Níveis séricos de globulinas e a intensidade da fibrose hepática em pacientes
com esquistossomose mansônica
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Níveis séricos de globulinas e a intensidade da fibrose hepática em pacientes
com esquistossomose mansônica
Serum globulin levels and intensity of hepatic fibrosis in patients with
mansonic schistosomiasis
Henrique S. T. Correia; Ana Lucia C. Domingues; Edmundo P. A. Lopes; Clarice N.
L. Morais; Camila Sarteschi; Izolda M. F. Moura
Correspondência
INTRODUÇÃO
Na esquistossomose mansônica (EM), em sua forma hepatoesplênica (EHE), a
hipertensão portal ocorre tanto em função da fibrose periportal (Symmers) como
pelo hiperfluxo proveniente da veia esplênica em consequência da grande
esplenomegalia(13, 17, 25). Descreve-se correlação entre a intensidade da
fibrose periportal e os níveis de pressão na veia porta(18).
A biopsia hepática, a ultrassonografia (US) e, mais recentemente, marcadores
biológicos e a elastografia transhepática (FibroScan®) vêm sendo utilizados
para mensurar a fibrose que se desenvolve nas doenças crônicas do fígado(8, 15,
20, 22).
Na EM, a biopsia hepática em cunha, realizada a céu aberto, é o método mais
acurado para a mensuração da fibrose periportal, mas implica na realização de
laparotomia. Já a biopsia por agulha nem sempre representa o verdadeiro quadro
histopatológico, visto que a fibrose, apesar de ser difusa, varia de
intensidade no parênquima hepático(6).
A US, através da identificação do aumento do lobo hepático esquerdo e redução
do direito, do espessamento periportal, além da comprovação da grande
esplenomegalia, constitui importante ferramenta na propedêutica da EM(4, 7,
19). Em 1990, convenção da OMS realizada no Cairo classificou em três graus a
fibrose periportal na EM, e outra convenção em 1996, em Niamey, propôs nova
classificação baseada em seis padrões de A a F, que auxiliam na avaliação da
morbidade(27, 28). As duas classificações apresentam grande precisão, mas
requerem equipamentos sofisticados e examinadores qualificados, inferindo a
necessidade de que métodos mais simples sejam implementados.
Sabe-se que as células hepáticas estreladas, também chamadas células de Ito,
são as principais mediadoras da fibrose hepática e quando ativadas, se
transformam em células proliferativas e contráteis, constituindo a essência da
resposta fibrótica à agressão hepática(3, 9). Estas células são ativadas pelo
fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), pelo fator de crescimento derivado das
plaquetas (PDGF) e por citocinas fibrogênicas, tais como TGF-β, angiotensina II
e leptina(3, 9).
Acredita-se ainda que as imunoglobulinas exerçam efeito direto sobre a
fibrogênese hepática e que a imunoglobulina G (IgG) regule a diferenciação e a
proliferação das células estreladas(23). Recentemente, dois artigos
demonstraram correlação entre os níveis séricos de globulinas e de
imunoglobulinas e o grau de fibrose hepática em pacientes com hepatites virais
crônicas(21, 26).
Além das proteínas responsáveis pela fibrogênese, outras provenientes do
processo de degradação da matriz extracelular, também vêm sendo utilizadas na
avaliação da fibrose hepática, incluindo o ácido hialurônico, a laminina, o
colágeno tipo IV, a hidroxiprolina urinária, entre outras(2, 10, 11, 15, 20,
22, 29).
Em virtude da escassez de dados sobre marcadores de fibrose na EM, este estudo
teve como objetivo avaliar os níveis séricos de globulinas e de IgG, assim como
o grau e o padrão de fibrose periportal, estabelecidos pela US, empregando
tanto a classificação do Cairo como a de Niamey(27, 28).
MÉTODO
Foram avaliados pacientes com fibrose periportal relacionada à EM, atendidos no
período de novembro de 2006 a fevereiro de 2007, no Ambulatório de
Esquistossomose do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). O diagnóstico da EM foi confirmado através da história
clínica e pela presença da fibrose periportal à US.
