Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

BrBRCVHe0034-71672003000100013

BrBRCVHe0034-71672003000100013

variedadeBr
ano2003
fonteScielo

O script do Java parece estar desligado, ou então houve um erro de comunicação. Ligue o script do Java para mais opções de representação.

As potencialidades da enfermeira na gestão do cuidado em saúde ENSAIO

As potencialidades da enfermeira na gestão do cuidado em saúde

The nurse's potentialities in the management of health care

Las potencialidades de la enfermera en la gestión de cuidados en salud

Roseney BellatoI; Wilza Rocha PereiraII IEnfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da UFMT, Membro do Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania IIEnfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora do Departamento de Enfermagem Materno-infantil da UFMT, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Enfermagem, Saúde e Cidadania, E-mail: wilzarp@terra.com.br

1 A imbricação teórica para o nosso pensar Neste ensaio buscamos fazer uma problematização sobre as questões da subjetividade que estão em jogo no gerenciamento de serviços de saúde pela enfermeira. A inspiração para o mesmo surgiu quando tivemos contato com teorias e diferentes relatos das experiências de alguns grupos que vem desenvolvendo formas alternativas de gestão da saúde no setor público. Os trabalhos relatados apontam para novas possibilidades neste campo de estudos e pressupõem que a construção de uma nova hegemonia, de uma nova civilização, depende da criação de inúmeras situações que favoreçam a constituição de atores que neguem a inevitabilidade da permanência do status quo, que antevejam possibilidades de alterá-lo e que, principalmente, sintam- se com direito de desejar esta mudança (1:64).

Dessa maneira, as experiências concretas que partem desse pressuposto têm como categoria central o sujeito, mais propriamente, o sujeito coletivo, visto ser ele constituído no interior de uma coletividade, na qual "se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar vontades, constituindo-se nestas lutas"(2: 12).

Nesse espaço coletivo de construção, engendram-se os grupos-sujeitos, ou seja, constituído de sujeitos desejantes, imbuídos da vontade de alterar o status quo, de forma a ter condições para o exercício saudável da própria subjetividade. Em contraposição, haveria os grupos assujeitados, que se conformam ao que está dado não vendo perspectivas de mudanças no seu devir (1).

A clareza e a propriedade dessas idéias, ganham novo significado perante a atual falência dos modelos de organização e administração, tão firmemente (im)plantados dentro dos serviços de saúde, no sentido de trazer respostas positivas para os problemas de saúde da população e também como uma forma alternativa de enfrentamento da insatisfação e apatia presentes no quotidiano dos trabalhadores que vivem e sobrevivem do trabalho que desenvolvem.

Temos assim o compromisso necessário e urgente de repensar novas propostas que venham a propiciar o "processo de produção de sujeitos sociais dotados de vontade política e de um projeto de reformas"(1:66) que viabilizem transformações concretas no sistema público de saúde. Nessa reordenação do trabalho em saúde e do produto que daí resultará, a cura das doenças e a promoção da saúde precisarão, necessariamente, passar pela valorização de aspectos e sentimentos até então desconsiderados dentro do espaço-tempo da instituição de saúde, quais sejam: as diferenças, a relacionalidade, a afetividade, a vontade, o desejo, o envolvimento, a criatividade, a responsabilização, entre outros. Entendemos que todos esses sentimentos estejam presentes nos serviços, mas ainda de forma caótica e fragmentada, constituindo-se em um grande desafio torná-los mais visíveis, organizados e valorizados no complexo processo de promover/preservar/recuperar a saúde.

Tendo por base essas reflexões, outras foram se constituindo através da pertinência que vemos com as problematizações trazidas pela Sociologia do Quotidiano de Michel Maffesoli, bem como com os questionamentos advindos da Teoria Feminista. Entendemos ser possível tal `diálogo teórico', não pela nossa vivência prática como trabalhadoras do setor saúde, mas, principalmente, pelas pesquisas que temos desenvolvido, e nas quais percebemos a pouca aderência e resolutividade das teorias gerenciais nas situações quotidianas com que se defrontam os usuários e os trabalhadores dentro dos modelos hierárquicos e verticalizados de administração e gestão de serviços de saúde.

