Loucura em liberdade: vivências e convivências em Crato-CE (1930-1970)
PESQUISA
Loucura em liberdade: vivências e convivências em Crato-CE (1930-1970)*
Madness in freedom: experiences in crato-ce (1930-1970)
La locura en libertad: vivencias y convivencias en crato-ce (1930-1970)
Cleide Correia de OliveiraI; Francisca Bezerra de OliveiraII; Maria Lucinete
FortunatoIII; Antonia Oliveira SilvaIV
IProfessora Mestra do Departamento de Enfermagem da Universidade Regional do
Cariri ' URCA / Crato ' CE
IIProfessora Doutora do Centro de Formação de Professores ' UFCG e do Programa
de Pós-Graduação em Enfermagem ' CCS / UFPB / João Pessoa - PB
IIIProfessora Doutora do Centro de Formação de Professores ' UFCG. Pró-Reitora
de Extensão da UFCG
IVProfessora Doutora dos Programas de Pós-Graduação em Enfermagem e Psicologia
' UFPB / João Pessoa ' PB
1 Introdução
A loucura, ao longo dos séculos, estabeleceu um parentesco com as culpas morais
e sociais que parece longe de ser rompido, permanecendo nas representações
sociais, no imaginário e contribuindo para o processo de estigmatização do
louco.
O recorte temporal foi o período de 1930 a 1970, por assinalar os momentos da
fundação da primeira instituição hospitalar na Região do Cariri, mais
especificamente na cidade do Crato, o Hospital São Francisco de Assis, em 1936
(momento em que a sociedade ainda convivia com a loucura em liberdade); e da
criação do Hospital Psiquiátrico Casa de Saúde Santa Tereza, em 1970, (momento
em que a loucura foi aprisionada). Este último, constituiu-se como um espaço
destinado, exclusivamente, ao tratamento por especialistas de pessoas com
transtornos mentais, sendo o único em funcionamento no interior do Estado do
Ceará.
Nessa perspectiva, questiona-se: que personagens eram considerados loucos no
imaginário social? Como eram as vivências e as convivências das figuras tidas
como loucas, na cidade do Crato - Ceará, no período de 1930 a 1970?
Considerando tais idéias, procurou-se reconstruir algumas trajetórias de
personagens tidos como loucos, por uma população que, ao caracterizá-los,
explicita diferentes modalidades de ancoragem da loucura.
Essas considerações fazem lembrar o estudo magistral sobre a História da
Loucura. No Renascimento, na França, o louco vivia solto, fazia parte das
paisagens da cidade. A loucura era simbolicamente representada como enunciadora
de verdade, havia sabedoria na loucura e loucura na sabedoria. A loucura era
uma experiência que se procurava mais exaltar do que dominar; havia uma certa
hospitalidade a essa forma de experiência(1).
Neste sentido, este estudo tem o objetivo de reconstruir a história da presença
da loucura nos espaços públicos da cidade do Crato ' Ceará. Procura-se narrar
trajetórias de alguns personagens importantes considerados loucos, diferentes
que circulavam livremente pelas ruas, avenidas, praças e igrejas da referida
cidade. Entende-se por vivências as formas alternativas de se conviver e se
lidar com a loucura, construídas e propagadas para além das fronteiras da
Psiquiatria, ou seja, como outras formas possíveis de subjetividades e de
verdades, que são consideradas estranhas aos pressupostos do paradigma
psiquiátrico tradicional.
Tal paradigma se encontra ancorado na idéia de que o isolamento do louco em um
hospital psiquiátrico é fundamental para o seu processo de recuperação. De
acordo com esse pensamento, o médico detém todo o processo de atendimento,
estabelece o diagnóstico, a prescrição e as ações restauradoras, que visam a
remissão dos sintomas que motivaram a internação, o que permitiria ao doente um
nível de adaptação social. O fundamento para essa concepção encontra-se na
racionalidade científica constitutiva da ciência moderna, que compreende o
sujeito fundado na consciência, na razão(2).
Este trabalho identifica sujeitos considerados loucos no imaginário social, em
forma de narrativas, apresentando personagens presentes no cotidiano do cenário
das ruas do Crato, com seus estilos, fragilidades, contradições, ansiedades e
rebeldias. Procura-se contextualizar o objeto de estudo centrado na realidade
social dos personagens realçando os fatos, com uma postura ativa, crítica e
sistemática.