Os critérios de inclusão foram: pacientes com fibrose periportal
esquistossomótica de ambos os sexos com idade acima de 18 anos. Foram
considerados critérios de exclusão a presença de marcadores da hepatite B ou C
(HBsAg, anti-HBc e anti-HCV), consumo de etanol >210 g/semana, ou a
identificação de outras doenças hepáticas coexistentes.
Após a análise dos critérios de inclusão e de exclusão, os pacientes foram
esclarecidos sobre os objetivos do protocolo, convidados a participar do estudo
e a assinar o termo de consentimento livre e esclarecido.
O protocolo de estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
do Centro de Ciências da Saúde da UFPE.
O desenho do estudo foi descritivo e incluiu 41 pacientes que apresentavam uma
das seguintes formas clínicas da EM: hepatointestinal (EHI), hepatoesplênica
(EHE) e hepatoesplênica pós-esplenectomia (EHE-E).
Foram preenchidas fichas com informações dos pacientes e colhido sangue em veia
periférica para a realização dos exames no Laboratório Central do HC-UFPE. Os
níveis séricos de IgG foram aferidos pelo método de imunoturbidimetria (Tina-
quant - Roche®) e os de globulinas foram indiretamente mensurados utilizando-se
o método do biureto. Foram considerados os seguintes valores de normalidade:
globulinas = 3.100 a 3.700 mg/dL e de IgG = 700 a 1.600 mg/dL.
Todos os pacientes foram submetidos, pelo mesmo examinador, ao exame
ultrassonográfico com equipamento ALOKA® SSD500 com transdutor de 3,5 MHz para
avaliação do fígado e do baço, segundo protocolos estabelecidos pela OMS. A
classificação do Cairo padronizou três graus para a fibrose periportal na EM de
acordo com a média obtida das medidas do diâmetro externo-externo de três ramos
periféricos da veia porta após a segunda ramificação: grau I >3 a 5 mm; grau II
>5 a 7 mm e grau III >7 mm(27). Já a classificação de Niamey emprega seis
padrões pré-estabelecidos de apresentação da fibrose periportal, graduados de A
a F, de acordo com a gravidade, sendo A fígado normal e F fibrose muito
acentuada(28).
A análise estatística foi realizada utilizando-se os softwares: SPSS for
Windows, versão 12.0, para a execução dos cálculos estatísticos, elaboração e
edição dos gráficos. Foram considerados estastisticamente significantes os
resultados cujos níveis foram inferiores a 5% (P<0,05).
Para avaliar os níveis séricos de globulinas e de IgG em relação ao grau de
fibrose periportal pela classificação do Cairo, utilizou-se o Teste Mann-
Whitney; quando se empregou a classificação de Niamey, utilizou-se o teste de
Kruskal-Wallis. Foram utilizados testes não-paramétricos, já que as curvas com
as dosagens dos níveis séricos de globulinas e de IgG se afastaram da
distribuição gaussiana.
RESULTADOS
As características demográficas dos 41 pacientes são as seguintes: a média de
idade foi 41 anos e a mediana 48, com variação de 23 a 73 anos; 25 pacientes
eram do sexo feminino (61%) e 16 do masculino (39%), com proporção F/M de 1,6:
1.
A Tabela_1 apresenta a distribuição das formas clínicas da EM dos 41 pacientes,
de acordo com o grau e o padrão de fibrose periportal, avaliados pela US,
empregando-se as classificações do Cairo e de Niamey, respectivamente.
Três dos 12 (25%) pacientes com a forma EHI, 12 dos 19 (63%) com a forma EHE e
6 dos 10 (60%) com a forma EHE-E apresentavam elevações dos níveis de IgG. Ou
seja, 21 (51%) dos 41 pacientes apresentavam níveis séricos elevados de IgG.
Um dos 12 (8%) pacientes com a forma EHI, 6 dos 19 (32%) com a forma EHE e 3
dos 10 (30%) com a forma EHE-E apresentavam elevações dos níveis de globulinas.
Ou seja, 10 (24%) dos 41 pacientes apresentavam níveis séricos aumentados de
globulinas.
Observou-se correlação entre os níveis séricos de IgG e os de globulinas (r =
0,78) dos 41 pacientes com EM.
As médias e medianas dos níveis séricos de IgG e de globulinas dos 41 pacientes
com EM podem ser observadas na Tabela_2 e na Figura_1. Para análise
estatística, os pacientes foram distribuídos em dois grupos, I e II/III, de
acordo com o grau de fibrose, avaliados pela US conforme a classificação do
Cairo, em virtude da ocorrência de apenas dois pacientes com grau III.
