Associação entre gradiente de pressão portal e ascite em pacientes com cirrose
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Associação entre gradiente de pressão portal e ascite em pacientes com cirrose
Relationship between portal pressure gradient and ascites in cirrhotic patients
Sirlei DittrichI; Angelo Alves de MattosII; Ângelo Zambam de MattosII;
Alexandro Vaesken AlvesII; Fernanda Branco de AraújoII
IServiço de Gastroenterologia Clínica e Cirúrgica, Irmandade Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre, RS
IIDisciplina de Gastroenterologia, Universidade Federal de Ciências da Saúde,
Porto Alegre, RS
Correspondência
INTRODUÇÃO
A hipertensão portal (HP) é uma síndrome clínica caracterizada por aumento
patológico na pressão venosa portal e pela formação de colaterais
portossistêmicas, através das quais ocorre desvio do fluxo sanguíneo portal
para a circulação sistêmica(6). A causa da HP é vasta, porém, em países
desenvolvidos, a cirrose é a principal causa, sendo responsável por mais de 90%
dos casos(6). A principal complicação da HP é a hemorragia digestiva por
ruptura de varizes gastroesofágicas(2), no entanto, exerce papel fundamental na
patogênese da ascite.
A ascite é a complicação mais comum da cirrose(3). Seu desenvolvimento ocorre
em torno de 50% dos pacientes em 10 anos de acompanhamento, empobrecendo o
prognóstico dos mesmos, uma vez que sua presença empresta mortalidade de 50% em
3 anos(3).
A presença de ascite não se deve exclusivamente à HP, embora ela seja o
principal fator, sem o qual não é iniciada toda a série de eventos patogênicos
envolvidos em seu desenvolvimento.
A avaliação da presença de HP pode ser feita a partir de dados clínicos,
laboratoriais, procedimentos endoscópicos e imagéticos, mas a medida da pressão
portal é o procedimento mais apropriado para avaliar sua real elevação(5, 8,
11, 12, 13, 15, 23).
Tem-se preferido a determinação da pressão portal através de método indireto.
Nesse caso, utilizam-se pontos de referência internos, como a pressão da veia
cava inferior ou da veia hepática, determinando-se, então, um gradiente de
pressão venosa portal(25). O método indireto de medida utilizado que reflete de
forma fidedigna a pressão venosa portal é a pressão venosa hepática ocluída,
pois ocluíndo-se um ramo da veia hepática, a pressão medida será a do espaço
sinusoidal. Essa técnica foi desenvolvida por Myers e Taylor(25) e tem sido a
mais utilizada para tal. Nesse método, o ponto de referência é a pressão venosa
hepática livre, medida na junção da veia hepática e/ou na veia cava inferior. A
medida da pressão venosa hepática ocluída e livre fornece gradiente entre essas
duas pressões, o gradiente de pressão venosa hepática (GPVH), que é um método
indireto, simples e seguro para a avaliação da pressão portal, que vem sendo
utilizado há mais de 50 anos(2, 4, 14, 16, 15, 31).
Em indivíduos normais, o gradiente entre a pressão venosa hepática ocluída e
livre varia de 1 até 4 ou 5 mm Hg. Acima desses valores, considera-se existir
HP.
Alguns estudos(24, 30) correlacionam o GPVH com o surgimento de ascite em
pacientes cirróticos, sendo utilizado como valor crítico discriminativo o de 8
mm Hg, abaixo do qual não se desenvolveria o derrame peritonial.
Este estudo teve como objetivo avaliar a medida da pressão portal, realizada
através do GPVH e a presença de ascite em pacientes com cirrose.
MATERIAL
Em período de 5 anos consecutivos foram estudados 83 pacientes com hepatopatia
crônica internados na enfermaria de Gastroenterologia e Hepatologia da
Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, RS, através de estudo
hemodinâmico hepático, realizado no Serviço de Hemodinâmica da mesma
instituição. Todos realizaram o referido estudo com o intuito de avaliar o GPVH
antes da introdução da terapia farmacológica na profilaxia do sangramento
decorrente da ruptura de varizes gastroesofágicas. Estes pacientes iniciaram
terapia farmacológica por terem história de sangramento prévio, por ruptura de
varizes gastroesofágicas (68,7%) ou por terem varizes de grosso calibre
(31,3%).
O diagnóstico de cirrose foi confirmado por dados clínicos, laboratoriais e
ecográficos e/ou exame anatomopatológico, sendo que este foi realizado em 16,9%
dos pacientes. O exame anatomopatológico não foi realizado em um número maior
de pacientes por alteração severa da coagulação ou pela riqueza dos dados
clínicos, laboratoriais e/ou ecográficos a sugerirem o diagnóstico de cirrose.
Para ser definida a causa viral da hepatopatia crônica foram realizados o anti-
HCV e o HBsAg. A causa alcoólica foi definida quando houvesse ingestão maior de
80 gramas de etanol por dia, durante período igual ou superior a 5 anos(14, 27,
35).
