Saúde da família na pós-graduação: um compromisso ético interdisciplinar na
pós-modernidade
TRABALHOS ENCOMENDADOS
Saúde da família na pós-graduação: um compromisso ético interdisciplinar na
pós-modernidade
Rosane Gonçalves NitschkeI; Ingrid ElsenII
IEnfermeira, Doutora em Filosofia de Enfermagem pela UFSC-SORBONNE, Professora
Adjunto do Departamento de Enfermagem da UFSC, Coordenadora do Núcleo de
Pesquisa e Estudos sobre o Quotidiano e Saúde de Santa Catarina (NUPEQS-SC) e
do Projeto de Extensão NINHO: criando um espaço para assistir
transdisciplinarmente a família; membro do Grupo de Assistência, Pesquisa e
Educação em Saúde da Família (GAPEFAM)
IDoutora em Enfermagem pela Universidade da Califórnia; Professora do Programa
de Pós-Gradução em Enfermagem da UFSC; Coordenadora do Grupo de Assistência,
Pesquisa e Educação em Saúde da Família (GAPEFAM)
COMEÇANDO A REFLETIR SOBRE A QUESTÃO
Desde meados dos anos 80, a temática Saúde da Família tem sido foco de nossa
atenção seja na assistência, ensino ou na pesquisa, traduzindo-se pela produção
crescente de teses de doutorado, dissertações de mestrado, trabalhos de
conclusão de curso de graduação e monografias de especialização, artigos em
periódicos, seja como fruto de uma prática assistencial, ou de execução de
projetos de extensão junto à família onde ela se encontre: instituições de
saúde, comunidade, no seu domicílio, entre outros. Deste modo, percebese que,
nestas duas décadas, a questão Saúde da Família tem se desenvolvido tanto na
graduação, como na Pós-graduação de Enfermagem, sendo neste último nível de
modo mais expressivo.
Uma década mais tarde, mais precisamente em 1994, a partir do denominado Ano
Internacional da Família, o tema Saúde da Família tem estado mais presente no
nosso dia-a-dia, na medida que os órgãos governamentais o colocaram
inicialmente como programa e, mais recentemente, como uma estratégia para
reorientação do modelo assistencial (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1998), sendo proposta
sua integração tanto a nível de graduação, como de Pós-graduação, com
indicações de cursos de especialização, residência, bem como mestrado e
doutorado.
Frente a esta situação e desenvolvendo atividades na Pós-graduação, ora como
estudante, ora como docentes, passamos a nos perguntar: afinal, por quê pensar
saúde da família na pós-graduação? Assim, delineamos nosso objetivo aqui:
despertar uma reflexão sobre saúde da família no âmbito da pós-graduação.
Alguns autores (Gillis et al 1989) já colocaram que, enquanto a graduação
prepara profissionais para cuidar de famílias, a pós-graduação assume o papel
de oferecer formação para terapia com famílias, no que se refere à
especialização. Já a nível de mestrado e doutorado, a pós-graduação assume o
desenvolvimento do conhecimento, destacando-se, entre outras questões, as
conceituals, éticas, a partir de pesquisas. Para provocar o debate, colocamos
que aimportância da temática saúde da família na pós-graduação reside na
questão de ser um compromisso ético dos profissionais da saúde, bem como das
universidades e órgãos governamentais frente à população. Entretanto, antes é
preciso refletir sobre a noção de saúde da família ou saúde familial1 bem como
sua relação com família saudável.
SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA NOÇÃO EM QUESTÃO
Se a compreensão da família passa por diferentes olhares, a saúde da família
também pode acolher diferentes definições, dependendo da visão de mundo de cada
um. De acordo comBomar (1990), embora exista dificuldade desenvolver uma noção
de saúde da família, muitas definições envolvem diferentes dimensões podendo
ser tanto biológicas, psicológicas e sociológicas como espirituais, dentro de
um contexto cultural no qual a família interage, ao experenciar bem-estar ou
doença, destacando que saúde da família é mais do que a ausência de doença.
Assim como há a saúde de indivíduos, também podemos falar em saúde da família e
família saudável, conforme já se destacou em trabalhos anteriores( Nitschke,
1991 eNltschke, 1995). Deste modo, segundoGillis (1989), apesar de os
indivíduos (membros participantes e componentes da família) serem interativos,
a saúde desses indivíduos distingue-se da saúde da família.
Entretanto, se esta diferença é melhor acentuada entre a saúde do indivíduo e
saúde da família, o mesmo já não se percebe quando os autores tratam de saúde
da família e família saudável. Conforme Bomar (1990), as definições de saúde da
família e família saudável derivam-se de uma variedade de marcos conceituals e
teóricos.
Gillis (1989), citando o trabalho de Bawrnhill, também aborda as dimensões da
saúde da família, referindo que são organizadas em quatro áreas: identidade de
processos; mudanças; processamento de informação e estruturação de papéis.
Os terapeutas familiares definem a família saudável como aquela que é livre de
psicopatologias e que tem um ótimo funcionamento familiar. Portanto, considera-
se como saudável a família que tem um equilíbrio de coesão, flexibilidade e uma
comunicação funcional.
Por sua vez, os teoristas desenvolvimentistas, estabeleceram que as famílias
são saudáveis quando estão cumprindo tarefas de desenvolvimento no tempo
apropriado. Ainda, segundoBomar(1990), a família saudável pode ser aquela que
possui como característica a habilidade para enfrentar ostress.
ConformeBomar (1990), numa pesquisa realizada com 551 profissionais que
trabalham com famílias, Curran observou que as características mais citadas de
uma família saudável são: os membros comunicam-se (escutam um ao outro), e dão
suporte um ao outro; há o ensinamento de respeito de um pelo outro; desenvolve
o senso de unidade; possui senso de humor e para brincar; exibe um senso de
responsabilidades partilhadas; ensina um senso de certo e errado; possui um
forte senso de família rico em rituais e tradições; existe um equilíbrio de
interação entre os membros; possui um centro religioso; há o respeito pela
privacidade do outro; existem valores de ajudar o outro; cria um tempo para
família à mesa para conversar; partilha tempo de lazer; e admite solicitar
ajuda quando está com problemas.
Dentro da perspectiva interacionista, segundoDelaney (1986), família saudável é
aquela que possui canais abertos de comunicação, regras flexíveis, auto-
valorização elevada, e negociações bem sucedidas com elementos externos à
família.