O célere processo de complexificação sofrido pelas instituições de saúde nos últimos anos, tanto no que se refere a sua função específica de cura e promoção da saúde, quanto na sua organização administrativa e diversificação dos profissionais que atuam, conferiu-lhes uma forte conotação empresarial. E, nesses moldes, a preocupação com custos, a contenção de despesas, pagamentos, o controle de material, equipamentos e pessoal ganha uma grande importância dentro desse complexo sistema, sendo que essas instituições adquirem as feições de uma empresa da saúde, valorizando-se sobretudo o processo e os resultados financeiros perdendo-se dessa forma os sujeitos do processo, por estes serem vistos e entendidos como mais um elemento e não como a alma das mudanças (3).

Dessa forma, no espaço cada vez mais burocratizado e tecnologizado, pouco lugar sobrou para o humano se manifestar às claras, cabendo-lhe um viver periférico e, aparentemente, secundário nesse cenário de vida, sofrimento e morte que se constitue nas instituições de saúde. Mas, o que foi por muito tempo recalcado, ressurge com força extremada e se capilariza, ainda que de forma confusa, dentro do (pretensamente) `asséptico' ambiente das instituições de saúde, pois é a busca da dimensão humana, receptiva e calorosa que deve conformar qualquer nova proposta de trabalho e gerenciamento do cuidado em serviços de saúde.

Tendo por base uma ampla discussão feita pelas teóricas feministas que envidam o ressurgimento da importância de valores até então mais ligados ao mundo feminino dentro das teorizações sobre o trabalho em saúde, vemos que se abrem para as enfermeiras amplas possibilidades como gerenciadoras desse espaço/tempo ao qual essas profissionais estão estreitamente ligadas. Um significativo trabalho resultante de doutorado, coloca a enfermeira como a memória-viva da equipe de saúde, sendo ela dentre todos os profissionais da equipe a que interage com o maior e mais diversificado número de interlocutores no quotidiano de trabalho (4). É devido a essa posição central dentro da equipe de saúde que a mulher-enfermeira-trabalhadora pode se constituir como sujeito desejante pois interage no grupo de trabalho também a partir da dimensão feminina do seu existir, trazendo junto com a sua ação valores como a relacionalidade, a afetividade, o envolvimento, a criatividade, e o compartilhar, próprios do mundo feminino.

Mas, se essas potencialidades estão, o que tem impedido, até hoje, que elas se consubtanciassem em realidade concreta no atuar quotidiano das enfermeiras? Parece-nos que não seria a falta de qualidade do seu trabalho ou sua competência para tal, mas sim a presença de um olhar parcial e limitante, construído dentro de um viés positivista que valoriza a produtividade, sob a forma de objetividade e de quantificação, em detrimento do interesse pela clientela, do envolvimento com o trabalho e com o local onde ele se desenvolve, da relacionalidade entre os diferentes profissionais. Isso se como se as instituições de saúde pudessem prescindir de tais elementos ou, o que nos parece pior, deles têm se beneficiando, sem, entretanto, recolhecê-los como valores importantes.

Por sermos profissionais enfermeiras, vamos buscar dentro desse novo olhar, trazer para esta reflexão algumas questões que envolvem o quotidiano dessa profissional, sendo que teremos como base teórica para o nosso pensar uma noção de Subjetividade baseada em um autor pós-moderno, que a entende como "essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares"(5:33) .

Parece-nos que a auto-imagem das enfermeiras foi, durante muitos anos, conformada negativamente e, isso se deu, dentre muitos outros motivos, como resposta a uma visão de mundo que valorizava sobretudo a razão instrumental e esta entendia o mundo feminino como carente de racionalidade científica por ser este carregado de subjetividade e sentimentos que não podiam ser mensurados (6).

Muitas análises sobre o trabalho da enfermeira foram feitas a partir do ideal cartesiano e positivista de mundo que impôs uma cisão entre masculino e feminino ao valorizar diferentemente a objetividade e a subjetividade, a razão e o sentimento, como se ambos não coexistissem também no mundo feminino. Estas análises, um produto de sua época, na nossa opinião, tanto contribuíram para dar maior criticidade ao trabalho desenvolvido por essa profissional, como também, de certa forma podem ter auxiliado na estereotipização da identidade coletiva da profissional enfermeira (7) .