A loucura, narrada no cenário do Crato, indica a existência de uma
multiplicidade possível, revela a complexidade que transcende o paradigma
psiquiátrico tradicional.
2 Metodologia
2.1 Configuração do estudo e cenário
Este estudo de natureza sócio-histórica apóia-se na obra de autores que
estudaram temas como a loucura e a psiquiatria(1,3,4).
A cidade do Crato foi escolhida como cenário das histórias contadas por se
constituir em um dos centros privilegiados de produção e difusão do saber
especializado, de transformações ocorridas em várias áreas, especialmente no
campo psiquiátrico. O Crato é um importante centro cultural e educacional.
Possui a Universidade Regional do Cariri (URCA), para onde se deslocam
diariamente estudantes de toda a Região do Cariri e do vizinho Estado de
Pernambuco. É um município de médio porte, com população marcadamente urbana,
totalizando 104.646 habitantes. Sua economia está assentada na agricultura e no
comércio.
A cidade do Crato é pontuada pela Chapada do Araripe, sendo constituída por uma
linha de densa mata de milhões de anos, que nos finais de tarde emolduram um
pôr do sol estonteante. Esconde, por entre trilhas e curvas, uma das maiores
jazidas fossilíferas do período cretáceo do planeta e, inúmeras fontes de água
cristalina. Esse município é rico na sua diversidade cultural.
2.2 Os personagens do estudo
Procurou-se identificar os personagens do estudo mediante busca nos acervos
documentais do Instituto Cultural do Cariri, na Academia dos Cordelistas do
Crato e na literatura local.
Também foram entrevistadas nove pessoas, contemporâneas dos personagens, de uma
faixa etária entre 68 e 83 anos, dos quais cinco são mulheres, professoras e
quatro são homens, médicos. Os contatos iniciais ocorreram através de telefone
e pessoalmente, sem nenhuma dificuldade por parte das pessoas, que se mostraram
receptivas e interessadas nesta pesquisa. As entrevistas foram realizadas nas
residências e no local de trabalho dos sujeitos. Todos concordaram em
participar da pesquisa, bem como com a divulgação do resultado desse estudo no
meio científico.
As entrevistas foram centradas em relatos sobre nove personagens, identificados
por seus apelidos.
2.3 Apreensão dos depoimentos pelos narradores sociais e fontes secundárias
Os depoimentos foram obtidos a partir de entrevistas com moradores, com ênfase
nos relatos sobre vivências e convivências de personagens considerados
diferentes, loucos, que circulavam nas ruas e praças da cidade do Crato, no
período de 1930 a 1970. Os entrevistados contaram suas vivências e convivências
com os referidos personagens e foram escolhidos intencionalmente, de acordo com
o seu cabedal de lembranças, após convite e exposição do objetivo do estudo,
conforme preconiza a Resolução 196/96 do Ministério da Saúde.
As entrevistas foram realizadas com base nos pressupostos da história oral:
identificação do ponto zero; gravação dos depoimentos; transcrição e
transcriação.
Entende-se por ponto zero um depoente que conheça a história do grupo ou com
quem se quer fazer a entrevista piloto. Neste estudo, identificou-se como ponto
zero a pessoa mais idosa que conhecia e tinha convivido com personagens
considerados loucos, que circulavam nos espaços públicos da cidade do Crato.
Este depoimento serviu de guia que orientou o andamento das demais entrevistas.
A transcrição foi feita logo após a realização da entrevista. A transcrição que
é uma recriação foi realizada de modo a não modificar a essência da entrevista.
Compreende-se a história oral como um método importante para a realização de
pesquisa em diferentes áreas do conhecimento.
É preciso preservar a memória física e espacial, como também
descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a
memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos.
(...) A evidência oral, transformando os 'objetos' de estudo em
'sujeitos', contribui para uma história que não só é mais rica, mais
viva e mais comovente, mas também mais verdadeira(5:17;137)
Utilizou-se entrevistas semi-estruturadas gravadas, sendo solicitado aos
entrevistados que narrassem a história de vida dos personagens, com uma duração
média de 50 minutos. Enfatizou-se, junto aos entrevistados, as características,
as vivências e as convivências desses personagens. Após as gravações, as
entrevistas estiveram à disposição dos participantes, que leram e concordaram
com os conteúdos.
