Subnotificação de acidentes com perfurocortantes na enfermagem
PESQUISA
Subnotificação de acidentes com perfurocortantes na enfermagem
Underreporting of accidents with cutting and piercing objects in nursing
Subnotificación de accidentes con perfurocortantes en enfermería
Maria Helena Palucci Marziale
Enfermeira. Professor Livre-Docente da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/
USP
1 Introdução
As lesões percutâneas causadas por acidentes do trabalho devido a manipulação
de material perfurocortante é considerado um sério problema nos Estados Unidos,
por atingir aproximadamente 10 milhões de profissionais da área da saúde e,
pela possibilidade de transmissão ocupacional de patógenos veiculados pelo
sangue como o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), Vírus da Hepatite B (HBV)
e o Vírus da Hepatite C (HCV). Em adição, as conseqüências fisiológicas desses
acidentes, podem acarretar severos problemas emocionais aos trabalhadores
devido à possibilidade de contaminação por vírus causadores de patologias
letais e, envoltas em preconceitos, como a AIDS(1).
Os dados mais recentes(2) indicam que o risco de infecção pós-exposição
ocupacional com material perfurocortante é de 0,25% a 0,4% para o vírus HIV, 6%
a 30% para o vírus HBV e 0,4% a 1,8% para o vírus HCV.
De acordo com o Center for Disease Control and prevention- CDC, aproximadamente
384.000 injúrias percutâneas ocorrem anualmente nos hospitais americanos, sendo
que 236.000 dessas injúrias são resultantes de acidentes com material
perfurocortante(1).
Diante dessa situação, foi criada, naquele país, uma lei federal (Needlestick
Safety and Prevention Act) com vistas a prevenir a ocorrência de tais acidentes
e esforços foram empreendidos junto aos trabalhadores, aos hospitais e
indústrias para minimizar esses acidentes(3).
Um sistema padronizado de registro, o Exposure Prevention Information Network '
EPINet, foi criado por pesquisadores da Universidade de Virgínia e atualmente é
usado por hospitais e instituições de saúde para notificar como as exposições
ocupacionais ocorrem e a eficiência das medidas preventivas adotadas(4).
O CDC e os hospitais americanos desenvolveram planos pós-exposição ocupacional
a sangue e fluidos corpóreos que envolvem notificação, avaliação e tratamento
do trabalhador, a fim de planejar estratégias, elaborar estimativas e avaliar
as condutas a serem adotadas para redução dos acidentes(4).
A notificação do acidente é extremamente importante para o planejamento de
estratégias preventivas, além disso, ela é um recurso que assegura ao
trabalhador o direito de receber avaliação médica especializada, tratamento
adequado e benefícios trabalhistas.
A subnotificação da exposição ocupacional a doenças infecciosas é uma grande
barreira para entender os riscos e os fatores associados com a exposição
ocupacional a sangue e fluidos corpóreos(5).
No Brasil, embora o risco de acidentes dessa natureza estejam presentes nas
atividades dos profissionais de saúde, principalmente entre trabalhadores de
enfermagem, do grande número de pacientes portadores dos vírus HIV, HBV e HCV e
das más condições de trabalho oferecidas por muitos hospitais, é observada a
inexistência de dados sistematizados sobre a ocorrência dos acidentes com
material pérfurocortante que permitam conhecer a real magnitude do problema.
Outro fator que dificulta conhecer a realidade brasileira, é a falta da cultura
para a notificação do acidente do trabalho.
Embora o número de pesquisas abordando o referido problema tenha aumentado na
última década, as investigações, na maioria das vezes, retratam a realidade de
alguns hospitais ou de algumas regiões do país. Dentre as pesquisas realizadas
destacamos estudos(6-10) que revelam os fatores associados a ocorrência de
inoculações acidentais entre trabalhadores da área da saúde.
Os resultados das pesquisas têm sido imprescindíveis para as mudanças das
práticas de trabalho. As pesquisas têm alertado para a necessidade de
conscientização dos trabalhadores, administradores e instituições para com os
riscos da exposição ocupacional a sangue e fluidos corpóreos veiculadores de
patógenos que causam infecção e a necessidade de incentivar sua notificação.