Na produção acadêmica que versa sobre a construção da identidade das enfermeiras é bastante freqüente o uso de adjetivações como submissão, subalternidade e secundaridade ao se referir ao trabalho desenvolvido pelas enfermeiras nos serviços de saúde (7). Lembramos que a cultura do `sub' que cerca as análises sobre o trabalho da enfermeira, reitera uma visão de mundo centrada na doença e no processo de cura, que invisibiliza outras dimensões do trabalho da enfermeira. Essa atribuição de um valor inferior a qualquer um grupo social se sempre em relação a um outro grupo, e aqui nos perguntamos: com quais grupos fomos comparadas? Que elementos foram selecionados para estabelecer um patamar de comparação? Que noção de poder ou de resultados estava intrínseca nestas análises? Qualquer análise é sempre cultural por ser coletivamente e lingüisticamente construída por homens e mulheres pertencentes ou não aquele grupo e no caso de grupos minoritários do ponto de vista da subjetividade assujeitada, é interessante relembramos que em 1973 se afirmava que mulher tende a reproduzir e a sancionar o discurso androcêntrico que reafirma continuamente a inadequação feminina, seja nos aspectos do seu corpo ou seja nas suas capacidades para o mundo do trabalho nos espaços públicos(8).

Ao sancionarmos como enfermeiras uma suposta secundaridade, validamos cada vez mais o que somos, ou seja, mulheres/enfermeiras e como profissionais da saúde, sabemos que muito o que fazer neste universo altamente desejoso de mudanças. Vale perguntar: teremos as qualidades necessárias para este imenso `que fazer' que está ? A partir da resposta que formularmos, é importante pensarmos em: potencialidades a serem atualizadas, inibições a se desfazerem, maior grau de mobilidade. é melhor que nada. Mas seria tudo? Nada mais além? Seria tornar-se cada vez mais quem se é? E se pensarmos em VIRTUALIDADES? O vir a ser ao acaso, ao gosto de Nietzsche, Deleuze e Guattari... Acionar recursos que não se tinha, que se criariam no empuxo de um fluxo energético de pura positividade, fluxo-criação. Tornar-se usina, criar desejos... e realizá-los. Ficar prenhe de desejos e pari-los. Efetividade. Potência. Não "reformar" a estrutura: engendrá-la (9:147).

Possibilidades, potencialidades a serem atualizadas, ficar prenhe de desejos e pari-los, realizá-los! Perante esses vislumbres de possibilidades, algumas perguntas podem e devem ser feitas: como anda o nosso desejar como enfermeiras/ profissionaisde saúde? Qual o nosso espaço como enfermeiras? Quais as nossas potencialidades/ possibilidades? Quais os espaços que nos damos o direito de ocupar? Ou melhor: quais os espaços que queremos de fato ocupar? Quais são por nós escolhidos e quais são para nós empurrados por serem desprovidos de status? Como trabalhadoras somos sujeitos coletivos. Mas o fato de sermos coletivos não nos coloca, automaticamente, como sujeitos políticos, pois para que sujeitos políticos se constituam necessidade de agenciamentos diferentes daqueles que constituem os sujeitos sociais, diferença essa que se inscreve nas formas singulares de se produzir subjetividades (10). Dessa maneira, a subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é "essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares" (5:33).O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade produzindo um processo que eu chamaria de singularização.