Pratt (1989), segundoGillis, caracteriza a família saudável examinando seus
laços com a comunidade, a interação entre os membros da família, a estrutura de
papéis, a liberdade e as responsabilidades. Estas duas últimas autoras chamam
nossa atenção para o aspecto de que quando a saúde envolve família, não é
possível, limitá-la às suas interações internas, sendo essencial enfocar suas
relações com o campo exterior, como seu ambiente, sua comunidade.
Para aquecer a reflexão, podemos resgatar a discussão, já levantada em tese
(Nitschke, 1999), quanto à saúde e saudável, retomando o conceito proposto na
VIII Conferência Nacional de Saúde2, ocorrida em 1986, tornando-se base ao
sistema de saúde vigente. Deste modo, podemos dizer que os profissionais que
trabalham na saúde da família, tem a finalidade de contribuir para se ter o que
nasce e se origina das das condições de alimentação, habitação, educação,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso à
posse de terra e acesso a serviços de saúde. E, assim, antes de tudo, o
resultado das formas de organização social de produção, as quais podem gerar
desigualdades nos níveis de vida"3., facilitando-se o processo deser família
saudável.
Penna (1996)4 levantou a discussão sobre os aspectos resultantes e resultados
trazidos pela VIII Conferência Nacional de Saúde. Entretanto, se entendermos
resultante, como o que emerge do verbo resultar5, como algo nascente,
proeminente, original, tornar-se e, não como uma conseqüência lógica, acredita-
se que existe uma relação entre as condições para ser família saudável e as
condições para ter saúde. Todavia, ser família saudável, exige algo mais: as
nuanças doser-estar junto com.
Retomando algumas famílias, é possível concordar com Penna6 quando diz que
«saúde é do ter, saudável do ser... para ter saúde é preciso adquirir; para ser
saudável, é preciso sentir»7. Entretanto, as famílias não vêm o ser saudável
como qualidade de saúde, comoMeleis (1992), já que colocam a saúde como
componente do seu ser saudável. Para elas, é preciso sentir-se bem, mas também
ter... Vê-se que enfocar a saúde da família é mergulhar num mar de
diversidades, no que se refere à sua compreensão, mas é sobretudo, mergulhar na
sua rede de interações, tanto intra quanto extra-familiais, o que vale dizer
trazer à tona suas necessidades, suas potencialidades, suas forças, traçando
sua rede e suporte social, envolvendo a sua comunidade, seu ambiente, seu
território, seu planeta, situandoa num tempo e num espaço, enfim,
contextualizando-a.
SAÚDE DA FAMÍLIA NA PÓS-GRADUAÇÃO: UMA QUESTÃO DE COMPROMISSO ÉTICO
Dentro do nosso entendimento, um dos papéis da Pós-Graduação tem sido o de
capacitar profissionais, comprometidos eticamente, para a produção,
desenvolvimento e divulgação do conhecimento, em nível avançado, que subsidie a
prática, o ensino e a pesquisa na área cia saúde.
Mas o que é estar comprometido eticamente?
Para nos aproximar de nossa compreensão, podemos resgatarSavater (1994), quando
afirma que a primeira exigência ética é a de construir uma boa existência, uma
boa vida humana que, para ser tal, só poderá ser vivida entre outros seres
humanos. Assim, temos entendido ética como aquele "compromisso social,
profissional e científico que o pesquisador tem com a melhoria da qualidade de
vida da população" (Elsen; Nitschke, 1994, p.9)
Em outros trabalhos (Caponi; Elsen; Nitschke; 1995,Nitschke,1999), destacamos
algumas dimensões do compromisso ético como:estarem sintonia com as
necessidades, avanços, problemas, enfim a realidade das pessoas, dos grupos, da
comunidade, da nação e do mundo; buscar respostas aos problemas e desejos, ou
seja, criar, desenvolver e organizar conhecimentos e tecnologias para promover
a melhoria da qualidade de vida e saúde; socializar conhecimento, ou seja,
compartilhar saberes com as pessoas, os grupos, a comunidade e a nação; formar
profissionais capazes de exercer uma profissão sem riscos para o outro;
oferecer oportunidades para o desenvolvimento integral do ser humano,
comprometido consigo próprio e com a comunidade. Destas, ressaltaremos três,
para nos guiar em nossa reflexão.
CAINDO NA REAL E ENCONTRANDO FAMÍLIAS NA PÓS-MODERNIDADE
A primeira dimensão,estar em sintonia com as necessidades e avanços, problemas,
enfim com a realidade das pessoas, dos grupos, da comunidade, da nação e do
mundo, faz-nos ancorar numa perspectiva contextual e nos questionar: que tempo
é este que vivenciamos? como estão as famílias nesta contemporaneidade?
Vivemos num contexto de diversidade, relatividade e de pluralidade de valores,
que pode ser apresentado, segundo
Hartman
8, como Pós-modernidade.
Falar em Pós-modernidade é mergulhar num mundo de controvérsias, sendo ela foco
de inúmeros e férteis debates por diversos estudiosos como
Lyotard9, Vatimó
10, Coelho11, Maffesoli11, Santos13. Há autores que a negam em sua essência,
outros que preferem não utilizar o termo, mas criam outra nomenclatura para
falar de determinados traços destesoutros tempos que estamos vivendo.
Todavia, como destacaWatier14, o importante encontra-se no conteúdo, nos
elementos de compreensão e de descrição deste período atual que aí está, de tal
modo que nos permita apreendera lguma coisa sobre as experiências e interações
sociais dos indivíduos, a relação com as instituições, bem como com as
significações imaginárias que estas produzem, podendo inclusive guiá-los. Está
claro que estamos passando para outros modos de organização social, mesmo que
em algumas situações estas encontram-se apenas esboçadas.
Concordando, com este posicionamento é que trazemos a pós-modernidade, não só
como pano de fundo, mas como expressão de todo um movimento que se vivencia ao
longo de nossa história.
Num artigo sobre arte, segundoVaistmarí15, Dilnot expõe o pós-moderno como um
processo de interligação de fronteiras entre tipos de práticas que
convencionalmente são considerados como inteiramente diferentes. Também neste
sentido de convivência de coisas percebidas como diferentes, o pós-moderno é
considerado como um dominante cultural: uma concepção que permite a presença e
a coexistência de um espectro de características muito diferentes, ainda que
interdependentes. Assim, a inexistência de um padrão dominante, não importa a
que campo social se esteja referindo, é um primeiro traço que nos remete às
tendências pós-modernas.