Na avaliação da função hepatocelular foi utilizada a classificação de Child-
Pugh(29).
MÉTODOS
Todos os pacientes realizaram estudo ecográfico para a identificação de ascite
e foram submetidos a estudo hemodinâmico hepático para determinação do GPVH.
A cateterização da veia hepática foi obtida através de punção da veia femoral.
A pressão venosa hepática foi medida através da colocação de um cateter
radiopaco na veia hepática sob controle radioscópico. Conectado ao cateter
estava um fisiógrafo, que registrava curva de pressão. A pressão venosa
hepática ocluída foi mensurada com a ponta do cateter bloqueando um ramo da
veia hepática. Confirmou-se a posição correta de oclusão da mesma através dos
seguintes critérios, seguindo os preceitos sugeridos por Groszmann et al.(15):
1. presença de curva de pressão estável; 2. ausência de refluxo de material de
contraste para a veia hepática, ou seja, era injetado contraste, que deveria
progredir e opacificar o leito sinusoidal e não refluir; 3. queda importante da
pressão na retirada do cateter, ou seja, o cateter era tracionado e dever-se-ia
registrar diminuição na curva de pressão. Em geral, as medidas da pressão
venosa hepática ocluída em diferentes veias hepáticas, em pacientes com
cirrose, são idênticas. Assim, o valor obtido inicialmente era confirmado pela
oclusão de um segundo ramo da veia hepática pelo cateter. Se houvesse
discrepância entre os dois valores, a pressão ocluída era mensurada novamente
em uma terceira veia hepática. O terceiro valor, usualmente idêntico a um dos
dois prévios, foi usado como valor final. A pressão venosa hepática livre foi
mensurada na junção da veia hepática e da veia cava inferior ou na veia cava
inferior(15). O GPVH foi obtido através da diferença entre a pressão venosa
ocluída e livre.
Os seguintes critérios foram observados como contraindicação à realização do
estudo hemodinâmico: idade menor de 18 anos, gravidez, mau estado geral,
encefalopatia portossistêmica, peritonite bacteriana espontânea, hemorragia
digestiva aguda, insuficiência cardíaca grau IV, insuficiência respiratória
grave, alterações hemodinâmicas graves, atividade de protrombina abaixo de 50%,
contagem de plaquetas abaixo de 50000 cel/mL. Ressalte-se haver estudo recente
que concluiu que a atividade anormal de protrombina não estava relacionada com
aumento no risco de sangramento após angiografia(34).
A não-canulação da veia hepática por problemas técnicos, também constituiu
critério de exclusão.
Este projeto foi submetido a analise da Comissão de Ética da Irmandade Santa
Casa de Misericórdia de Porto Alegre, sendo exigido de todos os pacientes
consentimento informado para a realização do estudo.
Na avaliação estatística foi utilizado o teste exato de Fisher, sendo empregado
o programa SPSS 8.0. Foi considerado erro alfa de 5% (P<0,05). As variáveis
quantitativas foram apresentadas em forma de média e desvio-padrão e as
variáveis categóricas em forma de frequência e percentagem.
RESULTADOS
Dos 83 pacientes, 59 (71,1%) eram homens e 24 (28,9%), mulheres. A idade variou
de 26 a 75 anos, tendo média de 52,9 anos, com desvio-padrão de 10,1 anos. Em
relação à cor, 71 pacientes (85,5%) eram brancos e 12 (14,5%), pretos.
Quanto à etiologia, em 25 pacientes (30,1%), o álcool era o único fator
envolvido na causa da hepatopatia; em 26 (31,3%), o álcool estava associado aos
vírus da hepatite B ou C; em 28 (33,7%), a causa era associada à hepatite pelos
vírus B ou C; a cirrose foi considerada criptogênica em 4 pacientes (4,8%).
Os pacientes estudados foram divididos em grupos conforme a classificação de
Child-Pugh. Assim, 23 pacientes (27,7%) eram Child A, 48 (57,8%) eram Child B,
11 (13,3%) eram Child C e em 1 (1,2%) não se obteve este dado por extravio do
registro.
Dos 83 pacientes, 57 (68,7%) haviam apresentado sangramento prévio por ruptura
de varizes e 26 (31,3%) tinham varizes de grosso calibre, mas nunca haviam
sangrado.
Na população de pacientes avaliados, observou-se ascite em 70 doentes (84,3%).
Avaliando o estudo hemodinâmico nos 83 pacientes hepatopatas crônicos, viu-se
que a média geral do GPVH foi de 15,26 ± 6,46 mm Hg.
Não houve diferença estatisticamente significante (P= 0,061) quando avaliadas
as médias do GPVH nos pacientes com (14,70 ± 6,43 mm Hg) e sem ascite (18,64 ±
5,78 mm Hg).