Analisando-se os resultados desta tabela, verifica-se que os pacientes com grau
II/III apresentaram níveis séricos superiores de IgG em relação aos dos
pacientes com grau I (P = 0,047).
Na Tabela_2 ainda se verifica que não houve diferenças nas médias dos níveis
séricos de globulinas proporcional ao grau de fibrose avaliado pela
classificação do Cairo (P = 0,126).
As médias e medianas dos níveis séricos de IgG e de globulinas dos 41 pacientes
com EM, distribuídos em três grupos, C, D e E, de acordo com o padrão de
fibrose periportal, avaliados pela US conforme a classificação de Niamey, podem
ser observadas na Tabela_3 e na Figura_2. Analisando-se os resultados desta
tabela, verifica-se que os níveis séricos de IgG aumentaram conforme a evolução
do padrão C para o padrão E de fibrose (P = 0,011).
Os resultados do teste de comparações múltiplas revelaram diferenças entre os
níveis séricos de IgG dos 8 pacientes com padrão C e os 20 com padrão D (P =
0,019), bem como entre os níveis dos 8 pacientes com padrão C e os 13 com
padrão E (P = 0,004). Não se observaram diferenças nas médias dos níveis
séricos de IgG entre os 20 pacientes com padrão D e os 13 com padrão E (P =
0,327). Dessa forma, percebe-se que os 8 pacientes com pouca fibrose (padrão C)
apresentaram valores menores de IgG em relação aos dos 33 com muita fibrose
(padrão D e E).
Na Tabela_3, ainda se verifica que não houve diferenças nas médias dos níveis
séricos de globulinas proporcional ao padrão de fibrose avaliado pela
classificação de Niamey (P = 0,112).
DISCUSSÃO
Casos graves de EM continuam ocorrendo atualmente, visto que 70% dos pacientes
neste estudo apresentaram a forma EHE, muitos com antecedentes de hemorragia
digestiva e de esplenectomia, associada aos graus e padrões mais avançados de
fibrose hepática (Tabela_1). Com efeito, métodos propedêuticos para aferição
precoce da intensidade da fibrose periportal, que sejam simples e possam ser
levados ao campo, para tratamento destes pacientes e prevenção primária dos
episódios de sangramento, persistem sendo necessários.
A elastografia transhepática (FibroScan®), método recente que avalia a rigidez
do parênquima do fígado, tem revelado grande correlação com a histopatologia na
mensuração da intensidade da fibrose(8). Apresenta as mesmas vantagens da US
por não ser invasivo além de avaliar várias porções do parênquima e poder ser
empregado repetidamente no seguimento dos pacientes. Mas, sua principal
vantagem é ser menos dependente do examinador ou menos subjetivo do que a US,
assim, podendo ser executado por paramédicos com treinamento mais simples e sem
a necessidade de longa experiência(8). O aparelho para realização da
elastografia, entretanto, ainda apresenta elevado custo, além de não se dispor
de dados a respeito de sua precisão na avaliação da fibrose periportal na EM.
Com a intenção de contornar as desvantagens da biopsia do fígado, mormente por
constituir método invasivo e estar sujeito a erros de amostragem, nos últimos
anos algumas substâncias envolvidas na produção ou degradação do colágeno vêm
sendo avaliadas, tanto isoladamente como em conjunto, compondo os chamados
índices, na avaliação da fibrose que se desenvolve nas doenças crônicas do
fígado(9, 14, 16, 20).
Também tem sido descrita correlação entre os níveis séricos de globulinas e de
imunoglobulinas com o grau de fibrose hepática, avaliado histologicamente nas
hepatites crônicas pelos vírus B e C(20, 25). SHEN et al.(23) verificaram que
as células hepáticas estreladas possuem receptores para o fragmento Fc da IgG e
também demonstraram em ratos que a IgG estimula diretamente, de forma dose
dependente, a atividade proliferativa das células de Ito(23).