Com a saturação da modernidade, "o doméstico ou cotidiano" ressurgem,
paraMaffesoli16. Temos agora a lógica do doméstico, quer dizer, recentramento
no mais próximo, trazendo a idéia de 'proxemia'ou seja, a ênfase na relação com
o meio ambiente, e com o outro social».
De acordo comSilva17 a pós-modernidade é a supremacia da socialidade, a
solidariedade de base, sobre a sociabilidade, a solidariedade mecânica,
reportando-nos ao sentido maffesoliano do termo18. Deste modo, para Silvia19,
no caso da passagem do moderno ao pós-moderno, percebe-se que «não é o sistema
econômico que muda radicalmente, mas a maneira de os indivíduos e grupos
sociais relacionarem-se com ele».
A tecnologia tem encolhido o mundo físico, expandido e feito complexa a
experiência cultural e social mundiais do indivíduo. Os indivíduos estão
pessoalmente conectados com significativamente mais gente e variadas formas de
vida esticam-se sobre o largo espaço geográfico. Nesta multiplicidade de
relações, oferece-se uma excitante, mas assustadora mistura de visões, crenças
e realidades mundiais.20
"Ligar o rádio, assistir um filme, abrir um jornal, receber um fax,
corresponder-se pelo E-mail, ou assistir um jornal às altas horas da noite é
tornar-se imerso no 'outro'21. Nós entendemos as opiniões, valores, medos,
dúvidas, necessidades, aspirações e personalidades de estrelas de cinemas,
sobreviventes de campos de concentração, atletas campeões, africanos vítimas a
fome, vencedores do Prêmio Nobel, ativistas da AIDS, autores feministas...
Escutamos, empatizamos, e absorvemos: ganhamos o potencial para entender
opiniões, apreciando as possibilidades e experenciando os sentimentos de
milhares de pessoas de cuja existência, raramente poderíamos imaginar. Em
efeito, tornamo-nos habitados por outros, e adquirimos uma infinidade de
fragmentários e freqüentemente competitivos selfs.»22
É a tecnosocialidade da qual Maffesoli nos fala. Para ele, pode-se pensar num
primeiro momento que a técnica é alguma coisa que tende ao isolamento, mas vê-
se um processo inverso, atuando como um laço social, manifestando um "religare;
uma re-aliança".23
Retomando-se a questão da globalização, que já vem surgindo desde a
modernidade, segundo Silva24, ela agora significa mais a interdependência. «No
campo da cultura, atrelado ao econômico, mas com suficiente margem de
autonomia, tudo se interliga e se influencia, o que não quer dizer
necessariamente homogeneização. Ao contrário, o local conserva-se, a diferença
convive, o particular articula-se ao universal. Mesmo dentro de uma região, a
diversidade é regra. A internacionalização do cotidiano não impede o
florescimento da particularidade". A realidade é outra: o microscópico
relativizou o macroscópico.
Na pós-modernidade o rigor fracassa. As regras não cessam de multiplicarem-se.
Mas cada grupo pode estabelecer o seu contrato. Fundam-se éticas do instante.
Entre a ortodoxia dodever-sermoderno e osupermercado ético pós-moderno, como
refereSilva25, a distância é quilométrica.
ConformeMaffesoli26, existe indícios de que os grandes valores da modernidade
chegaram a sua saturação, sendo que um deles está no fato de que na vida
cotidiana «não há mais aquela crença exacerbada no futuro». Assim, para este
autor, junto com o «simbolismo», o «interesse no presente» é o outro elemento
mais importante da pós-modernidade27. Vive-se, deste modo, o que se pode chamar
depresenteísmo.
E a realidade brasileira? SegundoMaffesoli28, o "gênero pós-moderno congrega
elementos de vários estilos, com nuanças particulares, de acordo com a cor
local de diversos países. Sua hipótese é de que há países como, por exemplo, o
Brasil, que podem ter saltado sobre a modernidade. Deste modo, refere-se à
carta de Marx a Vera Zassoulitch, onde ele considera favoravelmente a
possibilidade de um país saltar etapas".
ConformeMaffesoli, algumas linhas da pós-modernidade são perfeitamente
discerníveis no Brasil, tais como: oecletismo (o pós-modernismo é plural, não é
unidimensional); a integração da natureza na cultura e vice-versa; opatchwork,
isto é, a construção de alguma coisa nova a partir de elementos diversos; a
predominância da 'ética da estética', entendendo-se estética em sentido de
percepção, sensação, emoção, etc. Ë deste modo que começamos a não nos
surpreender com a colocação de que nosso país, mesmo com suas estatísticas
chocantes de miserabilidade, vive a Pós-modernidade.
Silva
29 também provoca inicialmente: «seria mesmo legítimo referir-se à pós-
modernidade no Terceiro Mundo?», para posteriormente argumentar «a população
primeiro-mundista foi arrastada para a intimidade com a terceiro-mundista,
ainda que escandalosos graus de desigualdade persistam". Assim, o Brasil
insere-se no desigual e articulado universo da internacionalização pós-moderna.
Barreto30 reforça esta posição quando se refere à imagem da sociedade
brasileira sendo «constituída de pluralismos, de contradições onde coabitam o
arcaico e o moderno, a miséria absoluta e a opulência ostensiva. Não se trata
de uma sociedade harmônica nem homogênea. Se pudermos falar em totalidade,
trata-se muito mais de uma totalidade conflitual feita de confrontos e
afrontamentos".
Abrigam-se em nosso país, segundo
Silva
31, a pré-modernidade, a modernidade e a pós-modernidade. Nosso país vivencia o
sincretismo, a conjugação dos opostos, o casamento dos inconciliáveis à
primeira vista. Tudo isto mostrando-se no tráfico de influências, na miséria,
no analfabetismo, na violência selvagem e na indiferença, enfim nos aspectos
relacionais da sociedade, onde «as amizades, as ligações grupais e as éticas
locais valem mais do que as normas universais e a lei». Sem dúvida, «estamos
dentro de um outro tipo de espaço simbólico diferente daquele das sociedades
tradicionais e com outro tipo de sujeito social», parafraseando Akoun. Assim,
perguntamo-nos: como iremos encontrar a família nestes tempos pós-modernos?
O predomínio da considerada família ideal da modernidade, segundoVaitsman32,
vem desaparecendo. Ou seja, a chamada família tradicional, ou conjugal, como
aquela formada pelo homem/pai provedor financeiro e a mulher/mãe dona-de-casa,
unidos pelo casamento (legal e indissolúvel), e seus filhos, vivendo sob o
mesmo teto, passa a coexistir, cada vez mais, com uma rede de interações que
incluem outros «conteúdos», chegando até a se institucionalizar sob novas
formas.