Notificar um acidente do trabalho significa registrá-lo no protocolo de
Comunicação de Acidente de Trabalho ' CAT, o referido protocolo é
disponibilizado através de via impressa e eletrônica. O empregador é obrigado a
comunicar a Previdência Social a ocorrência do acidente de trabalho(11). A
notificação deve ser feita até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e
de imediato à autoridade policial competente em caso de acidente fatal. No caso
de falta de comunicação, por parte da empresa, poderão emitir a CAT o próprio
acidentado, seus dependentes, a entidade sindical competente, o médico que o
assistiu ou qualquer autoridade pública, não havendo neste caso limite de prazo
para a notificação(12).
As estatísticas dos acidentes do trabalho são importantes fontes de informação
para programas que visam tornar as práticas de trabalho mais seguras. O sub-
registro dos acidentes, por sua vez, tem aumentado nos momentos de recessão
econômica devido, entre outros aspectos, ao medo do trabalhador de perder seu
emprego(13).
A referida autora, ao estudar as causas de subnotificação de acidentes do
trabalho entre o pessoal de enfermagem, constatou dentre os motivos alegados
pelos trabalhadores o desconhecimento dos reais riscos causados pelo acidente e
da necessidade da realização da notificação.
O sistema de registros dos acidentes do trabalho no Brasil precisa ser
modificado com vistas às dificuldades relacionadas à qualidade e quantidade de
informações disponibilizadas no protocolo usado(14). A autora considera que
esse fato que possa estar contribuindo, de forma efetiva, para a subnotificação
de acidentes do trabalho em nosso país.
Estudando os fatores associados à ocorrência dos acidentes de trabalho com
material perfurocortante temos constatado que múltiplos fatores podem estar
associados. No entanto, dentre os principais fatores estão os relacionados a
inadequações da organização do trabalho, das práticas de trabalho adotadas, dos
materiais disponíveis e fatores pessoais. Temos observado o registro de um
pequeno número de acidentes, fato que nos leva a considerar a hipótese de
subnotificação das inoculações acidentais, quando relacionado ao grande volume
de manipulação de agulhas e catéteres intravenosos efetuada pelos profissionais
de enfermagem na execução de suas atividades (10).
Em estudorealizado em quatro hospitais da região de Ribeirão Preto/SP,
constatamos que na população composta por 1662 trabalhadores de enfermagem
foram registrados 46 acidentes do trabalho com perfurocortante, o que
corresponde a ocorrência anual de apenas 2,70%(15). Diante desta situação nos
motivamos a realizar este estudo.
2 Objetivos
- Identificar os acidentes de trabalho ocorridos, entre os trabalhadores de
enfermagem, nos últimos três anos e os ocasionados por material
perfurocortante;
- Identificar se os acidentes ocorridos com material perfurocortante foram ou
não notificados;
- Levantar os motivos que levaram os trabalhadores a notificar ou não os
acidentes de trabalho com material perfurocortante;
- Levantar as facilidades e dificuldades encontradas pelos trabalhadores para
notificação do acidente do trabalho nos hospitais estudados.
3 Material e método
Pesquisa de campo de caráter descritivo e análise quantitativa dos dados.
3.1 Local
O estudo foi realizado em dois hospitais da região de Ribeirão Preto ' São
Paulo:
- Hospital A: Hospital Universitário da cidade de Ribeirão Preto com 3900
trabalhadores, sendo 1166 pertencentes à equipe de enfermagem. Hospital
selecionado para a pesquisa por ter sido identificado no estudo anterior (15)
como o local de menor ocorrência de acidentes de trabalho com material
perfurocortante. A seleção se deu com vistas à hipótese de subnotificação dos
acidentes.
- Hospital B: Hospital Filantrópico de Sertãozinho com 240 trabalhadores, sendo
146 deles pertencentes à equipe de enfermagem. Selecionado por ter sido o
hospital com a maior ocorrência de acidentes do trabalho com material
perfurocortante notificados em 1999.
3.2 População/Amostra
A população foi constituída pelos trabalhadores de enfermagem dos hospitais A e
B (n=1.312). A amostra foi composta por 350 trabalhadores de enfermagem do
hospital A e 44 trabalhadores de enfermagem do hospital B, totalizado 394
sujeitos. O critério de inclusão utilizado considerou a amostragem de 30% do
total de trabalhadores lotados nas unidades de internação dos dois hospitais e
o critério de exclusão eliminou os trabalhadores que estavam de férias,
licenças e aqueles que não consentiram em participar da pesquisa.
3.3 Coleta de dados
Os dados foram coletados através de entrevistas estruturadas efetuadas no
próprio local de trabalho por duas graduadas em enfermagem, previamente
treinadas.