Os depoimentos foram tratados segundo a metodologia proposta pela história
oral, conforme a transcriação apresentada.
As fontes secundárias serviram de base para a fundamentação sobre os
antecedentes históricos e o contexto social da época. Romances de Machado de
Assis e Guimarães Rosa também foram utilizados, pois a literatura é uma fonte
de pesquisa que, embora não tenha uma sistematização teórica e/ou metodológica
e não seja considerada um conhecimento científico, pode contribuir para a
compreensão das relações afetivas e sócio-culturais.
3 Reconstruindo a loucura no imaginário social do Crato
3.1 Os personagens circulando nos espaços públicos
No Crato, alguns tipos populares, pessoas diferentes nos modos de vestir, de
falar, vagavam pelas ruas da cidade, no período de 1930 a 1970. Personagens
estranhos moravam em casas velhas, em ruínas e praças públicas, apresentando
comportamentos diferentes. A sociedade da época os identificava como loucos.
Entre esses personagens, alguns ficaram cristalizados no imaginário popular e
são caracterizados da seguinte forma:
PERSONAGEM 1: MARIA CABORÉ,
Maria Caboré
Na rua das Laranjeiras
Braços cheios de pulseiras
A minha avó conheceu.
Lá pelos idos de trinta
Numa linguagem sucinta:
De bubônica ela morreu(6:2).
Conta a tradição que Maria Caboré foi uma personagem de destaque nas décadas de
20 e 30. Maria Caboré era filha de Caboré e Calumbi, moradores da Matinha, na
cidade do Crato ' Ce. Seu pai exercia a profissão de coveiro, e em decorrência
desse trabalho insalubre com defuntos, gostava de tomar aguardente, e muitas
vezes, exagerava na bebida. Era também considerado poeta e improvisador. Um
dia, ao chegar na delegacia apresentou-se ao ex-cabo José Lourenço e foi
dizendo:
O Cabo José Lourenço
Quis passar por valentão,
Assassinou o sargento,
Já curtiu 14 anos
Naquele escuro porão;
Meu Jesus, que cousa triste
Viveu nessa escuridão (7:261).
Maria Caboré era uma morena de estatura mediana, que gostava de usar pulseiras
e colares doados pelos moradores da cidade. Perambulava pelas ruas com um pano
envolto na cabeça e, como seu pai, cantava versos enquanto transportava água
para as residências e carregava lixo doméstico. Não era agressiva, vivia da
caridade das pessoas da comunidade daquela época.
Segundo um dos entrevistados, o verso preferido e mais cantado por Maria Caboré
era o seguinte:
A túnica do Rei de Congo.
Eu também quero chorar
A túnica do Rei de Congo
Eu também quero chorar(...) (D3).
Esse mesmo depoente afirma que Maria Caboré tinha um desejo muito forte de
contrair núpcias com o Rei de Congo. As crianças da época conheciam esse desejo
e exigiam que a mesma deglutisse objetos como bola de gude, frutas pequenas e
outros, em troca do casamento. Sendo assim, essa personagem fazia um grande
esforço para engolir tais objetos para casar-se com o referido Rei, fruto da
sua imaginação.
Um dia, Maria Caboré foi se confessar e percebeu que o padre usava calça, ficou
surpresa e fez o seguinte comentário: Vige, e padre é home! Ainda quando a
peste bubônica chegou, fez-lhe uma visita. Dizem que morreu 'santa'. Portanto,
essa personagem morreu de peste bubônica na década de 30. Muito embora tenha
sido considerada uma louca, após a sua morte seu túmulo passou a ser venerado
por muitos moradores da sociedade cratense(8).
PERSONAGEM 2: PERNAMBUCANA
Outra personagem marcante foi Pernambucana, que circulou na cidade do Crato, na
década de 30, quando a Região do Cariri foi marcada por uma seca terrível, a
seca de 1932. Naquele período, havia, no Crato, o campo de concentração dos
flagelados no Bairro Buriti. Este município vivia sob a ameaça de saques e
tinha uma escola por nome Externato Santa Inês, que funcionava na Praça da Sé.
Pernambucana, assim chamada, porque veio do vizinho Estado de Pernambuco, era
uma mulher corpulenta, de olhar penetrante e gostava de falar palavrões. Certo
dia, ela apareceu no Externato Santa Inês, e uma professora que ministrava aula
ficou aterrorizada. Imediatamente, a professora solicitou que um aluno
procurasse alguém para ajudá-la. Pernambucana ficou parada, recostada à porta,
com seu olhar penetrante e silenciosa. A professora apavorada começou a rezar.