Ao discorrer sobre como os indivíduos vivem os processos de subjetivação, acreditamos que os autores acima citados o façam de forma um tanto radical, pois nos parece pouco provável que alguém se submeta totalmente a esses processos de formação da subjetividade tal como a recebe. porém uma relativização necessária, pois nos parece que podemos ter a constituição de sujeitos sociais que sejam singulares por serem dotados de desejo e vontade política para alterar a correlação de forças tal como ela se nos ambientes de trabalho e, notadamente, nos nossos locais de trabalho, os serviços de saúde. Essas alterações pressupõem e requerem "a constituição de atores que neguem a inevitabilidade da permanência do status quo, que entrevejam possibilidades de alterá-lo e que, principalmente sintam com direito de desejar esta mudança "(1:67) A questão do desejo é fundamental pois "o viver cotidiano não precisa, obrigatoriamente ser aquele da repetição, da renúncia sistemática à autonomia e ao desejo" (1:68). Com base nessa concepção de desejo que o movimento institucionalista se propõe "propiciar, apoiar, deflagrar nas comunidades, nos coletivos, nos conjuntos de pessoas, processos de auto-análise e processos de auto-gestão" (10:14). Nesses processos, as comunidades - estamos pensando na comunidade das enfermeiras - tornam-se, sobretudo, as protagonistas de seus problemas, das suas necessidades, de suas demandas, podendo assim, vir a adquirir ou readquirir um vocabulário próprio, talvez mais feminizado, que lhes permita melhor entendimento acerca de sua própria existência, de seus valores intrínsecos e de suas reais necessidades.

Será que nós, enfermeiras, estamos nos tornando protagonistas de nossa própria história, de nossos problemas, modulando as nossas necessidades e definindo as nossas demandas dentro dos serviços onde atuamos? Ou ainda validamos o discurso androcêntrico acerca de nossa suposta inadequação?

2 A enfermagem, o desejo e as possibilidades de mudanças Ao falarmos gerenciamento ou administração de serviços de saúde em níveis hierárquicos elevados, parece estarmos adentrando um terreno virtual ou utópico, aparentemente um lugar para poucas enfermeiras, pois sabemos que são apenas algumas que conseguem chegar acima do posto diretoras de serviços de enfermagem, mesmo que possuam atributos técnicos e profissionais que lhes permitiriam estar na alta direção dos serviços onde atuam, uma vez que conhecem profundamente a dinâmica que ali impera. Porque isto não ocorre? Mas, porquê referimos estar adentrando um terreno virtual, pleno de possibilidades? Pelo fato de que a enfermeira, como gerenciadora, está prenhe de desejos de mudanças nos seus locais de trabalho, mas como gerir o desejo e chegar ? Ao trabalhar as dimensões da subjetividade, coletivamente construída, reconhecendo e recusando os processos de assujeitamento, apreendendo novas formas de expressão e criação, reapropriando-se dos componentes da subjetividade e produzindo os seus próprios processos de singularização a enfermeira pode emergir como sujeito político-desejante e não mais sujeito assujeitado. Ao posicionar-se como ser humano, por ser dotada de senso de alteridade, reconhecendo as diferenças e respeitando o próximo como seu igual, tanto aquele com quem trabalha como aquele que necessita de cuidado a enfermeira pode mudar sua auto-imagem e passar a ver-se como um ser humano que deve e merece reivindicar os lugares chave para a mudança qualitativa nos serviços de saúde. Neste sentido a virtualidade será então aqui entendida como a possibilidade de fazer surgir ali, onde não existia antes, algo que brota de dentro de nós, movido a desejo, a pulsão (...) tomemos a pulsão como força motora do psiquismo, que necessita de objetos, sobre os quais incidir, para dar-lhe rumo, adjetivá-la. Quando estes faltam, ou são insuficientes, os sujeitos os cria. Inventa. Arquiteta. Constrói. Faz (9:139).

Como são raros os casos de enfermeiras ocupando o cargo administrativo de superintendente ou diretora geral de quaisquer serviços de saúde, percebemos a necessidade de criar a pulsão, o desejo de as enfermeiras chegarem a esses postos, desejo este calcado na ambição por um tipo de poder mais aredtiano e menos weberiano, por ser o primeiro mais calcado na noção e limitação e baseado no consenso e este último na hierarquia, bem como na vontade de produzir mudanças criativas, que considerem o humano, o afetivo, o relacional como elementos fundamentais na gestão dos serviços de saúde.

A teorização feminista nos auxilia nesse entendimento quando nos referimos a necessidade de reconstruir possíveis suportes para novas identidades de enfermeiras pois, ao falarmos de gestão, de gerência de serviços de saúde, percebemos que não importa o fato de essas profissionais terem competência ou conhecimento para esses cargos, pois elas não são escolhidas para estes postos de mando pelo simples fato de serem mulheres e de serem enfermeiras e estarem em inseridas em estruturas fortemente androcêntricas.