Pode-se dizer que a família brasileira vem se traduzindo há muito tempo em
famílias brasileiras, como afirmouKaloustiarf33, não só pelos seus matizes
étnico-culturais, mas também pelas suas nuanças sócio-econômicas, mostrando-se
em sua diversidade, pluralidade, heterogeneidade, flexibilidade, instabilidade
e fragmentação. Destacando-se que estes mesmos elementos são justamente os
traços que vem delineando a tendência pós-moderna.
De acordo comVaitsman34, as separações e os novos casamentos vêm aumentando o
número de pessoas que vivem com parceiros que não são os pais ou as mães de
seus próprios filhos. Concomitantemente, aumenta o número de crianças que
convivem com seus irmãos, meio-irmãos e «os filhos do marido/esposa de minha
mãe/meu pai». Vêm conquistando seu espaço, os casais de homossexuais, «as
pessoas que vivem sós, livres do estigma de solteirões, as mães solteiras e os
descasados de ambos os sexos que, juntamente com o exercício simultâneo de
alguma atividade remunerada, assumiram a criação dos filhos sem a presença de
um parceiro». Além disto, tem-se os filhos, muitas vezes ainda adolescentes, ou
mesmo, crianças, como provedores econômicos da família. Vários aspectos ainda
passam a compor esta constelação familial, onde mais elementos, por seremo
outro significativo, também passam a constituir o espaço familial, como um
vizinho, um colega de pensão ou de trabalho, ou mesmo, os teleamigos e os
animais de estimação, por exemplo.
O estereótipo familiar da família composta de um marido que é primariamente o
provedor e uma esposa que fica em casa com suas crianças constitui menor
percentual das famílias. Mulheres estão trabalhando fora do lar em números
recordes, pessoas são escolhidas através de agências telefônicas de casamento,
famílias estão crescendo menores, e tem havido um número crescente de famílias
de um único pai, mais freqüentemente encabeçadas por mulheres.35
Isto não quer dizer que o padrão da família conjugal predominante na
modernidade tenha desaparecido, nem no Brasil, nem em outras partes do mundo.
Como chama nossa atenção Vaitsman36, é preciso enfatizar que não se trata da
substituição de um tipo de família, «a conjugal moderna», por outro tipo, a
pós-moderna, uma vez que a família hierárquica, marcada pela dicotomia de
papéis, não desapareceu. «De maneira mais precisa, o que caracteriza a família
e o casamento numa situação pós-moderna é justamente a inexistência de um
modelo dominante, seja no que diz respeito às práticas, seja enquanto um
discurso normatizador das práticas».
Uma efervescência torna-se evidente neste outro jeito deser família, deixando-
nos mais livres para afirmá-la também como uma tribo, tomando-se a concepção
maffesoliana37 do termo, dentro de uma perspectiva proxêmica. Assim, tendo uma
rede de comunicação que lhe é peculiar, apresenta necessidade de rituais e
enfatiza aquilo que está próximo. Isto porque as famílias vêm se constituindo
em função de uma ética específica. Busca uma vida quotidiana mais hedonista,
menos determinada pelo «dever-ser», sendo mobilizadas em profundidade pelo não-
racional. É possível observar um sentimento de pertença que, todavia, não é
absoluto, estabelecendo assim também uma instabilidade, podendo, portanto, ser
efêmero. Deste modo, aquele denominado «borboleteamento» que é peculiar a
estesoutros tempos, também se manifesta na família.
Realçando aética da estética, uma das tonalidades da pós-modernidade, pode-se
ilustrá-la com o que Vaistman38 nos traz, ao dizer que a «manutenção da família
subordinou-se ao emocional, princípio que passou a orientar comportamentos e
estimular as pessoas a recusar relações íntimas sentidas como insatisfatórias".
Tudo isto nos reporta à família na sua unicidade, e não na sua unidade, como já
colocado em outros momentos. Isto porque a unidade nos traz a idéia de
uniformidade, ou seja, de formas autoritárias e totalizantes de atuar no
mundo.39 Enquanto que a unicidade, como dizMaffesoli40, pressupõe uma união em
pontilhado, ou seja, a família se mostra num constante intercâmbio, com
outrastribos inclusive, e, sendo assim, também expressando a ambigüidade que o
afeto traz consigo: de amabilidade e agressividade; querer estar junto e
afastar-se; amar-se e odiar-se; sendo que «tudo isso não ocorre sem
dilaceramentos e conflitos de toda ordem».
Alguns poderiam dizer: "mas estas famílias na pós-modernidade são um caos!!!
Lembrando Silva41, pode-se dizer que «a pós-modernidade afasta-se da servidão e
envolve os homens através dos recursos da paixão. Em vez da obrigação da
solidariedade mecânica; o bem-estar da comunhão, traduzida na solidariedade
orgânica e na socialidade. Em substituição à frieza da norma, o calor da
exaltação. Deste modo, muitas famílias não pensam mais em convenções, mas sim
emser feliz.
Este aspecto deve ser sublinhado pelos profissionais da saúde em particular,
pois, trabalhando com famílias, buscando promover sua saúde, percebe-se que
este ser saudável, passa por uma melhoria de sua qualidade de vida, fundindo-
se, cada vez mais, a busca de ser saudável com a busca de ser feliz. Busca que
vem sendo bastante discutida em trabalhos recentes dentro da área da saúde,
como por exemplo, o dePatrício42. Dentro desta discussão, parece oportuno
colocação da idéia de
Rezende
43, enfatizando que «a qualidade de vida, neste novo tempo, exige mais do que a
sobrevivência finalizada num futuro promissor. Passa, pensamos nós, pelo prazer
e pelo júbilo do presente, ...Se antes era preciso ser saudável para o
exercício produtivista, na pós-modernidade, mais do que ser saudável, é preciso
ser feliz, mesmo que esta felicidade faça perigar a sanidade».
A socialidade pós-moderna, de acordo comMaffesoli44, é transfigurada pelas
imagens, entendendo-se por transfiguração a passagem de uma figura a uma outra.
Assim, para o autor, a "sociedade da imagem" é a marca da pós-modernidade.
Vivemos num "emaranhado cada vez mais complexo de objetos, de signos, de
imagens, entre sonho e realidade, prisioneiros sem cadeia de um universo
simbólico de significações misteriosas", remetendo a um conjunto entendido
enquanto mundo imaginal. Isto tudo coloca em relevo todo um mundo imaginai, no
qual as famílias estão imersas.