Pernambucana se foi como veio. Em nenhum momento esboçou agressividade. Desse
modo, "voltou a reinar a paz na escola, mas não a calma. Nesse dia, as aulas
terminaram mais cedo"(8:46).
PERSONAGEM 3: TANDÔR
Entre os anos 40 e início dos anos 50, iríamos encontrar um outro personagem
circulando nas principais ruas do Crato, fazendo parte das paisagens dessa
cidade, cujo nome era Tandôr. Era um caboclo, troncudo, baixo na estatura.
Usava cinto largo de muitos adereços, fivelas variadas, cravejado de tudo
quanto era ilhoses e um chapéu de couro. Era um sujeito prestativo, eficiente,
calmo e vivia recordando as proezas de seu antigo patrão, Dr. José Gesteira, a
quem servia em sua Casa de Saúde.
Tandôr com suas vestes exóticas, cheias de adereços, chamava a atenção de
crianças e adultos. Em algumas ocasiões, provocava medo, e as crianças corriam
e mantinham-se escondidas até a sua passagem.
A despeito disso, Tandôr era um personagem respeitado e querido da população,
que nunca ouviu falar de atos de violência de sua parte(9).
Este verso caracteriza bem o personagem citado.
(...) E o nosso velho Tandôr.
Pagem de Dr. Gesteira.
Andava todo enfeitado com
Um grande facão de lado
Chapéu de couro também(6:6).
Um fato curioso no imaginário popular sobre o louco é a idéia de que este é um
ser perigoso, imprevisível, capaz de praticar atos violentos. Enfim, alguém que
a prudência aconselha evitar sempre que possível, manter um certo
distanciamento. Alguém que as pessoas desejam o seu isolamento em prisões e/ou
em hospitais psiquiátricos.
No entanto, as histórias de Maria Caboré, Pernambucana e Tandôr revelam que não
existe nexo entre loucura e periculosidade, uma vez que todos eram
relativamente calmos.
No século XVII, o louco por ter sido agrupado juntamente com libertinos,
ladrões, criminosos, formou laços de parentescos que não se romperam, mas
permaneceram no imaginário coletivo. A loucura estabeleceu uma ligação com as
culpas morais e sociais, que parece longe de ser rompida, contribuindo para o
processo de estigmatização do louco(1).
A partir dessas discussões iniciais, é necessário ressignificar os conceitos de
saúde e de doença mental. Compreendê-los não mais como noções opostas como
postula o pensamento racionalista, mas como termos, ao mesmo tempo, antagônicos
e complementares. "Trata-se de conceber a doença como expressão complexa da
existência humana, e não como fratura na continuidade de sua existência"(4:
176).
Só assim será possível conviver com o diferente, respeitar sua singularidade,
configurando-se como um projeto de vida, no sentido "do reconhecimento de novos
sujeitos de direito, de novos direitos para os sujeitos, de novas subjetivações
daqueles que seriam objetivados pelos saberes e práticas científicas (...)"(3:
121).
PERSONAGEM 4: COMPADRE CHICO
Prosseguindo as andanças pela cidade, iremos encontrar um outro personagem
famoso, o Compadre Chico, juntamente com seu subalterno, o Frutuoso.
Compadre Chico acreditava, piamente, na volta do regime monárquico e na sua
mente organizava forças militares, para fazer retornar o imperador. Planejava
batalhas, nomeava comandantes, designava o local em que as tropas deviam
postar-se para o ataque e, às vezes, marcava a data em que o Crato seria
saqueado. Adentrando em suas fantasias, nos deparamos com uma grande quantidade
de soldados espalhados e armados, prontos, em marcha para a grande batalha para
o retorno do Imperador, tão logo recebessem ordens superiores, como pensava
Frutuoso(10).
Era um tipo interessante: não bebia, não fumava, não trabalhava, mas vivia bem
alimentado. Ficava furioso, um tanto violento, quando alguém o contestava ou o
chamava de bode. Andava sempre com um cacetete na mão, talvez como uma forma de
se defender dos risos, das injúrias grosseiras e das troças, às vezes, cruéis.
No entanto, em suas andanças não existem indícios de que tenha agredido alguma
pessoa.