Tais predicados, ser mulher e ser enfermeira, estão profundamente associados à falta, ao negativo, ao ausente, seja de conhecimento, de poder, ou ainda de jeito para mandar, que a mulher, historicamente, foi constituída para obedecer, ajudar ou ainda complementar o serviço de outrem. E essa concepção de que nos faltam qualidades para exercer atividades que concentrem ou denotem poder sobre outras categorias historicamente mais hegemônicas no mundo da saúde, é construída tanto por nós mesmas como reiterada pelas demais categorias, que assumem estes cargos mesmo não tendo perfil para tal. Este pode se tornar um interessante objeto de estudo e deveríamos começar a nos perguntar: Por que trabalhamos tanto para evidenciar o que nos falta e tão pouco para mostrar o que temos? Talvez por que a teoria para entender e explicar o que falta as profissionais mulheres esteja muito bem constituída e para valorizar-se o que se tem ainda passa por um lento processo de construção. Mas seria isso? Por isso, nossa intenção aqui é iniciar a discussão das possibilidades da enfermeira ser uma competente gerenciadora de serviços de saúde nos seus níveis mais elevados, pois é no concreto que se reafirma o sujeito (11),. Ao enfocar tais possibilidades sob o prisma de algumas correntes teóricas que estão abordando o gerenciamento através do resgate de valores que tiveram seu significado e importância pouco considerados na visão de mundo instrumental- racionalista, pois o universo feminino se organiza em torno de saberes que lhe são próprios - o saber feminino é um saber relacional, fundado na reciprocidade e que se realiza pelo diálogo entre dois sujeitos - e se acomoda com dificuldade ao saber instrumental, que supõe uma relação sujeito-objeto e que se realiza em função de um objetivo pretensamente independente do sujeito (11:78).

Ao pensarmos em mulher e trabalho, percebemos que os valores ainda fortemente presentes na área da saúde não nos são convenientes pois têm por base uma visão de mundo que não valoriza aspectos como a afetividade, a relacionalidade e a gratuidade das relações, qualidades estas que, no nosso entender, são não desejáveis, mas altamente favoráveis para o bom gerenciamento de quaisquer grupos de trabalho.

Ao analisar as questões epistemológicas que visam revelar os efeitos da visão androcêntrica e patriarcal no auto-conceito das mulheres, recordamos que foi ela que construiu e solidificou conceitos que privilegiam a exclusividade, o gênio, a independência e o individualismo, em contraposição com as noções de comunidade, inteligência compartilhada, limitação, dependência e coletividade e que reportam muito mais ao mundo feminino, sendo por isso desvalorizados ou desprezados como pouco significantes na concepção masculina de mundo (12).

Temos assim, uma forte herança cultural e filosófica centrada no individualismo, no poder verticalizado e excludente, nas relações interpessoais pautadas na hierarquia da dominação-submissão, que se reproduz na enfermagem e mormente nas relações que se estabelecem, principalmente, entre enfermeiras e médicos.

uma extensa pesquisa que auxilia na compreensão do que se supunha ser um baixo padrão de interesse feminino pelo sucesso, revelado pelo desinteresse de mulheres engenheiras australianas em galgar os postos de mando mais altos no seu trabalho. Nos resultados dessa pesquisa, o grupo de mulheres renunciou a um cargo financeiramente compensador apenas por que teriam que mudar de cidade e ficar distante dos filhos, evidenciando assim um relativo desvalor das engenheiras pelas formas de sucesso hoje socialmente prescritas e normativamente fixadas, na qual haveria um único padrão de sucesso a ser alcançado, que exigiria um modelo de adesão ao trabalho pautado sobretudo em valores masculinos, baseados na competição, no alcance do poder mesmo que as custas de danos à própria saúde e no distanciamento e desagregação da família (13).