Maffesoli45, ao tratar o mundo imaginai, foca seu olhar na questão da imagem
devido à sua importância contemporânea. Para ele a imagem é cultura e faz
cultura. A imagem determina os comportamentos humanos em função de um dado meio
e, ao mesmo tempo, ela faz este meio em função destes comportamentos. A imagem
é um concentrado do mundo: um tempo e uma história que se espacializam. "Não há
qualquer aspecto da vida social que não seja 'contaminado' pela imagem". Ela é
um vetor de comunhão com os outros; é um fenômeno que não pretende o absoluto;
ela coloca em relação. Este relativismo é que não permite a segurança dogmática
de uma razão abstrata. Ela constata uma ligação vital, uma estética emocional
em todos os seu afetos.
A imagem, a aparência, não tem uma finalidade precisa ou uma "racionalidade
instrumental", exprimindo uma "hiperracionalidade", feita de sonho, de lúdico,
de fantasmas, e que parece mais pertinente para descrever o real, ou mesmo, o
"hiperreal" que movimenta a vida social. É isto que podemos chamar de mundo
imaginai que é como uma matriz na qual todos os elementos de um dado mundano
entram em interação, correspondendo-se de maneiras múltiplas e em uma
reversibilidade constante. É desta maneira, segundo Maffesoli, que "se pode
dizer que o mundo imaginai, de uma maneira realista, leva a sério cada um de
seus elementos, não importando qual, e vai deste modo, constituir o real
contemporâneo ou pós-moderno.
A partir dessas colocações é que vemos justificada a importância de buscarmos o
mundo imaginal se quisermos melhor compreender as famílias contemporâneas. A
questão da força da imagem neste dias é ilustrada por
Maffesoli e também outros autores, como Baudrillard46 e Durand47 Eco48,
Lyndsay49, Soggard, Fonebo50 e Rezende51,
quando trazem sua veiculação através da mídia, mais precisamente a televisão.
Na área de estudos sobre famílias, já podemos identificar a relevância de tal
aspecto quando vemos abrir um amplo debate sobre a questão da televisão nas
interações familiares, como ocorreu no III Conferência Ibero-Americana sobre
Família52, realizada no Brasil, em 1995. Não só houve uma mesa-redonda para o
debate específico, como víamos emergir em todos os outros temas esta questão,
havendo até quem afirmasse que ela é um novo membro da família, reforçando toda
a potência da imagem, numa época em que vivemos a tecnosocialidade.
Voltando-se para a saúde especificamente também percebe-se a relevância de se
penetrar o mundo imaginal se quisermos apreender o processo de viver e ser
saudável das famílias. Cada um tem o seu mundo imaginal, que é compartilhado,
mas não é o mesmo do outro. Assim como o que é ser saudável para cada família e
cada profissional é diferente.
Acredita-se que a imagem de ser família saudável e de saúde que as famílias
desenvolveram ao longo de sua história vem sendo construída a partir de suas
interações, de sua comunhão com os outros, envolvendo toda a sua rede de
relações, da mesma maneira que seus comportamentos de saúde também são
fundamentados nesta imagem. É pertinente lembrar relatividade desta imagem de
ser saudável, quando vemos que a noção de ser saudável e de saúde passa, cada
vez mais, por um estado de espírito53, pelosentir-se bem, pelo bem-viver, pelo
bem estar, e mesmo peloser feliz, como destacamos a pouco. Deste modo,
busquemos a real destesentir-se bem, do bem-viver, do bem estar, e doser feliz,
que emerge de cada um, de cada família, de seu mundo de crenças e de valores,
de suas fantasias, suas imaginações, seus símbolos, de seus sonhos, de sua
realidade...Ou melhor, busquemos o "hiperreal"...
Feito este resgate contextual, já colocado em outros trabalhos (Nitschke,
1999), vê-se que é no seio da Pós-modernidade que vemos nutrido o papel da pós-
graduação, já que esta se mostra como o meio indicado para acolher
controvérsias, integrando diversidades, como as diferentes linhas teóricas, as
heterogêneas reflexões filosóficas, a pluralidade ética (afinal vivemos tempos
de supermercado ético!), e, sobretudo, a multiplicidade de ser família nos dias
de hoje.
BUSCANDO RESPOSTAS E DESCOBRINDO CAMINHOS
A segunda dimensão do compromisso ético destacada seria o de buscar respostas
aos problemas e desejos, ou seja, criar, desenvolver e organizar saberes e
tecnologias para promover a melhoria da qualidade de vida e saúde das pessoas,
dos grupos, das instituições, da nação e do mundo, aponta-nos para reforçar o
compromisso ético da Pós-graduação como espaço para construção do conhecimento
sobre saúde familial.
Neste sentido, podemos citar os trabalhos liderados por Elsen, a partir de sua
tese de doutorado,em 1984, e de um grupo de enfermeiras que desenvolveu sua
dissertação dentro do Curso de Mestrado em Enfermagem da UFSC, na área da
família, também definindo em seus trabalhos a saúde da família e/ou família
saudável, segundo diferentes perspectivas.
Boehs (1990), dentro da linha transcultural e também utilizando a Teoria do
Desenvolvimento, considerou como família sadia aquela que mantém um conjunto de
reservas físicas, psíquicas, sócioculturais e de ambiente físico que permitem
normatizar sua vida e instituir novas normas em situações novas (como o
nascimento de um novo membro).
Também seguindo a linha transcultural,Patrício (1990) definiu saúde da família
como a capacidade da família de buscar e de normatizar seu bem viver,
fundamentada na prática do cuidado, a partir dos recursos de cada membro e da
família como unidade, com suas crenças, valores e modos de cuidar, envolvendo
as utilização de cuidados do sistema profissional de saúde, incluindo o cuidado
de enfermagem.
Em outro momento,Nitschke (1991), colocou-se que a família está saudável quando
"houver uma interação positiva caracterizada por um relacionamento direto; de
respeito; liberdade e sem tensões; no qual os membros tentam se colocar um no
lugar do outro e expressam sentimentos de afeto, idéias, crenças, valores e
conceitos, possibilitando-os a crescerem, desenvolverem-se, definirem,
ajustarem e desempenharem seus papéis".
Ainda nesta linha,Ribeiro (1990), ao desenvolver seu trabalho junto à famílias
maltratadoras, refere-se à saúde familial como uma interação de aproximação
entre os membros da família, os quais interagem entre si e com a sociedade.
