Algoritmos diagnósticos da Fundação Roma para sintomas gastrointestinais
comuns: apresentação
INTRODUÇÃO
Algoritmos diagnósticos da Fundação Roma para sintomas gastrointestinais
comuns: apresentação
Carlos F. Francesconi
Professor Associado do Departamento de Medicina Interna da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul; Chefe do Serviço de Gastroenterologia do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre; Professor Titular do Departamento de Medicina Interna
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul / Porto Alegre, RS,
Brasil
Em 1996, o Dr. Don W. Powell, então Presidente da Associação Americana de
Gastroenterologia e cientista de reconhecida fama no meio científico mundial,
escreveu no livro, texto que seria reconhecido como "o livro dos critérios do
Roma I": "Este livro relata e estabelece a ciência das enfermidades
gastrointestinais funcionais". Dessa forma, há apenas 16 anos os distúrbios
funcionais do tubo digestivo começaram a ser reconhecidos como doenças clínicas
reais. Como posteriormente Thompson referiu, foi concedida aos pacientes a
legitimidade de um diagnóstico. O Quadro_1 mostra como foi a evolução das
versões escritas em livros-texto, das versões dos critérios de Roma I, II e
III.
![](/img/revistas/ag/v49s1/a02qua01.jpg)
Durante muitos anos os chamados "critérios de Roma" sofreram algumas críticas
por tratarem de conceitos não validados na prática clínica e, por serem
excessivamente dirigidos para fins de pesquisas, tanto epidemiológicas como
clínicas e, para o desenvolvimento de novos fármacos.
Há 2 anos, visando superar estas limitações de aplicação prática dos critérios,
a Fundação Roma publicou na forma de suplemento no periódico American Journal
of Gastroenterology, uma série de algoritmos clínicos para as manifestações do
trato gastrointestinal encontrados com mais frequência dentro da prática
médica.
É motivo de grande alegria ver estes algoritmos serem traduzidos para língua
portuguesa e, serem oferecidos para a classe médica brasileira.
John E. Kellow, editor convidado a desenvolver este projeto, define algumas
premissas que são básicas para o entendimento do conjunto textual:
1. Os distúrbios funcionais do trato gastrointestinal (DFTGI) são,
por definição, entidades clínicas nas quais inexistem alterações
estruturais que possibilitem o seu diagnóstico de forma pontual. Não
existem biomarcadores diagnósticos. Na prática clínica, à semelhança
das doenças psiquiátricas e da fibromialgia, o diagnóstico deverá
necessariamente ser realizado com base na anamnese quanto aos
sintomas e/ou sinais por eles apresentados. Ainda não existem
explicações fisiopatológicas que elucidem a expressão clínica dessas
doenças. Porém, reconhece-se a relevância de interações complexas de
alterações no sistema nervoso (central, autonômico, entérico e
periférico) com as fibras musculares lisas do trato digestivo, bem
como da microflora bacteriana digestiva, de ações de hormônios,
neuromediadores e moléculas de transmissão (como, por exemplo, a
serotonina), de variáveis genéticas e psicossociais.
2. Existem claros benefícios para um diagnóstico positivo dos DFTGI.
Como consequência da "legitimação" destes, feita de forma afirmativa
pelos médicos, os pacientes poderão ficar mais tranquilos por não
receberem mais os rótulos depreciativos de que todos "os sintomas são
da cabeça", "dos nervos", ou "psicológicos". Ao mesmo tempo, os
tratamentos para as diferentes entidades poderão ser individualizados
ou abordados de forma semelhante, quando a base fisiopatológica
sugerir elementos comuns (por exemplo, antidepressivos quando a
hipersensibilidade visceral estiver presente em entidades como a dor
torácica de origem não-cardíaca, a dispepsia com predomínio da dor
epigástrica e na síndrome do intestino irritável). Por outro lado, o
reconhecimento da complexidade fisiopatológica dos DFTGI, deixa claro
que dificilmente um único fármaco seja capaz de tratar os seus casos
clinicamente mais graves. Progressivamente tem se reconhecido a
relevância da interação médico-paciente na ajuda do controle destas
doenças, na medida em que a devida atenção às variáveis psicossociais
é prestada pelos médicos. Existem evidências que muitos circuitos
presentes no Sistema Nervoso Central e, que são responsáveis pela
percepção dos sintomas digestivos, possam ser alterados de maneira
positiva por intervenções não farmacológicas, como por exemplo, com a
psicoterapia e hipnose.