Os filhos, é sempre interessante ressaltar, na sociedade androcêntricamente organizada, são quase de responsabilidade exclusiva da mulher. Ocupar cargos que exijam grande envolvimento e responsabilidade implica, portanto, em rediscutir com energia e argumentos sólidos o espaço privado e o doméstico, ainda entendido como das mulheres. Será porque o queremos nosso ou porque ninguém está disposto às muitas exigências, renúncias e pouco retorno financeiro que este impõe? O mundo masculino organizou-se historicamente em torno do espaço público ou o mundo da produção, cabendo às mulheres cuidar do espaço privado, da família, dos filhos e dos idosos, sendo este o espaço da reprodução, da não remuneração, da gratuidade e do afeto nas relações. Em função dessa dicotomia entre público e privado, entre produção e reprodução, entre o mundo do trabalho e o doméstico, emerge o significado ideológico e grandemente doutrinário da fixação do papel dos gêneros, no qual as capacidades cognitivas e os padrões emocionais femininos não são valorizados ou são considerados insuficientes para o mundo da produção. Porém, como é no mundo da concreticidade que se reafirma o sujeito, por terem exercitado por muito tempo estes padrões, as capacidades cognitivas femininas - profundamente entranhadas no quotidiano de trabalho das enfermeiras - poderiam conter em si mesmos capacidades que não deveriam ser perdidas, mas reavaliadas como possíveis componentes da reestruturação da cultura dominante reinante nos serviços de saúde (13).

Para repensar em uma possível (re) humanização nos serviços de saúde teremos que necessariamente revalorizar o sentimento de satisfação derivada do caráter e qualidade dos contatos interpessoais que as mulheres levam do mundo doméstico ao se inserir no mundo do trabalho, mesmo quando desempenham funções que não têm esse tipo de exigência. Essa forma feminina de agir carrega consigo a noção da gratuidade das relações, onde o dar-se, o ajudar, o interessar-se pelo outro, não vêm atrelados à obrigatoriedade do cargo ou da função que desempenham, pois as mulheres são diferentes dos homens porque no centro de sua existência estão outros valores: a ênfase no relacionamento interpessoal, a atenção e o cuidado com o outro, a proteção da vida, a valorização da intimidade e do afetivo, a gratuidade das relações (...) uma identidade que provém da interação com os outros. Daí serem as mulheres mais intuitivas, sensíveis, empáticas (14:102).

Mas, imersas que estão na lógica androcêntrica que impera do mundo do trabalho, instalam-se no quotidiano das mulheres/enfermeiras, sentimentos de divisão, dúvida e confusão quanto ao alto preço a ser pago para ingressar no `mundo dos homens' pois em seu percurso de acesso aos espaços públicos, as mulheres se vêem obrigadas a confrontar seu modo de ser com as exigências de sucesso no mundo dos homens, marcado pela agressividade, competitividade, individualidade e eficiência.

Porém, mais do discutir as possibilidades femininas em galgar postos de mando, ou as relações entre homem e mulher, pelo viés das relações entre público e privado, lógica do mercado e lógica da gratuidade, o que precisa ser discutido são os fundamentos mesmos da convivência humana e da sociedade.

Assim, mais do que a busca por espaço no mundo do trabalho para a existência plena de um dos gêneros, o que precisamos refletir é a re-organização social desse mundo, trazendo para o seu interior elementos vitais que foram ciosamente banidos dele, muitos dos quais estão localizados no interior do mundo feminino.

Os espaços gerenciais na área da saúde estão carecendo de novos valores. E não é sem tempo deixar acontecer, ou melhor fazer acontecer, a entrada de fato da mulher nesse mundo, visto que nele estamos imersas de uma forma plena. Mas devemos pensar formas de fazê-lo pautadas na introdução de novos valores, tais como a sensibilidade e a criatividade que, somadas ao saber técnico-científico e à experiência compartilhada e ao nosso profundo conhecimento dos nossos locais de trabalho, podemos, com certeza, fazer ali uma enorme diferença qualitativa. Mas necessidade de uma profunda revisão dos conceitos que, por anos, nos esquadrinharam, nos estudaram e nos enquadraram. Assim, nessa revisão de conceitos fundamentais geradora de novas propostas de organização social, é preciso começar por não reduzir o universo feminino às tarefas domésticas. A herança de um marxismo mal-digerido e a busca de respeitabilidade teórica numa época em que o marxismo ainda dominava as ciências sociais levaram correntes do movimento feminista a reducionismos desastrosos. Procurou-se, na mulher, a trabalhadora; gastou-se muito tempo e energia em discussões mal- formuladas sobre as relações entre classe e gênero. Esses preconceitos fizeram com que permanecessem na sombra os aspectos talvez mais fascinantes do universo feminino (14:102 ).