Para o GAPEFAM (Grupo de Assistência, Pesquisa e Educação na Área da Saúde da
Família) família saudável é entendida como "uma unidade que se auto-estima
positivamente, onde os membros convivem e se percebem mutuamente como família.
Tem uma estrutura e organização para definir objetivos e prover os meios para o
crescimento, desenvolvimento, saúde e bem-estar de seus membros. A família
saudável se une por laços de afetividade exteriorizados por amor e carinho. Tem
liberdade de expor sentimentos e duvidas, compartilha crenças, valores e
conhecimentos. Aceita a individualidade de seus membros, possui capacidade de
conhecer e usufruir de seus direitos, enfrenta crises, conflitos e
contradições, pedindo e dando apoio a seus membros e as pessoas significativas.
A família saudável atua conscientemente no ambiente em que vive, interagindo
dinamicamente com outras pessoas e famílias em diversos níveis de aproximação,
transformando e sendo transformada. Desenvolve-se com experiência, construindo
sua história de vida" (Custódio; Henckemaier; Canali, 1992)
Junto comMorais, Pfeiffer(1995), buscamos chamar a atenção para o que é família
saudável, identificando alguns conceitos já desenvolvidos na área e sua
aplicação a partir de diferentes autores, fazendo uma breve análise. Destacou-
se a importância de se explicitar o que é família saudável, emergindo da
prática e das crenças e valores das enfermeiras, recomendando que novas
investigações fossem desenvolvidas, inclusiveà luz das próprias famílias quanto
ao seu ser saudável, captando assim a sua realidade.
Cabe ressaltar o aspecto "estado de espírito", já abordado porElsen (1984),
visto que vem carregado de subjetividade, mostrando-nos bem a importância de
conhecer o seu mundo imaginal, buscando sua compreensão, pois oestar bem e
oestar feliz, enfimo ser saudável tem um significado diferente para cada um,
como os trabalhos deNascimento (1993) ePenna (1996) vêm reforçar. Nos desenhos
de algumas crianças do Monte Cristo que, vale lembrar são também
imagens,"quando com saúde, se representam sorrindo, dizendo estar alegres e
felizes". (Elsen; Hense; Eckert, 1992, p. 28.).
Pode-se perceber a saturação sim dos valores da modernidade, mas não se sabe o
que está para vir a tomar seu lugar. ConformeMaffesoli54, «estamos numa época
provisória: notamos o que não é mais, mas não conhecemos o que está por vir".
Entretanto, para apreendermos este momento é preciso saber buscar no substrato
sensível os dados sociais. A ciência, assim, se faz neste momento numa
aceitação e convivência de uma pluralidade de métodos. Daí o papel da Pós-
graduação em exercitar este mosaico de métodos, na busca de desenvolver
tecnologias próprias para o trabalho com famílias. Assim, é possível criar
espaços, como o Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre a Família,
organizado pelo Grupo de Pesquisa, Educação na Área da Saúde da Família
(GAPEFAM), que se propõe a desenvolver e testar metodologias próprias para se
trabalhar com famílias, refletindo as mais diferentes linhas teórico-
metodológicas, numa conjunção respeitando a singularidade de cada uma.
É possível perceber que a pós-modernidade não represente uma ruptura com a
modernidade, ou mesmo com a pré-modernidade. Ela integra. Talvez seja por isto
que os estudiosos ao defender uma ou outra, acabam por mesclá-las, definindo
uma a partir da outra e muitas vezes, conceituandoas do mesmo modo. Na verdade,
este movimento que vivenciamos, não ocorreu de um momento para o outro, ele vem
processualmente acontecendo há muito tempo. Tempo este que é cíclico, ou seja,
lembrando a espiral, como refere
Maffesol55,
a história se faz em ciclos, «há um retorno que, no entanto integra mudanças,
os desenvolvimentos, as novidades, ou seja, um retorno com 'algo mais',...há
qualquer coisa já vista, já conhecida.»
Akourf56 coloca que «não podemos resumir a modernidade,...». Assim como não
podemos resumir a pós-modernidade. Sem dúvida, é preciso relativizar.
PLURAIS SABERES NA COMPREENSÃO DA SAÚDE FAMILIAL
A terceira dimensão ressaltada é o deoferecer oportunidades para o
desenvolvimento integral do ser humano, comprometido consigo próprio e com a
comunidade.
SegundoLeonardo Boff, não somente o homem "se constrói numa lógica complexa,
mas também o próprio universo... É a teia de relações pelas quais tudo tem a
ver com tudo em todos os momentos e em todas as circunstâncias. É o
funcionamento articulado de sistemas e subsistemas que tudo e a todos englobam"
(1998, p. 18). Outros autores reforçam estes aspectos, como Michel Maffesoli,
Edgar Morin, Fritjof Capra, e Leonardo Boff, quando discutem a simplicidade-
complexidade de nosso mundo. A pós-modernidade tem reforçado cada vez mais um
trabalho interdisciplinar, devido à conjunção que lhe é peculiar.
Refletindo sobre tal situação, percebe-se a conjunção, a complementaridade, a
interdependência deste mundo, ao mesmo tempo simples e complexo, que se mostra
a partir das suas interações, e como tal no ser família, e ao se trabalhar com
saúde da família.
Pode-se talvez ousar dizer que pressupõe um trabalho transdisciplinar, dentro
da visão trazida por Patrício57, isto é, algo que vai além das disciplinas, sem
desprezá-las ao mesmo tempo. Ao contrário, integrando-as e transcendendo-as.
Esta situação também tem feito surgir oprofissional híbrido, que vemos dia após
dia no momento em que perspectivas holísticas se afirmam. Quando se lançou esta
idéia (Nitschke, 1999), referia-se aqueles profissionais que, não contentando-
se com sua formação de base, que não lhes oferece possibilidades de responder a
este mundo de conjunção, buscam outras disciplinas tentando contemplar pelo
menos um pouco mais da complexidade na qual está inserido. Deste modo,
ilustrando, vemos engenheiros que complementam sua formação, a nível de pós-
graduação, com estudos de psicologia; psicólogos e assistentes sociais que
procuram integrar seus saberes com a enfermagem; administradores que mergulham
na filosofia; médicos e enfermeiros que se voltam para a sociologia e
antropologia, entre outros.
Ou seja, o profissional não abandona sua formação de base, mas vai,
sucessivamente, integrando outros elementos no seu conhecimento e no seu agir
os quais, num primeiro olhar, seriam caracterizados como de outras profissões.