Neste estudo foi observado que os níveis séricos de IgG foram maiores nos
pacientes com graus de fibrose periportal mais avançados, II e III (Tabela_2),
e naqueles com padrões mais acentuados, D e E (Tabela_3). Deve-se admitir,
conforme demonstrado nas hepatites virais, que a IgG desempenhe certo papel no
processo fibrogênico também na EM, e possa ser utilizada como marcador da
intensidade da fibrose periportal.
Vale lembrar que os anticorpos contra os ovos e os vermes adultos,
especialmente da classe IgG, cursam com níveis séricos mais elevados naqueles
pacientes com EM que apresentam fibrose periportal e esplenomegalia(24). Além
disso, a carga parasitária encontra-se relacionada com a evolução para as
diversas formas da EM. Foi demonstrada em pacientes jovens, até 30 anos,
correlação entre carga parasitária e grau de fibrose periportal e tamanho do
baço e do fígado(1, 10). Assim, quanto mais vermes e ovos maior será a
esplenomegalia, proporcionando maior produção de anticorpos (IgG), e maior
intensidade da fibrose periportal. De fato, no estudo ora descrito, constatou-
se que, entre 29 pacientes com EHE ou EHE-E, 18 (62%) apresentavam níveis
séricos de IgG acima do limite superior da normalidade, enquanto que esta
alteração foi observada em apenas 3 (25%) dos 12 com EHI.
Nesta série, entretanto, não foi verificada associação entre os níveis séricos
de globulinas, nem com o grau, nem com o padrão de fibrose periportal. Uma das
explicações para este achado poderia ser o tamanho da amostra, que deve ter
sido suficiente para revelar elevação significativa dos níveis de IgG paralela
ao aumento do grau e do padrão da fibrose periportal, mas foi insuficiente para
evidenciá-la entre a fibrose e os níveis de globulinas. Outra possibilidade
seria que as outras globulinas, além das imunoglobulinas, não se elevariam
acompanhando o avanço da intensidade da fibrose.
Adicionalmente, no artigo sobre a fibrose na hepatite C, descreveu-se
correlação da fibrose hepática não apenas com os níveis de IgG, mas também com
os de IgA e com o nível sérico total das imunoglobulinas(24). Já no estudo
sobre a fibrose na hepatite B, observou-se correlação tanto com os níveis de
IgG como com os de globulinas e com a contagem de plaquetas no sangue
periférico, mas não foi detectada com os níveis de IgA(19). Desta forma,
SCHMILOVITZ-WEISS et al.(21) propuseram um índice de aumento da fibrose, ou
seja, para cada 330 mg/dL de globulina deveria ocorrer aumento de 0,5 ponto no
grau de fibrose hepática pela classificação de DESMET et al.(5).
Outra enfermidade hepática que cursa, caracteristicamente, com níveis elevados
de imunoglobulinas é a hepatite autoimune, por conta da grande produção dos
autoanticorpos. Neste estudo não foram pesquisados os autoanticorpos para
afastar sorologicamente a possibilidade de doença hepática por autoimunidade,
mas a fibrose observada através da US nas doenças autoimunes é do tipo difusa,
diferente da fibrose de Symmers da EM(1, 4, 7, 10). O aspecto ultrassonográfico
da fibrose periportal é facilmente reconhecido por profissionais experientes e
que trabalham em áreas endêmicas.
Recentemente, em pacientes com EM, foi descrita correlação entre a fibrose
periportal e a contagem de plaquetas, assim como com o índice APRI, que utiliza
o nível sérico de AST dividido pelo número de plaquetas, para avaliação da
fibrose(12).
Estes índices vêm sendo cada vez mais e melhor estudados, e deverão se tornar
em futuro próximo grande ferramenta não-invasiva na mensuração da fibrose
hepática, sobretudo por poderem ser repetidos no seguimento dos pacientes.
Em conclusão, estes dados sugerem que os níveis séricos de IgG poderão
constituir novo marcador sérico para aferição do grau e do padrão de fibrose
periportal na EM. Mais estudos, envolvendo maior número de pacientes, precisam
ser desenvolvidos para confirmar estes resultados, bem como reavaliar a relação
entre os níveis séricos das globulinas e a intensidade de fibrose. Faz-se
necessária ainda a criação de um índice específico que envolva mais de um
marcador sérico, incluindo também os níveis de IgG, para mensuração da fibrose
periportal que ocorre na EM.