E, no nosso entender, muitos desses aspectos questionados pela Teoria Feminista são reforçados pela Sociologia do Quotidiano de Michel Maffesoli pois, na visão desse estudioso o forte acento colocado no enfoque político-econômico dentro da modernidade cede sua força para uma outra forma de organização social e, ao implodir, o político gera uma outra configuração. Esta se compõe de novos elementos, delimitando a lógica do doméstico que invade o espaço deixado livre pelas diversas modulações do político. Essa saturação do político, que tinha sua base na lógica da identidade, transmuta-se em uma lógica mais flexível, a da identificação, na qual a co-presença, o compartilhar, o ombro-a-ombro uma nova conformação à tessitura social. Pois, se o valor essencial da ideologia produtiva, a saber, o trabalho pelo trabalho, tende a ficar saturado, pode -se ver surgir um outro tipo de valor, de contornos ainda um pouco nebulosos, que alia a criação ao prazer. É assim que pode interpretar tudo aquilo que refere à cultura de empresas, à importância das interações afetivas no e do trabalho, a constituição das equipes em função de critérios não- racionais, a criação de cooperativas, de sociedades de face humana, onde o fator relacional desempenha um papel não negligenciável. Em todos esses casos, pode-se dizer que o estilo estético do quotidiano contamina um domínio que até então era submetido ao princípio de realidade puramente econômico, e a uma organização racional, da qual o taylorismo era a expressão mais acabada (15:71).

Essa `nova' forma de ser e estar no mundo, que se centra na valorização do presente, na vontade de fruir do instante que passa juntamente com aqueles que escolhemos, contraria em muito a utopia futurista, centrada no dever-ser que aponta para o amanhã e que nos atrela, mediante contratos sociais, a um `que fazer' sem fim e sem propósito. Essa nova configuração social que vem substituir o forte acento na dimensão político-econômica, poderia ser chamada de realidade confusional, dentro da qual uma pulsão do ser/estar-junto-com, empiricamente observável, jamais perde oportunidade de se manifestar. Mesmo nos locais mais assépticos - lugares que a tecno-burocracia contemporânea engenhosamente criou, espaços concebidos para o exercício da gregária solidão - não podemos deixar de observar uma reapropriação coletiva que, de maneira efervescente ou de modo discreto, produz sulcos profundos (16:11).

As instituições de saúde trazem em si a forte presença dessa realidade confusional quando observada sob as lentes do minúsculo, do quotidiano que se constroi através das microatitudes daqueles que depositam seu trabalho e esperança diárias (3). Esta realidade mostra seu lado complexo, polissêmico, que tem uma razão outra, ou seja, traz em si uma lógica específica que foge à compreensão da razão instrumental, o que lhe empresta um aspecto caótico, que a ordem racionalista e utilitarista se nega a aceitar (17).

Assim, para se atuar e, acima de tudo, compreender essa sinergia que se instala no bojo da realidade quotidiana, que se estar imbuído de uma razão sensível, que não parta da ortodoxia e que busque integrar, ainda que de forma conflitual, todos os elementos presentes no dado social, mesmo os que se mostrem não racionais, visto terem uma lógica própria, como é o caso daqueles que se voltam mais para a cultura do sentimento, da emoção, do pertencimento e que são a tônica do trabalho em saúde, em que temos seres humanos cuidando de seres humanos.

É sob a égide dessa razão outra que se assenta o nosso pensar enquanto crentes nas potencialidades da mulher-enfermeira como gerenciadora de serviços de saúde. Essa profissional traz consigo um apego afetivo ao seu local de trabalho, o que lhe imprime um forte sentimento de pertencimento, revelado através da verbalização onde é muito freqüente a utilização de adjetivos possessivos ao se referir às coisas e às pessoas que fazem parte do seu ambiente de trabalho: é a minha clínica, ou meu funcionário ou ainda o meu hospital. Por estar profundamente imersa no quotidiano institucional de trabalho é, como apontamos, a mémoria-viva da equipe de saúde.