Invasão? Não! Integração. Complementaridade, conjunção, pois o conhecimento é
amplo e não consegue ser limitado a determinados compartimentos. Entretanto, ao
olharmos mais atentamente, vê-se que o trabalho realizado não pode ser
incorporado por este ou aquele domínio de conhecimento, mas sim pela
complexidade do viver da socialidade, expresso no ser família.
Tem-se uma situação em que poderíamos nos reportar aVaistman58 para ilustrar,
«Para não perder o sentido da história nem o da possibilidade de distintas
formas de emancipação, estesdesenvolvimentos recentes, por pós-modernos que
sejam, evocam utopias, como aquela calcada» na visão modernista do paraíso,
alcançado com o fim da divisão social do trabalho, quando ninguém mais se
dedicará a uma só atividade e poderá plenamente diversificar suas atividades -
«caçar pela manhã, pescar à tarde, pastorear ao anoitecer, criticar após o
jantar, conforme minha vontade, mas jamais me tornar caçador, pescador, pastor
ou crítico".
Isto tudo nos aponta que ao enfocarmos a saúde da família na Pós-graduação, é
preciso garantir a interdisciplinaridade, integrando inclusive diferentes
profissionais e diferentes especialidades. Isto demanda não só no seu corpo
docente, na integração de disciplinas de diferentes áreas, mas na possibilidade
de desenvolver cursos destinados a profissionais de diferentes domínios de
conhecimento, o mesmo ocorrendo com a formação de grupos de pesquisa. O
trabalho e a formação profissional, seja a nível de especialização, residência,
mestrado, doutorado, ou pós-doutorado, na área da saúde da família foge do
encolher limites para acolher integrações. Trabalhar com Saúde da Família é uma
questão de postura, na qual, sobretudo, é preciso aprender a relativizar.
UM GRITO DE ALERTA
Dentro do que entendemos por compromisso ético, a partir deCaponi et al.
(1995), para que uma boa existência possa ser construída é preciso que possamos
assumir um compromisso inevitável: o de tratar as pessoas como pessoas e nunca
como coisas; da mesma forma, tratar as coisas como coisas e nunca como pessoas.
Por isso, é preciso relativizar o próprio interesse, ter condições de adotar o
ponto de vista do outro. Este é o único compromisso ético ao qual não podemos
nos privar. Dito "Kantianamente", poderíamos afirmar que as pessoas nunca podem
ser envolvidas como um meio para se conquistar outros fins, mas somente como
fins em si mesmo. Isto porque só as pessoas tem um valor absoluto, não
condicionado.
Todavia, se não aceitarmos este compromisso e, ao contrário, decidirmos tratar
as pessoas como coisas, isto é, como meios para conseguirmos certos fins, então
nossas ações serão instrumentais ou estratégicas, mas não éticas. Este
compromisso ético, por excelência, de tratar as pessoas como pessoas implica
que deveremos reduzir, o máximo possível, o âmbito das ações estratégicas nas
quais, através do engano, se manipula os seres humanos, submetendo-os a fins
que não são por eles escolhidos.
Deveremos analisar criticamente estes espaços nos quais, os outros e nós,
podemos nos converter em objetos de manipulação. Da mesma forma, será preciso
ampliar os espaços de autonomia e liberdade aonde cada um, considerado como um
fim em si, possa ingressar no âmbito de uma racionalidade comunicativa.
As dificuldades se apresentam neste preciso momento em que nos defrontamos com
situações concretas nas quais é evidente qual é o melhor modo de atuar e qual é
a ação que de forma mais efetiva nos permitirá a concessão deste compromisso
ético.
Deste modo, precisamos estar atentos para as ações que são propostas,
refletindo toda uma base teórico-filosófica, e as ações que são efetivamente
desenvolvidas. Ao envolver a Saúde da Família, numa proposta de
redirecionamento do modelo assistencial, faz-se necessário, portanto, estarmos
atentos para que não seja apenas um nome, ou uma maquiagem que reflita uma
tendência, mas uma genuína atitude. Neste sentido, a Pós-Graduação desenvolve o
papel instrumentalizador para uma avaliação crítica do que vem sendo proposto e
do que efetivamente vem sendo realizado. Vale dizer, os cidadãos tem o direito
de serem cuidados numa perspectiva que os inclua em suas relações, tanto intra
quanto extra-familiais, sendo considerados no seu ambiente, envolvendo sua
comunidade, sua nação e, mesmo, o seu planeta.
Vivemos um tempo em que a expressão social tem se apresentado pela
heterogeneidade, pluralidade, relatividade, nuanças do que alguns têm chamado
de pós-modernidade, um tempo de conjunção, de complementaridade. Assim, não
precisamos excluir, mais saúde do indivíduo, a saúde da família, a saúde
comunitária, ou privilegiar apenas uma. O ser humano acolhe todas estas
dimensões no seu ser saudável, para poder ser acolhido na sua própria
humanidade. Quando sublinhamos o ser humano, a demanda de integração é um
movimento incessante, mesmo sendo harmonia conflitual.
Deste modo, enfocar saúde da família é colocar foco na melhoria da qualidade de
vida dos seres humanos com os quais interagimos ao cuidar. Mas como podemos
fazer tal afirmação? Apesar de alguns autores se voltarem exclusivamente para
dentro da família para falar de saúde da família e família saudável, a prática
tem nos mostrado que trabalhar com família é estar em trânsito entre o micro e
o macrosocial, entre o ser humano na sua individualidade e na sua coletividade,
enfim é mergulhar infinitamente nas relações intra e extra-familiais. É
aprender a relativizar! E a Pós-Graduação precisa garantir isto!
NOTAS
1De acordo com o trazido por Nitschke(1991)," ainda que as palavras familial e
familiar sejam sinônimas, conforme Fernandes(1967), o termo familial é eleito
por mim numa tentativa de limitá-lo ao que se refere propriamente à família,
buscando distinguir do termo familiar que é muito utilizado popularmente também
para designar aquilo que "é muito conhecido", "acostumado"
2 Em sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso à posse de terra e acesso a serviços de
saúde. E, assim, antes de tudo, o resultado de formas de organização social de
produção, as quais podem gerar desigualdades nos níveis de vida.
3 NASCIMENTO, Paulo César. Democracia e saúde: uma perspectiva arendtiana. In:
FLEURY, Sônia. (Org) Saúde coletiva para todos? questionando a onipotência do
social. Rio: Relume - Dumara. p. 189.
4 PENNA, C. M. M. Oser saudável no quotidiano das favelas. Florianópolis :
UFSC, 1996. 151 p. Tese (Doutorado em Filosofia da Enfermagem) - Universidade
Federal de Santa Catarina, 1996. p. 56.