3. Por que a alternativa de criar os algoritmos? Como citado
anteriormente, a Fundação Roma sentiu a necessidade de se aproximar
dos médicos da "linha de frente", diante das críticas feitas ao longo
do tempo de se ter criado instrumentos com relação aos DFTGI mais
dirigidos à pesquisa.
Algoritmos podem ser definidos como "diagramas de fluxo, que consistem em
ramificação de vias lógicas, que permitem a aplicação cuidadosa de critérios
definidos para a tarefa de identificar ou classificar diferentes tipos de uma
entidade" (Hadorn DC. Use of algorithms in clinical guideline development.
Agencyfor Health Care Policy and Research. AHCPR pub. no. 95-0009. Clinical
Practice Guideline Development: Methodology Perspectives, pp93-104.Rockville,
MD, January 1995). A fundação Roma teve o cuidado de construí-los a partir de
casos médicos representativos de condições clínicas frequentemente encontradas
na prática cotidiana da medicina ambulatorial. Seguem rigorosamente uma árvore
de decisões dicotômicas onde cabem duas alternativas de resposta: sim ou não.
São 15 cenários apresentados; são sempre valorizados os critérios clínicos para
diagnóstico destas doenças funcionais e, são apresentadas sugestões de
alternativas de investigação clínica ou intervenção terapêutica, sempre com uma
justificativa científica para sua consecução.
São empregadas as formas gráficas tradicionais de apresentação de algoritmos:
são utilizados três diferentes tipos de "caixas". Essas são: (a) a caixa de
estado clínico (retângulo "arredondado"), para descrever o sintoma ou sintomas
clínicos iniciais e para delinear no corpo do algoritmo, o estado do paciente
ou de diagnóstico, (b) a caixa de decisão (hexágono), para solicitar uma
decisão diagnóstica, com uma entrada de caminho e com caminhos de saída "sim" e
"não" e, (c) a caixa de ação (retângulo), para designar um diagnóstico ou uma
ação terapêutica (Figura_1).
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Dr. Kellow enfatiza em sua apresentação introdutória aos algoritmos, que as
comissões que neles trabalharam se preocuparam em apresentar aquilo que foi
considerado como "padrão", a partir do ponto científico da apresentação dos
elementos dos algoritmos. Nesse sentido, foram considerados a validade,
reprodutibilidade, confiabilidade, clareza, aplicabilidade e flexibilidade
clínicas, eficácia, custo-efetividade e documentação apropriada. Evidentemente
que características das práticas médicas devem ser levadas em consideração no
nosso meio: nem todos os recursos diagnósticos eventualmente propostos estão
acessíveis na nossa realidade assistencial. Preocupados com este fato, condutas
práticas menos sofisticadas muitas vezes são apresentadas (Quadro_2).
[/img/revistas/ag/v49s1/a02qua02.jpg]
Há que se ter presente que os algoritmos não pretendem substituir o raciocínio
clínico dos médicos, "engessando-os" em rotinas rígidas. Eles são úteis somente
para auxiliá-los na elaboração deste raciocínio, enriquecendo-os com
alternativas nas condutas diagnósticas e terapêuticas.
Cabe fazer referência a algumas questões editoriais que dizem respeito à
tradução de termos médicos.
a. Optou-se por traduzir heartburn por pirose, evitando-se o termo
azia por ser menos específico e, apresentar diferentes significados
em diferentes regiões do Brasil;
b. A palavra "bloating" foi traduzida como empachamento ou
estufamento. Reconhece-se que em algumas regiões a palavra
empanzinamento também poderá ser utilizada para traduzir este
sintoma;
c. Quando é referido "uso de drogas", foi esclarecido com o editor
que abuso de álcool também deverá ser considerado como elemento deste
grupo;
d. A palavra lump foi traduzida como bolo. Em algumas regiões do
Brasil, é utilizada a palavra bola e, de maneira mais elegante, é
utilizada também a palavra latina globus ou, sua versão portuguesa
globo.
Agradeço à Fundação Roma por permitir a tradução deste material para a classe
médica brasileira e, ao laboratório Takeda, por proporcionar a edição deste
suplemento através de um apoio irrestrito à sua publicação.
A minha expectativa é que seu uso resulte em melhor atendimento aos pacientes
com distúrbios funcionais digestivos do nosso país, pela repercussão positiva
que os algoritmos podem trazer aos médicos: legitimizam o diagnóstico positivo
dos pacientes e podem tornar a investigação destas situações mais custo-
eficientes, resultando em melhor atenção, propiciando a este grupo de enfermos
melhor qualidade de vida.