Associação entre lesões da mucosa gastroduodenal e Helicobacter Pylori em
pacientes com doença hepática crônica
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Associação entre lesões da mucosa gastroduodenal e Helicobacter Pylori em
pacientes com doença hepática crônica
Association between Helicobacter pylori infection and gastroduodenal lesions in
patients with chronic liver disease
Rozangela Maria de Almeida Fernandes Wyszomirska; Laércio Tenório Ribeiro;
Jackellyne Santos Monteiro; Bruno Pontes de Miranda Vidal; Roberta Maria
Pereira Albuquerque de Melo; Cláudio Torres Miranda
Departamento de Clínica Médica/Hospital Universitário Professor Alberto
Antunes, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL
Correspondência
INTRODUÇÃO
As doenças hepáticas crônicas (DHC) apresentam elevada incidência e prevalência
em todo o mundo, sendo observadas alterações da mucosa gastroduodenal, com
risco elevado para o aparecimento de úlcera duodenal em cirróticos(8, 24, 26,
31). Dentre os mecanismos fisiopatológicos postulados, destacam-se as
alterações séricas da gastrina(13, 29), com consequente aumento da secreção
ácida, mudanças no fluxo sanguíneo(28) e diminuição da secreção de
prostaglandina na mucosa gástrica(1), sendo ainda considerada a presença do
Helicobacter pylori (H. pylori)(10, 18).
A infecção pelo H. pylori é altamente prevalente, principalmente em países em
desenvolvimento(15), sendo responsável por lesões como erosões e úlceras
gastroduodenais. Em pacientes com DHC sua prevalência é controversa(7, 9, 22,
32, 35, 36), bem como a existência de associações com lesões da mucosa
gastroduodenal (LMGD)(5).
A gastropatia da hipertensão portal (GHP)(3, 30) está associada primordialmente
à hipertensão portal, caracterizando-se endoscopicamente por áreas com aspecto
em mosaico e pontos vermelhos no centro, predominantes no corpo e fundo
gástricos(21). Além disso, pode estar associada a erosões e úlceras, que
apresentam características endoscópicas semelhantes àquelas encontradas em
pacientes sem hipertensão portal.
O conhecimento da prevalência da infecção pelo H. pylori em pacientes com DHC e
o estudo da associação, ou não, com as lesões gastroduodenais, podem ser úteis
na melhor caracterização da patogênese da GHP e na avaliação de possível efeito
aditivo na produção de lesões gastroduodenais, quando estão presentes as duas
condições. VERGARA et al.(34), em estudo de metanálise, incluindo sete estudos
que avaliaram a prevalência da infecção pelo H. pylori e lesões endoscópicas
associadas em cirróticos, concluíram que a infecção pelo microorganismo esteve
presente em 60,7% dos indivíduos avaliados, com aumento do risco do
aparecimento de úlcera péptica. Entretanto, BATMANABANE et al.(2) concluíram
que a GHP não proporciona ambiente favorável à colonização pelo H. pylori,
sugerindo não haver contribuição da bactéria na patogênese da GHP.
O objetivo deste estudo foi avaliar a presença de lesões da mucosa
gastroduodenal e sua relação com H. pylori em pacientes com DHC.
MÉTODO
Pacientes
Realizou-se estudo transversal em que foram incluídos pacientes com DHC por
diversas causas, com indicação para realização de endoscopia digestiva alta por
suspeita de hipertensão portal e indivíduos com dispepsia funcional, como grupo
controle, no Ambulatório de Hepatologia do Hospital Universitário Professor
Alberto Antunes da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, no período de
janeiro de 2005 a janeiro de 2006.
Os critérios de exclusão foram: pacientes com uso prévio (até 1 mês) ou atual
de antibióticos, terapia prévia de erradicação do H. pylori, carcinoma
hepatocelular ou outras neoplasias e episódio recente (máximo de 2 semanas) de
hemorragia digestiva alta. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas e foi executado de acordo com a
Declaração de Helsinki.
Diagnóstico da doença hepática crônica
As doenças hepáticas foram identificadas como cirrose hepática secundária aos
vírus das hepatites B e C, esquistossomose mansônica e doença mista, quando
havia associação da etiologia viral com Schistosoma mansoni. O diagnóstico da
cirrose hepática foi realizado através de exame físico, alterações de exames
laboratoriais, achados de ultrassonografia e/ou biopsia hepática. A infecção
pelo vírus C foi detectada pela presença de anticorpos anti-HCV de segunda
geração e confirmada pelo HCV-RNA, enquanto que para a hepatite B foi
considerada a presença do HBSAg. O Schistosoma mansoni foi identificado pela
presença de ovos em amostra de fezes, através do método de Kato Katz, ou
pesquisa de ovos na mucosa retal e a doença hepática esquistossomótica, forma
hepatoesplênica, foi confirmada por achados de exame físico e de
ultrassonografia.