5 FERNANDES, Francisco.Dicionário brasileiro contemporâneo. 2. ed. Porto
Alegre: Globo, 1967. p. 930.
6 PENNA, C. M. M. O ser saudável no quotidiano das favelas. Florianópolis :
UFSC, 1996. 151 p. Tese (Doutorado em Filosofia da Enfermagem) - Universidade
Federal de Santa Catarina, 1996. p 126
7 PENNA, C. M. M.O ser saudável no quotidiano das favelas. Florianópolis: UFSC,
1996. 151 p. Tese (Doutorado em Filosofia da Enfermagem) - Universidade Federal
de Santa Catarina. 1996. p 126
8 HARTMAN. S. Preparing modern nurse for postmodern families.Holistic Nursing
Practice, vol. 9, n.4, July 1995. p. 1
9 LYOTARD, J.F.La condition postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit. 1979.
109 p.
10 VATIMO, G.La fin de la modernité: nihilismo et herméneutique dans la culture
post-moderne. Paris: Éditions du Seuil, 1985. 187 p.
11 COELHO, T.Moderno pós-moderno. 2 ed. Porto Alegre: L & PM Editores.
1986. 175 p.
12 ROUANET, S. P. & MAFFESOLI, M.Moderno x pós-moderno. Rio de Janeiro:
UERJ, Departamento Cultural, 1994. p.21.
13 SANTOS, B.S.Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995. p. 77.
14 WATIER, P.op cit,
15 VAISTMAN, Jeni. Flexíveis e plurais: casamento e família em circunstâncias
pós-modernas, Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 203 p.
16 ROUANET, S. P. & MAFFESOLI, M.op cit.
17 SILVA, Juremir Machado da.Anjos da perdição: futuro e presente na cultura
brasileira. Porto Alegre: Sulina, 1996. p.24-27; 246
18 A socialidade, segundo Maffesoli, é a potência social que tenta se exprimir,
residindo num misto de sentimentos, paixão, imagens, diferenças que incitam a
relativizar as certezas estabelecidas a uma multiplicidade de experiências
coletivas . O autor, invertendo os termos propostos por Durkheim, propõe a
solidariedade orgânica como aquela que é calcada em laços sociais afetivos e
nas ambigüidade básica da estruturação simbólica, garantindo a coesão do grupo,
a partilha sentimental de valores, lugares e idéias, enquanto a solidariedade
mecânica, seria da ordem do instituído. MAFFESOLI, M.A conquista do
presente.Rio de Janeiro: Rocco, 1984. e MAFFESOLI, M. Oconhecimento do
quotidiano. Lisboa: Vega. s/d. p.173.
19 SILVA, Juremir Machado da.Op. cit.
20 HARTMAN. S.op. cit. p. 1 - 10._
21 HARTMAN. S.op cit.
22 GERGEN, K.J, apudop. cit.
23 MAFFESOLI, Michel.A tecnosocialidade como fator de laço social. Palestra no
Curso de Pós-Graduação em Jornalismo da PUC- Porto Alegre - RS, em 16 de
outubro de 1996.
24 SILVA, Juremir Machado da.op cit.
25 SILVA, Juremir Machado da.op cit.
26 ROUANET, S. P. & MAFFESOLI,M op cit. p.21.
27 MAFFESOLI, M.Aux creux des apparences: pour une éthique de l'esthétique.
Paris: Plon 1990 p 55
28 ROUANET, S. P. & MAFFESOLI, M.op cit. p.81.
29 SILVA, Juremir Machado da.op cit.
30 BARRETO, A. Família, loucura e cultura.Revista Familia (Centro de Estudos da
Familia), Fortaleza ano 2 n.1, p. 61-70, 1987.
31 SILVA, Juremir Machado da.op cit.
32 VAISTMAN, Jeni. F.op cit. p.13-24.
33 KALOUSTIAN, S. M.Família brasileira: a base de tudo. São Paulo: Cortez;
Brasília: UNICEF 1994.
34 VAISTMAN, Jeni.Op cit. p.13 - 24
35 HARTMAN. S.opcit. p. 1 -10
36 VAISTMAN, Jeni.Op cit. p.13-24.
37 MAFFESOLI, M.O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p 197.
38 VAISTMAN, Jeni.Op cit. p.14.
39 REZENDE, A.L. M.Pós-modernidade: o vitalismo no "chaos". Florianópolis.
1993. Plural, v.3, n.4., jan-jul., p.10
40 MAFFESOLI, M.opcit. p.176.
f
41 SILVA, Juremir Machado da.op cit.
42 PATRICIO, Z.M.op cit.
43 REZENDE, A.L.M.op. cit. p.12.
44 MAFFESOLI, M.La contemplation du monde. Paris: Grasset. 1993, p. 187.
45 MAFFESOLI, M.op cit. p. 187.
46 BAUDRILLARD, J.Da sedução, 2. ed. Campinas: Papirus, 1992, p. 186.
47 DURAND, G.L'imaginaire. Paris: Hatier, 1994. p. 77-79.
48 ECO, U.Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979.
49 LINDSAY, B. Influencing development: the media. In: LINDSAY, B.The child and
the family. London: Baillière Tindall, 1994.
50 SOGGARD, A. J.; FONNEBO, V. Self-reported change in health behavior after a
mass media-based health education campaign.Journal's Psychologie, v. 33, n. 2,
p.125-134, 1992.
51 REZENDE, A.L.M. de.A sedução dos mitos de saúde/doença na telenovela. São
Paulo: USP, 1991. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação USP.
52 III Conferência Ibero-Americana sobre Família, São Leopoldo, UNISINOS, 1995,
24p. (Programa)
53 ELSEN, I.Concepts of health and illness and related behaviors among families
living in a Brasilian fishing village. San Francisco: University of California,
1984. Tese (Doutorado em Ciência da Enfermagem) - University of California,
1984.
54 ROUANET, S. P. & MAFFESOLI, M.op cit, p.22
55 ROUANET, S. P. & MAFFESOLI, M.op cit. p. 20.
56 AKOUN, A.op cit.
57 PATRÍCIO, Z.M.A dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável
individual e coletivo: uma questão bioética numa abordagem holístico-écológica.
Florianópolis: UFSC, 1995. 215 p. Tese (Doutorado em Filosofia da Enfermagem) -
Universidade Federal de Santa Catarina, 1995. p. 38.
58 VAISTMAN, Jeni.Op cit, p.14.