Compadre Chico tinha o hábito de abordar as pessoas na rua conseguindo que
algumas parassem para escutá-lo. Trocava idéias com os moradores da cidade,
sobre as batalhas que estava preparando juntamente com seus amigos. O verso a
seguir descreve essa importante figura:
Compadre Chico,
Imperial,
Esse Dom Pedro
De minha terra,
Olhos mortiços,
Mão à bengala,
O busto ereto
A barba rala.
No peito rude
Luzem medalhas.
Na mente enferma, mil sonhos vivos
De um mundo morto.
Mas que presença
Nas ruas calma
De minha infância (...)
Compadre Chico,
Imperial,
Seu reino é morto,
Seu reino vive(8:50).
PERSONAGEM 5: DONA JOAQUINA
Além de Compadre Chico, outro personagem importante foi Dona Joaquina, que
circulava nas praças e ruas do Crato, no final da década de 40 e nos anos 50.
Ela e sua filha trabalhavam como domésticas.
Certo dia, Dona Joaquina abandonou a família e passou a morar na Praça da Sé,
debaixo de um pé de oitizeiro. Permaneceu morando naquela praça, boa parte de
sua vida, só saiu de lá quando adoeceu, sendo retirada por sua filha. Na época,
Dona Joaquina era jovem, de cor morena, cabelos pretos. Diariamente sua filha
levava-lhe a alimentação(9:88).
A partir dos versos anteriormente citados, e das histórias contadas sobre
Compadre Chico e Dona Joaquina, pode-se afirmar que realidade e ficção estão
intimamente ligadas.
Assim como na cidade do Crato, em que o Compadre Chico, Dona Joaquina e outros
personagens citados viviam em praças e vagavam pelas ruas da cidade, Guimarães
Rosa, por exemplo, em sua obra Primeiras Estórias - A Terceira Margem do Rio
(11) descreve sobre um personagem que encomendou uma canoa especial passando a
viver dentro dela. Remava rio acima, rio abaixo. Para tal feito, o personagem
abandonou a esposa e os filhos ainda pequenos. Os filhos ao ver a atitude do
pai - saindo calmamente de casa, entrando na canoa, navegando na imensidão do
rio e chegando na outra margem - não entenderam tal comportamento. A vizinhança
achou que o homem estivesse com "doideira" ou uma doença "feia como a lepra".
Diariamente um de seus filhos depositava, na margem do rio, alimentos e
agasalhos. Essa rotina perdurou por longos anos. O filho já velho e cansado,
certo dia, chamou o pai que estava na outra margem do rio. O pai escutou o
filho, ficou em pé e remou em sua direção. Surgiu com uma aparência que se
assemelhava mais a um bicho do que a um homem: cabelos longos, unhas grandes,
barbudo, magro, preto de sol, quase nu. Assustado com a aparência do pai, o
filho fugiu.
PERSONAGEM 6: DONA ISABEL BAIXEIRINHA
Ainda na década 40 e 50, passeando pelas ruas e avenidas do Crato, iríamos
encontrar Dona Isabel Baixeirinha. Foi assim apelidada devido à sua estatura,
andava sozinha com passos curtos, costumava varrer as ruas, algumas vezes
tornava-se agressiva quando lhe chamavam de Baixeirinha.
Baixeirinha, ô Baixeirinha!
Varre que varre, varre que varre,
pequenina, miudinha.
Mais pó no corpo, menos pó no chão.
Baixeirinha varre varre...
Varre as ruas, a cidade, varre a vida, varre a dor
A maldade e o coração(8:45-6).
Essa poesia retrata a dor, o sofrimento vivido cotidianamente pela personagem
Baixerinha, deixando patente que "a fronteira entre fato e ficção, que já
chegou a parecer bem definida, acabou por ruir na nossa denominada era 'pós-
moderna"(12:177).
Os grandes poemas sabem reencontrar o sentido fundamental da vida que a ação
ordinária neglicencia ou, até mesmo, quer ignorar.
PERSONAGEM 7: MOIPEN
Continuando nossas andanças pelas avenidas e ruas estreitas do Crato, iríamos
ouvir, entre as décadas de 50, 60 e início dos anos 70, uma voz diferente.
Moi...Moi...Moi
Moipen...Moipen...Moipen...