Diagnóstico endoscópico de lesões da mucosa gastroduodenal
Para a realização de endoscopia digestiva alta os pacientes e controles foram
submetidos a sedação com meperidina e midazolam, em doses que variaram de
acordo com a tolerância, visando atingir nível de sedação consciente. O exame
foi realizado pelo mesmo examinador, utilizando aparelho de videoendoscopia
Olympus. Foram admitidas como LMGD a erosão, úlcera e gastropatia da
hipertensão portal. O diagnóstico endoscópico de erosão caracterizou-se pela
identificação de solução de continuidade tecidual, plana ou elevada. A úlcera
foi identificada como lesão superficial da mucosa com base recoberta por
fibrina e bordas distintas e a GHP através da presença de áreas da mucosa com
aspecto em mosaico e pontos vermelhos no centro, predominantes no corpo e fundo
gástricos(16). Em todos os pacientes foram realizadas biopsias, sendo retirados
dois fragmentos do antro e do corpo. O material colhido foi imediatamente
fixado em formalina a 10%.
Diagnóstico histopatológico
Os fragmentos colhidos durante o exame endoscópico foram incluídos em parafina
e corados pelos métodos da hematoxilina-eosina e Giemsa, sendo o primeiro para
avaliação de infiltrado inflamatório e o segundo para pesquisa do H. pylori.
Todas as lâminas foram estudadas pelo mesmo patologista.
Análise estatística
Os dados foram construídos e analisados no banco de dados Epi-Info Windows. As
medidas de associação foram: estimativa do risco relativo - odds ratio (OR) e
qui ao quadrado corrigido. O OR foi utilizado para pesquisar a intensidade das
associações. O intervalo de confiança considerado foi de 95%.
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo 73 indivíduos, sendo 46 pacientes com DHC (39 do
gênero masculino e 7 do feminino, média de idade de 45,6 ± 12,8 anos), e 27
indivíduos do grupo controle, sem doença hepática mas com dispepsia (19 do
gênero masculino e 8 do feminino, média de idade de 45,2 ± 14,4).
As doenças hepáticas crônicas identificadas foram: cirrose hepática secundária
à hepatite B e C em 30 (65,22%), esquistossomose mansônica em 7 (15,22%) e
doença mista em 9 (19,56%) pacientes.
Trinta e oito (82,6%) dos 46 pacientes com DHC e 13 (48,1%) dos 27 controles
apresentaram LMGD, sendo observada diferença estatisticamente significante
(P<0,05). Os tipos de LMGD observados nos pacientes e controles encontram-se na
Tabela_1.
Ao se avaliar a estimativa do risco de ocorrer lesões da mucosa gastroduodenal
em pacientes com DHC, foi observado um coeficiente elevado (OR 5,12 IC 95%,
1,55-17,37), sendo essa associação estatisticamente significante (P = 0,002).
Dos 46 pacientes com DHC, 13 (28,2%) foram H. pylori positivo e dos 27
indivíduos do grupo controle, 17 (62,9%) foram positivos, sendo observada
diferença estatisticamente significante (P = 0,008).
As características demográficas e tipos de lesões dos pacientes com DHC e dos
controles, associados à presença do H. pylori estão demonstradas na Tabela_2.
Em relação ao grupo de doentes com DHC não foi observada diferença significante
entre H. pylori positivo e negativo, em relação à frequência, idade, gênero e
nem quanto ao tipo de lesões gastroduodenais, no entanto com grupo controle a
presença de H. pylori foi fator significante para o aparecimento de erosões.
A Tabela_3 mostra que a associação entre lesão na mucosa gástrica e a DHC tende
a ocorrer apenas na ausência do H. Pylori (P = 0,005; OR 13,0 IC 95%, 1,4-
327,9).
DISCUSSÃO
Embora o papel da infecção pelo H. pylori na úlcera péptica(34), câncer
gástrico(39), gastropatia congestiva(37) e encefalopatia hepática(38) tenham
sido investigados em pacientes com cirrose hepática, os dados disponíveis ainda
são escassos e contraditórios(40).
