. Sua redação não merece ser feita visando à proteção do
pesquisador, da instituição ou do patrocinador. Devem, ainda, estar
claramente especificados os possíveis desconfortos, os riscos e os
possíveis benefícios; como o paciente poderá obter continuidade caso
venha a se beneficiar do tratamento e como será indenizado ou tratado
por problemas decorrentes da pesquisa. O sujeito deverá estar seguro
da privacidade de todas as informações. O pesquisador deverá deixar
claro como procederá à informação em casos de incapacidade mental
(crianças ou adultos com retardo mental), clínica (pacientes
inconscientes) ou culturais (por exemplo, indígenas). Igualmente
deverá constar um contato explícito (telefone do pesquisador p. ex)
na existência de qualquer dúvida ou problema durante a pesquisa por
parte do participante. Também deverá estar informado que o
participante poderá retirar seu consentimento em qualquer ocasião,
sem nenhum prejuízo no seu atendimento posterior dentro da
Instituição.
PUBLICAÇÃO DO TRABALHO CIENTÍFICO
Após coleta e análise dos dados, o estudo deverá ser enviado para publicação e
neste particular alguns pontos são fundamentais:
- De início, quem elabora um comunicado científico está convencido da
relevância e exatidão dos seus achados, que devem ser referendados
pela Comissão Editorial da revista a que é submetido, compartilhando
da confiabilidade e relevância dos dados. Ou seja, existe um
compromisso ético com o leitor e com a comunidade científica.
- Desta forma, durante o processo de investigação, bem como na
publicação, é completa falta de ética apresentar dados de outros como
se fossem seus; falsificar total ou parcialmente ou ainda, suprimir
ou alterar dados que não estejam de acordo com o objetivo proposto.
Com alguma frequência publicam-se notícias em jornais leigos referindo a fraude
em pesquisa, como esta onde a revista Science se retratou de um artigo
publicado em 2006 que continha fotos manipuladas por um ex-pesquisador. A
publicação se corrigiu logo depois que a Universidade de Missouri-Columbia
anunciou que uma investigação descobriu que o estudante de pós-doutorado
Kaushik Deb adulterou imagens de embriões de ratos (publicado no "O Estado de
São Paulo" em 31/7/2007), ou mesmo em matéria científica como nesta metanálise,
citando que em até 34% dos cientistas estrangeiros admitem ter realizado
práticas de pesquisa questionáveis, como omitir novos resultados que colocariam
em xeque trabalhos anteriores ou descartar certas informações obtidas em
experimentos por uma percepção meramente subjetiva de que estariam incorretas.
Foi o que mostrou uma revisão sistemática de artigos sobre má conduta
científica realizada por Daniele Fanelli, do Instituto para o Estudo da
Ciência, Tecnologia e Inovação da Universidade de Edimburgo, na Escócia
(Fanelli D. How many scientists fabricate and falsify research? A systematic
review and meta-analysis of survey data.. PLoS One. 2009 May 29;4(5):e5738)
- Dentro deste raciocínio, igualmente é inobservância à Ética enviar
o mesmo relato científico para mais de um periódico ou mesmo
apresentá-lo em mais de um evento científico a não ser que o autor
possa justificar tal atitude, e em comum acordo com os respectivos
coordenadores ou editores científicos. As citações da literatura
devem espelhar exatamente os textos originais para evitarem falhas e
impedimento de localizar o trabalho citado. O autor deve ter
permissão em mãos para citarem dados ainda não publicados, obtidos
pessoalmente de outro pesquisador, bem como devem ser citados fontes
de diagramas, quadros, figuras e imagens obtidos em outros locais e
com permissão. A publicação de imagens de pacientes deverá ter a
autorização e a identidade dos mesmos preservada.
- Em relação à listagem dos autores do trabalho deve-se considerar
que, para que alguém possa ser colocado no grupo, deveria, à luz da
ética, apresentar contribuição substancial à concepção e ao desenho
do trabalho, aquisição, interpretação e análise dos dados ou ter
participado na redação e revisão crítica, com real contribuição
intelectual ao seu conteúdo, e ainda, ter aprovado o final do
conteúdo a ser publicado. Alguns periódicos solicitam que os autores
justifiquem suas respectivas atuações nos trabalhos e essas
observações devem ser obedecidas.
A ordem dos autores na citação deve ser feita de comum acordo entre todos os
autores, sendo o primeiro o mais relevante e o último o coordenador do projeto
(sênior). Os autores intermediários podem ser citados em ordem de contribuição
para o trabalho final. Todos os autores devem participar na redação e
editoração do manuscrito, receber cópia do mesmo e concordar em compartilhar a
responsabilidade pelos resultados e igualmente fornecer esta anuência na
ocasião de envio para publicação. Portanto, adicionar autores por conveniência
e sem participação efetiva nas etapas do trabalho constitui infração à Ética.
Um dos abusos cometidos observado em algumas situações é a inclusão, como
último autor, do chefe do grupo, tenha participado ou não do trabalho e com
finalidade de agradar ao superior hierárquico ou mesmo tentar usar o seu nome e
prestígio para valorizar o estudo.
Por fim, ponto de fundamental necessidade a ser apontado frente à Ética nas
Publicações são os chamados Conflitos de Interesses e, em relação a este ponto,
o Conselho Federal de Medicina emite normativa (Resolução CFM n. 1.595/2000).
Nesta, além de definir uma série de conflitos envolvendo a profissão Médica, no
seu artigo 2º determina que os médicos, ao proferir palestras ou escrever
artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêuticos ou equipamentos para
uso na Medicina, devem declarar os agentes financeiros que patrocinaram suas
pesquisas e/ou apresentações, cabendo-lhes ainda indicar a metodologia
empregada, quando for o caso - ou referir a literatura e bibliografia que
serviram de base à apresentação, quando essa tiver por natureza a transmissão
de conhecimento proveniente de fontes alheias. Refere-se ainda que os editores
médicos de periódicos e os responsáveis pelos eventos científicos em que
artigos, mensagens e matérias promocionais forem apresentados, são
corresponsáveis pelo cumprimento das formalidades prescritas nesse artigo.
Desta forma, após o título do artigo ou no início da apresentação científica
onde se informa a qualificação, dever-se-á igualmente apontar os eventuais
pontos de Conflito de Interesses que possam influir no juízo do leitor em
relação ao conteúdo do trabalho publicado.
Concluindo, cabe aos pesquisadores a postura consciente de que cada vez mais, a
qualidade deverá suplantar a quantidade, e certamente, mais do que legislações
e/ou regulamentações vigentes, a nossa consciência Ética tem o papel decisivo
na definição "do que" e "como" se publica, bem como do impacto que se obterá na
transmissão do conhecimento.
LEITURAS SELECIONADAS
1. Beecher HK. Ethics and clinical research. New Engl J Med. 1966;274:1354-60.
2. Puri KS, Suresh KR, Gogtay NJ, Thatte UM. Declaration of Helsinki, 2008:
implications for stakeholders in research. J Postgrad Med. 2009;55:131-4.
3. Schramm FR, Palácios M, Rego S. O modelo bioético principialista para a
análise da modalidade da pesquisa científica envolvendo seres humanos ainda é
satisfatória? Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13:361-70.
4. Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals.
International Committee of Medical Journals Editors. Ann Intern Med 1997;126:
36-47.
Correspondência:
Dr. Newton Sergio de Carvalho -
Rua Saldanha Marinho, 1422 - apt. 801
Curitiba PR
E-mail: newton@hc.ufpr.br