Para nortear as entrevistas foi utilizado um protocolo de coleta de dados
construído pelas autoras. O referido protocolo foi submetido a apreciação de
três enfermeiros pesquisadores especialistas na área e considerado adequado
quanto à objetividade, clareza e conteúdo.
As entrevistadoras foram treinadas para a aplicação do protocolo através da
realização de um teste-piloto, no qual foram entrevistados 10 trabalhadores da
Maternidade dos dois hospitais. Os dados foram coletados no período de janeiro
a junho de 2002 nos turnos da manhã, tarde e noite.
3. 4 Aspectos éticos
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP.
4 Resultados e Discussão
Inicialmente apresentamos informações relativas às rotinas de notificação nos
hospitais estudados. Tais informações foram obtidas junto a direção dos
hospitais quando da solicitação de permissão para realização da pesquisa.
A notificação do acidente de trabalho no hospital A é efetuada no Serviço
Especializado de Segurança e Medicina do Trabalho ' SESMT, onde é preenchida a
CAT e feito o encaminhamento a Unidade Especializada de Tratamento de Doenças
Infecciosas - UETDI dos casos de exposição ocupacional a sangue e fluídos
corpóreos. A referida unidade também é responsável pelo atendimento e avaliação
dos trabalhadores acidentados com material perfurocortante ocorridos nos
hospitais da região de Ribeirão Preto ' SP.
A notificação do acidente com material perfurocortante é feita no período
noturno, feriados e finais de semana na própria UETDI, devido ao não
funcionamento do SESMT nos referidos períodos.
No hospital B o preenchimento da CAT é feito pela enfermeira da Comissão de
Controle de Infecção Hospitalar ou pela enfermeira supervisora que estiver no
plantão. Em casos de inoculações acidentais o trabalhador é encaminhado para a
UETDI do hospital A.
O trabalhadores dos dois hospitais estudados possuíam, com maior freqüência
(39%), tempo de serviço inferior a 6 anos e em relação aos horários de trabalho
foi constatado que 23,45% dos trabalhadores do hospital A e 52,28% do hospital
B possuíam esquema de trabalho em turno fixo e 76,55% trabalhadores no hospital
A e 47,72% trabalhadores no hospital B em turnos alternantes.
Devido aos baixos salários recebidos é comum encontrarmos trabalhadores de
enfermagem que possuem mais de um emprego. Neste estudo foi constatado que 43
(12,28%) trabalhadores do hospital A e 10 (22,70%) trabalhadores do hospital B
possuíam outro emprego o que aumenta sua exposição aos riscos ocupacionais e a
sobrecarga de trabalho.
Durante o período estudado 197 trabalhadores de enfermagem relataram terem sido
acometidos por acidentes de trabalho nos hospitais sendo que, 175 trabalhadores
acidentados (do hospital A) relataram ter sofrido 336 episódios de acidentes e
22 trabalhadores acidentados (do hospital B) relataram ter sofrido 35 acidentes
o que demonstram que o mesmo trabalhador pode ter sofrido mais que um acidente.
Dos 336 acidentes relatados pelos trabalhadores do Hospital A, 243 (72,32%)
acidentes foram notificados e 93 (27,68%) não notificados. No hospital B dos 35
acidentes, 21 (60%) foram notificados e 14 (40%) não notificados. Os resultados
revelam que os trabalhadores de enfermagem possuem condutas diferentes diante
da ocorrência de cada acidente.
Apesar de legalmente obrigatória a notificação dos acidentes de trabalho, na
prática, está sujeita a subnotificação, devido ao sistema de informação usado e
a concepção fragmentada das relações saúde e trabalho(10). Outro fator que tem
contribuído para a subnotificação especificamente, das injúrias percutâneas,
pelos trabalhadores de enfermagem está relacionada à falta de importância
atribuída pelos próprios trabalhadores às pequenas lesões causadas pelas
agulhas(16).
Dos 336 relatados pelos trabalhadores do Hospital A, 242 (72,02%) acidentes
foram ocasionados por material perfurocortante e desses, 150 (61,98%) foram
notificados e 92 (38,02%) não. Dos 35 acidentes relatados pelos trabalhadores
do Hospital B 30 (85,72%) foram ocasionados por material perfurocortante
desses, 18 (60,00%) foram notificados e 12 (40,00%) não.
Os dados demonstram que embora os hospitais apresentem estruturas diferentes,
seus trabalhadores enfrentam numerosos episódios de inoculações acidentais, o
que corrobora com dados da literatura que apontam inúmeros fatores associados à
ocorrência dos acidentes, em especial, a forma de organização de trabalho e
disponibilidade de Equipamento de Proteção Individual, dispositivos de
segurança e educação em serviço(8).