Como resultante da imbricação do seu trabalho com todos os demais setores da instituição de saúde, a enfermeira tece algo semelhante a uma teia relacional que lhe permite uma movimentação pelos `interstícios' da instituição o que lhe confere um conhecimento profundo da dinâmica que se desenvolve. Sua posição, que consideramos privilegiada dentro da equipe de saúde, lhe fornece o cabedal necessário do saber técnico-científico, aliado aos valores do mundo feminino que traz consigo e que começam a ter novas valorações no mundo do trabalho.

Também pelo fato de estar à frente do maior contingente de trabalhadoras dentro da instituição de saúde, representado pelo grupo de enfermagem, e pelo conhecimento e relacionamento estreitos que mantém com o mesmo e com todos os setores hospitalares, sua capacidade de percepção e resolução dos problemas que daí advém se torna bastante aumentada, necessitando porém repensar o desejo de não resolver mas também ter reconhecida sua competência na busca de soluções mais efetivas por ser mais próximas da realidade em que vive e atua a equipe hospitalar.

Sua permanência prolongada e próxima aos pacientes lhe oferece ainda os elementos necessários que lhe possibilitam uma visão ampliada do complexo universo particular que se instala dentro de cada instituição de saúde, e que, no permanente processo de criação e recriação de cada dia, gesta uma dinâmica própria que é preciso saber gerir dentro da sua harmonia conflitual.

3 Considerações finais Querer, desejar, lutar, mas por aquilo que nos seja benéfico e que nos insira como sujeitos do nosso quotidiano, eis algumas das contribuições que as novas visões teóricas que aqui trouxemos podem nos possibilitar. E o seu ponto de imbricação, que nos interessa particularmente, é o assento em novos valores que se voltam para fruir o lado humano das instituições e dos trabalhadores que atuam, devolvendo-lhes a dimensão perdida da auto-criação e do prazer em trabalhar em defesa da vida.

Sob essa ótica não cabe a manutenção das amarras rígidas do dever ser, do projeto lançado para um futuro perfeito, do nivelamento do viver, da negação do sentimento como cimento agregador das relações. A ordenação a ser buscada precisará concatenar elementos diversos pois, longe de ser um grupo unificado, os trabalhadores das instituições de saúde representam a própria imagem do conflitual, do caótico, sob muitos aspectos. Nessa visão caleidoscópica, a diferença (de profissões, de interesses, de poderes, de atitudes, de sentimentos e de sonhos) que ela abriga, em nada pode representar uma globalidade abstrata e homogênea que pode ser teoricamente domada. Dessa forma, a ordem que parece desenhar-se é a de um conjunto de comunidades nem positivas nem unanimistas, mas precárias e submetidas à versatilidade da emoção. Mais do que uma união plena, uma união do projeto, a solidariedade nascente origina-se de uma união na falta, no vazio (18).

É nessa realidade pouco propícia aos projetos herméticos, à autoridade hierarquizada, ao poder centralizador, que entendemos estar as potencialidades/ possibilidades da enfermeira atuar como gerenciadora nos níveis mais elevados dos serviços de saúde, visto que muitas dessas profissionais galgaram uma grande competência técnico científica e sobretudo relacional, pois exercitam no seu quotidiano de trabalho valores outros que propiciam o ser e o estar com o outro diferente, sob a lógica da flexibilidade e da identificação. Ao desenvolver/trazer para o mundo do trabalho os valores baseados no compartilhar e na revalorizaçao do humano, conformam uma outra noção de poder e de resultados, hoje tão necessária nos serviços de saúde.

Finalizamos reafirmando: não sofremos por excesso de desejo, mas por falta.

Nossa incapacidade para rebelar-nos, nossas revoluçoes incompletas, estão enraizadas na repressão do desejo que, essencial a opressão sexual, mutila a esperança (...) precisamos desejar tudo o que podemos (...) podemos não ser capazes de conseguir tudo o que desejamos, mas desejando tudo o que podemos imaginar é que podemos conseguir tudo o que necessitamos (19).


transferir texto