A prevalência de úlcera péptica em pacientes com cirrose hepática vem sendo
identificada entre 6% a 33%(14, 27), sendo também os pacientes com maior
associação com a gastropatia da hipertensão portal(27). Neste estudo, observou-
se que 80,31% dos pacientes com DHC apresentaram LMGD à endoscopia digestiva
alta, sendo que 16 (42,1%) apresentavam GHP, 7 (18,4%) associação de lesões e 5
(10,5%) úlcera péptica.
A prevalência de H. pylori em pacientes com cirrose apresenta grande variação,
entre 26% e 89%(17, 19). Ao se avaliar os efeitos da erradicação de H. pylori
em doentes com cirrose hepática, LO et al.(14) observaram prevalência da
bactéria de 52% e QUEIROZ et al.(25) avaliando pacientes portadores de vírus C
encontraram prevalência de H. pylori de 70,2% em cirróticos e 47,5% em
pacientes não-cirróticos. No presente estudo, encontrou-se prevalência de H.
pylori de 28,2% em pacientes com DHC por diversas causas e de 62,7% no grupo
controle, de indivíduos dispépticos. Em estudo de metanálise, GISBERT et. al.
(9) observaram resultados semelhantes, com prevalência do H. pylori em
pacientes com hepatopatia crônica e lesão de mucosa gastroduodenal, igual ou
até menor, quando comparado aos pacientes com lesão de mucosa gastroduodenal e
sem doença hepática crônica. Fator que poderia contribuir com os resultados
discordantes entre os estudos seria a utilização de métodos diferentes para a
identificação do H. pylori, inclusive a sorologia(22, 23), que em pacientes
cirróticos pode superestimar a prevalência da bactéria, já tendo sido
demonstrada baixa sensibilidade e especificidade nesse grupo de pacientes(40).
Outro aspecto importante no presente estudo é que não foi observada diferença
significante entre os grupos H. pylori negativo e H. pylori positivo, em
relação à média de idade, gênero, presença ou ausência de lesões da mucosa
gastroduodenal, independente do tipo de lesão. Esses resultados foram
semelhantes aos encontrados por LO et al.(14). No entanto, CHEN et al.(4)
encontraram uma expressão do antígeno de H. pylori na mucosa de pacientes com
DHC em 69% dos pacientes, sendo que a extensão e a intensidade de inflamação
crônica do antro foram observadas em 95,5% dos pacientes com DHC, recomendando
o tratamento precoce da bactéria nesse grupo específico de doentes.
Os resultados desta casuística demonstraram uma associação entre LMGD e DHC,
com risco de 5,1 vezes para o aparecimento das lesões, mas a análise
estratificada mostrou que essa associação é mais intensa quando o H. pylori
esteve ausente. Esse resultado sugere que o H. pylori pode não ser fator de
risco fundamental para o aparecimento de LMGD em pacientes com DHC, devendo, no
entanto, ter papel secundário, que necessita ser definido. QUEIROZ et al.(25)
demonstraram em seu estudo que a infecção por H. pylori e a idade foram fatores
associados com cirrose hepática em portadores de vírus C, sugerindo que
pacientes com cirrose hepática secundária à infecção pelo vírus C podem ser
mais susceptíveis à infecção pelo H. pylori, que em pacientes sem cirrose
hepática. Os pacientes com DHC, independente da causa, podem ter alterações na
resposta imune(6, 11, 20), aumentando a susceptibilidade de adquirir infecções.
Além disso, são pacientes submetidos a endoscopia digestiva alta com mais
frequência que a população geral(26, 29), fator esse que aumenta o risco de
adquirir infecção por H. pylori(12, 33). Por fim, a hipertensão portal que se
instala em pacientes com DHC não pode ser negligenciada, já tendo sido
demonstrado que pacientes com cirrose e história de sangramento digestivo têm
mortalidade maior que os pacientes sem cirrose. CHEN et al.(4) observaram que a
incidência de úlcera péptica aumenta em 44%, quando a cirrose hepática associa-
se com a presença de varizes de esôfago.
CONCLUSÕES
Os resultados demonstram interação significante entre a associação de LMGD em
pacientes com DHC, independente da causa desta última e da presença do H.
pylori. Esses resultados estimulam a realização de futuros estudos para melhor
clarear o papel do H. pylori na patogênese da doença hepática e o
estabelecimento das possíveis relações com a hipertensão portal, resposta imune
e outros.