Foi utilizado nível de corte para se avaliar o risco do desenvolvimento de
ascite, para tal, utilizou-se o valor de 8 mm Hg. Entre os pacientes que
apresentaram o GPVH superior a 8 mm Hg, o risco relativo do desenvolvimento de
ascite foi de 0,876 (0,74-1,03), P= 0,446.
A fim de se calcular o valor preditivo positivo e negativo para a medida de 8
mm Hg para a presença de ascite, os dados estão resumidos no seguinte:
O valor preditivo positivo calculado do GPVH de 8 mm Hg para presença de ascite
foi de 83%, enquanto que o valor preditivo negativo foi de 8%.
DISCUSSÃO
A HP é definida como uma elevação do gradiente de pressão portal que exceda 5
mm Hg(6).
A medida dos níveis da pressão portal, através do GPVH, pode auxiliar no
diagnóstico da HP (5, 15, 19), na avaliação do risco de sangramento por ruptura
de varizes gastroesofágicas(11, 14, 34, 35), na avaliação de eficácia do
tratamento de sua maior complicação, o sangramento por varizes gastroesofágicas
(1, 17, 33, 34), na decisão terapêutica em casos de ressecção hepática(10, 20)
e na avaliação do prognóstico dos pacientes(1, 2, 22, 34, 35).
A despeito do GPVH não ser realizado na avaliação diagnóstica da ascite,
observação feita é a de que os níveis do GPVH se correlacionam com o surgimento
de ascite(24, 30).
Assim, Morali et al.(24), ao avaliarem 522 cirróticos com e sem ascite,
observaram que nenhum dos pacientes com ascite apresentava pressão sinusoidal,
medida através de avaliação hemodinâmica por via transjugular, menor de 8 mm
Hg.
Rector(30), por sua vez, avaliou a pressão portal em 124 pacientes com doença
hepática crônica e também observou que a mais baixa medida de pressão portal
verificada em pacientes com ascite foi de 8 mm Hg.
Dois estudos(1, 35) sobre prevenção do sangramento por varizes de esôfago,
observaram que o risco de desenvolvimento de ascite foi menor nos pacientes
respondedores ao uso de beta-bloqueadores. Sugere-se, assim, que, ao se
baixarem os níveis da pressão do sistema porta, diminui-se a probabilidade dos
pacientes desenvolver derrame peritonial.
No presente estudo, a alta percentagem de pacientes com cirrose e ascite é
explicada pelo fato dos mesmos estarem internados em serviço de referência em
hepatologia, muitos dos quais em avaliação para transplante hepático. Quando
foram comparadas as médias do GPVH nos 83 pacientes com e sem ascite, não houve
diferença significante entre tais valores. Além disso, foram observados 11
pacientes com ascite e GPVH inferior a 8 mm Hg (valor preditivo negativo = 8%),
contrariando os estudos anteriormente citados(24, 30).
A medida da pressão portal pode oferecer resultados heterogêneos, influenciados
por múltiplos fatores. Assim, quando avaliados pacientes com cirrose decorrente
do uso de álcool, parece que a determinação do GPVH é mais fidedigna do que
quando avaliados pacientes em que a hepatopatia é decorrente de vírus, quando a
pressão estaria subestimada(7, 28). Por outro lado, mesmo em população de
pacientes em que o álcool está implicado na gênese da hepatopatia, na
dependência de sua supressão, pode haver diminuição dos níveis pressóricos(2,
17, 21, 36). Estudos experimentais têm demonstrado que a administração de
etanol aumenta o fluxo sanguíneo esplâncnico em ratos normais e com HP, assim
como em pacientes cirróticos. Além disso, tem sido demonstrado que o etanol tem
efeito vasoconstritor na microcirculação hepática. A combinação do aumento do
fluxo portal e da resistência vascular hepática leva a aumento da pressão
portal(9, 21, 32). Logo, a abstinência resulta em queda do GPVH. Ressalte-se
que a pressão portal também sofre oscilações, dependendo do período, na
história natural da hepatopatia, em que é realizada, sem que haja justificativa
para o fato(17).
A despeito desses fatores, os achados do presente estudo sugerem, além da HP, a
participação mais efetiva de outros mecanismos na fisiopatologia do derrame
peritonial desta população de pacientes. A HP e níveis baixos de albumina
sérica contribuem para o aparecimento de ascite, porém há outros fatores
envolvidos, concorrendo para a precipitação das alterações hemodinâmicas, em
nível sistêmico e em nível renal, decorrentes da liberação de substâncias
vasoativas, e culminando com retenção de sódio e de água(26).
CONCLUSÃO
Concluí-se, no presente estudo, que nível pressórico de 8 mm Hg, determinado
pelo GPVH, não revela de forma definitiva a presença ou ausência de ascite no
paciente cirrótico e que, tendo em vista a similitude das médias de pressão dos
pacientes com e sem derrame peritonial e o baixo valor preditivo negativo deste
valor, não se pode definir um ponto de corte para o surgimento de tal
complicação.