Moipen era um homem alto, andava pelas ruas da cidade, com aspecto de moribundo
e girava em um dos seus dedos da mão direita uma bandeja de flandre desbotada,
como se fosse um disco adaptado entoando o som da palavra esmola. Moipen
significava uma esmola para Nossa Senhora da Penha(13).
Moipen andava de casa em casa, com um grande chapéu de palha de abas largas
sobre a testa cobrindo quase completamente os seus olhos. Contam alguns
entrevistados que ele costumava percorrer diariamente às Ruas Miguel Lima
Verde, Pedro II e José Carvalho, na cidade do Crato. Afirmam ainda que Moipen
era um personagem estranho, porém pacato; a maioria das crianças ficava
assustada quando se aproximava dele.
PERSONAGEM 8: PEDRO CABEÇÃO
Além de Moipen, iríamos nos deparar também com seu amigo Pedro Cabeção, que
costumava circular pelas alamedas das Ruas Miguel Lima Verde e José Carvalho,
Praça Siqueira Campos, onde antes ficava o Cine Cassino. Era um ser
aparentemente risonho, feliz, estalava a língua no encontro do céu da boca
provocando um ruído, chamando a atenção dos transeuntes, com quem trocava
acenos e recebia trocados que proporcionavam sua sobrevivência. Por ser
simpático, conseguiu se fazer querido de muitos, sobretudo das crianças.
Costumava ficar sentado em um banquinho encostado na parede a espera de uma
esmola. Pedro Cabeção, com sua estatura pequena e cabeça grande, sempre levava
consigo o banquinho. Diariamente podíamos encontrá-lo sentado no referido
banquinho em uma das calçadas das Ruas Lima Verde ou José Carvalho. Algumas
vezes se dirigia à casa de sua tia.
Um dos colaborares desta pesquisa (D5) destacou que Pedro Cabeção tinha dois
sonhos e só iria concretizá-los quando conseguisse a sua aposentadoria: visitar
a Estátua de Padre Cícero Romão Batista na cidade de Juazeiro do Norte e
comprar um rádio. Quando conseguiu a aposentadoria realizou os referidos
sonhos. Porém, certo dia, sua tia ao chegar em casa percebeu que Pedro estava
quebrando o rádio com uma pedra. Então, ela indagou: Pedro o que aconteceu? De
início, ele ficou calado, depois, disse: Tia este rádio só vive me chateando,
fica só dizendo: você viu o cabeção por aí, por isto eu quebrei para ele não
dizer mais isto.
PERSONAGEM 0: ANTÔNIO CORNINHO
Outro personagem que compôs a vasta galeria dos tipos diferentes que percorriam
as ruas do Crato foi Antônio Corninho. Nos anos 60, encontraríamos essa figura
na Rua da Vala, hoje, Tristão Gonçalves.
Antônio "corninho" era um sujeito de estatura baixa, franzino, gostava de usar
chapéu de couro, paletó escuro e envelhecido pelo tempo, andava sempre com um
guarda-chuva pendurado no braço. Ele arranjou uma namorada por nome Macaúba, a
qual quase sempre estava grávida. Os dois viviam em eterna lua-de-mel, na Rua
Tristão Gonçalves, nos batentes do prédio onde funcionava o escritório da VASP,
causando transtornos aos transeuntes da cidade. Era um personagem aparentemente
calmo. No entanto, ficava zangado quando algumas pessoas o chamavam de corno.
Geralmente respondia às provocações de alguns pedestres de forma sorridente e
em voz alta: "melhor ser corno do que ser prefeito. Prefeito é só quatro anos e
corno é pra vida toda"(9:86).
A obra Quincas Borba destaca um personagem por nome de Rubião que,
paulatinamente, passou a apresentar um comportamento estranho, com sintomas de
delírio de grandeza. Um dia, ainda na fase inicial da sua doença, Rubião
começou a vaguear sozinho pelas ruas da cidade,
gesticulava e falava a alguém que supunha trazer pelo braço, e era a
imperatriz (...) Homens que iam passando, paravam; do interior das
lojas corria gente às portas. Uns riam-se, outros ficavam
indiferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos
para poupá-los à aflição que lhes dava o espetáculo do delírio. Uma
turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão próximos, que lhe
ouviam as palavras. Crianças de toda a sorte vinham juntar-se ao
grupo (...) e começou a surriada: - Ó gira! Ó gira! berravam os
vadios (...)(14:202-4).