Dentre o motivo alegado com maior freqüência pelos trabalhadores dos hospitais
A e B para notificar o acidente estava relacionado à percepção que o
trabalhador tem de que a notificação oferece proteção se ele adoecer (29,7) e,
para não notificar o acidente destaca-se o julgamento feito pelo trabalhador da
não necessidade do registro (32,70%) e o desconhecimento do risco de contrair
doenças (24,04%).
Devido à falta de informações muitos trabalhadores se consideram culpados pela
ocorrência do acidente, no entanto, estudos mostram as questões de ordem
pessoal como: desatenção, pressa e despreparo estão na maioria das vezes
associados a fatores provenientes das condições de trabalho oferecidas(10).
Os resultados indicaram que 27,92% dos trabalhadores não referiram facilidades
para notificar o acidente. Os fatores considerados facilitadores estão
relacionados, principalmente, ao fato da notificação ser feita no próprio
hospital e a rapidez do procedimento.
Como pode ser constatado na tabela_4, vários motivos foram descritos como
dificuldades para notificar os acidentes, entre eles as dificuldades
burocráticas do sistema de notificação, na forma de atendimento dos
trabalhadores, tanto para preenchimento da CAT como para avaliação
especializada, além de dificuldades pessoais dos trabalhadores.
Devido à falta de conhecimento do trabalhador em saber os riscos a que está
exposto, no ambiente de trabalho e a culpabilidade da ocorrência que o
trabalhador se auto-atribui, foram aspectos relatados pelos trabalhadores. No
entanto, são inúmeros os fatores que podem estar associados à ocorrência de
acidentes percutâneos entre os quais grande manipulação de agulhas, sobrecarga
de atividades, o estresse, a pressa, comportamento agressivo de pacientes,
urgências, falta de programas de capacitação do pessoal, disposição e
inadequação das caixas de descarte do material, não oferta de equipamentos de
segurança, desconsideração às precauções padrão, desconhecimento do risco de
infecção e reencape ativo de agulhas e o não oferecimento de material com
agulhas retráteis e seguras devem ser considerados em conjunto, quando da
investigação do motivo do acidente (17,18).
6 Conclusões
Foram investigadas possíveis subnotificações de acidentes de trabalho em dois
hospitais de estrutura técnico-administrativa diferentes da região de Ribeirão
Preto-SP. Os resultados obtidos nos permitiu concluir que a subnotificação de
inoculações acidentais ocorreu na ordem de 37,55% nos dois hospitais, alertando
para a necessidade de adoção de medidas preventivas à ocorrência do problema e,
incentivo às notificações.
Embora se constitua uma prática legalmente exigida, foi constatado que muitos
trabalhadores apresentam déficit de informações sobre a obrigatoriedade e a
importância do registro do acidente, pois, através do número de ocorrência se
torna possível diagnosticar a gravidade do problema e planejar medidas
específicas de prevenção a população trabalhadora da instituição em cada
ambiente de trabalho.
Dentre os motivos referidos pelos trabalhadores que os levaram a não notificar
os acidentes figuraram além da falta de conhecimento sobre o risco de
contaminação (24,04%) e a falta de informações sobre a necessidade ou forma de
registro (18,27%), o medo de demissão ou repreensão pela chefia (6,72%).
Destacamos ainda, que 32,70% dos trabalhadores acidentados julgaram
ingenuamente não ser necessário a notificação, fato que pode estar relacionado
a crença de que não seria atingido pela infecção. Salientamos que todos os
acidentes com material perfurocortante devem ser notificados e cabe ao médico
especialista avaliar a necessidade de realização de exames laboratoriais e o
tratamento preventivo com antiretrovirais.
A pesquisa ora realizada mostra que maior atenção deva ser voltada às questões
das inoculações acidentais nos hospitais, haja vista sua ocorrência e a falta
atenção direcionada pelas instituições e órgãos governamentais a essa questão.
Cabe lembrar que nos Estados Unidos existe uma legislação específica, visando a
prevenção de tais acidentes e, em nosso país não conseguimos conhecer a real
magnitude do problema existente.
Consideramos necessário agregar programas educativos à aquisição de material de
segurança, adequação da organização do trabalho e ao incentivo à notificação
para controlar e prevenir as inoculações acidentais entre os trabalhadores de
enfermagem.