As relações desse personagem com a população local, assim como no caso de
Antônio "corninho", demonstram que, muitas vezes, o louco, devido ao seu modo
excêntrico de ser, tem sido objeto de gozação, de provocação ou de medo.
Antônio "corninho" foi, em muitas ocasiões, objeto de chacota, de indiferença
por parte da população, como foi Rubião.
4 Configuração da loucura ontem e hoje: reflexões finais
Objetivando-se reconstruir um pouco a história da loucura nos espaços públicos
da cidade do Crato ' Ceará, narrou-se as trajetórias de nove personagens
presentes tanto na literatura local como no imaginário social.
Pode-se observar que a doença mental foi, e continua sendo, algo enigmático e
incerto. O que ela é, o que a causa, o que pode curá-la continuam sendo
questionamentos constantes entre profissionais e pessoas de um modo geral.
Essas incertezas sempre geraram angústia, insegurança e, muitas vezes, tomada
de decisão drástica por parte do poder público, da sociedade e das instituições
psiquiátricas.
Até à década de 70 iríamos encontrar algumas figuras marcantes nas ruas da
cidade do Crato que eram visíveis aos olhos da população, por meio de roupas
exóticas, de hábitos esquisitos, de palavras desconexas, gestos estranhos,
alterações no modo de andar e na fisionomia. Muitas vezes, a loucura tornava-se
perceptível em decorrência de sintomas (delírio, alucinação) apresentados pelos
personagens.
Os personagens descritos, neste estudo, Maria Caboré, Pernambucana, Tândor,
Compadre Chico, Dona Joaquina, Baixerinha, Moipen, Pedro Cabeção e Antônio
"corninho", pareciam ser pouco temidos pelos transeuntes do Crato, e por mais
esquisitos e diferentes que fossem considerados seus estilos de vida, isso não
impediu que, de alguma maneira, fossem incorporados ao cotidiano da cidade e
vivessem em liberdade.
Assim, pode-se afirmar que apesar dos sentimentos ambivalentes por parte das
pessoas em relação aos personagens considerados loucos, sentimentos que
oscilavam entre a aceitação e a rejeição, havia na cidade do Crato, entre as
décadas de 30 e 60, um espaço de convivência entre o louco e o considerado
normal. Havia, portanto, naquele momento histórico, uma certa receptividade à
loucura.
A partir da década de 70, só alguns personagens do Crato, cuja trajetória de
vida vacilava nas fronteiras entre a loucura, a vadiagem e a mendicância,
conseguiram preservar, apesar de tudo, as convivências e as vivências
possibilitadas pela liberdade das ruas e avenidas. Outros foram isolados no
asilo, temporariamente ou de forma definitiva. E, embora isolados,
possivelmente, não deixaram de sonhar, de fantasiar circulando livres pelas
ruas da cidade.
A rua chega a preocupar os loucos. Nos hospícios, onde esses cavalheiros andam
doidos por se ver cá fora, encontrei planos de ruas ideais, cantores de rua, e
um deles mesmo chegou a entregar-me um longo poema que começava assim:
A rua...
Cumprida, cumprida, atua...
Olé! Complicada, complicada, a lua
A rua
Nua!(15:53).
Contrapondo-se ao entendimento de que o louco deve ficar isolado, acredita-se
que a liberdade, o afeto e a compreensão possibilitam a sociabilidade e
contribuem, fundamentalmente, para a reabilitação psicossocial das pessoas com
transtornos mentais. O que está em debate para os profissionais da área de
enfermagem em saúde mental e/ou psiquiátrica
é a necessidade de construir vínculos, de acolher o sofrimento,
enfim, de construir uma prática criativa, solidária e saber transitar
por um conhecimento ecocêntrico, complexo, multidimensional que
privilegie o intercâmbio entre vida e idéias(16:590).
Pode-se afirmar que:
(...) Melhor do que choque elétrico
Calmante forte e prisão
Dêem aos nossos pacientes
Afeto e compreensão,
Fechem as portas dos hospícios
Abram as do coração(17:10).
Enfim, espera-se que este estudo traga contribuições para o debate sobre o
processo da reforma psiquiátrica na região do Cariri cearense, e sobre a
prática dos profissionais de enfermagem no campo da psiquiatria e da saúde
mental, salientando a compreensão de que os portadores de sofrimento
psicossocial andam "loucos" por afeto, aceitação, inclusão e liberdade.