Vivências maternais em unidade de terapia intensiva: um olhar fenomenológico
PESQUISA/RESEARCH/INVESTIGACIÓN
Vivências maternais em unidade de terapia intensiva: um olhar fenomenológico
Experiences of mothers with babies in intensive care units: a phenomenological
perspective
Vivencias maternales en unidad de terapia intensiva: una mirada fenomenológica
Regina Lúcia Ribeiro MorenoI; Maria Salete Bessa JorgeII; Rui Verlaine de
Oliveira MoreiraIII
ITerapeuta Ocupacional, Membro da Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital
Infantil Albert Sabin, Coordenadora do Projeto Mão Amigado HIAS, Mestre em
Saúde da criança e do adolescente pela UECE, E-mail: reginamoreno@secrel.com.br
IIEnfermeira, Professora Doutora em Enfermagem, Titular da Enfermagem em Saúde
Mental da UECE, Líder do Grupo de Pesquisa em Saúde Mental, Família e Práticas
de Saúde
IIIFilósofo, Professor Doutor titular da UFC-CE, Departamento de Direito
Processual da UFC
1 Introdução
A preocupação com o mundo vivencial de mães acompanhantes em Unidade de Terapia
Intensiva (UTI) e a escolha do tema surgem após experienciarmos a prática
profissional no Centro de Terapia Intensiva do Hospital Infantil Albert Sabin
(HIAS). Infelizmente, percebemos que a ação terapêutica permanece ainda mais
voltada para o corpo biológico, esquecendo-se, muitas vezes, da construção
simbólica, fundamental para a existência do ser-no-mundo Acreditamos, no
entanto, que a realidade vivida por essas mães vem passando por modificações
com o processo de humanização. A humanização tem sido fator presente,
demonstrando o novo rumo que o cuidado vem assumindo nos últimos anos(1). A
descoberta do modo como acontece o exercício da maternidade no cenário das
UTI's nasce, portanto, como proposta deste estudo e só poderá ser revelada após
a compreensão da vivência materna, no cotidiano de seu mundo-vida, pois de nada
adianta tentar descobrir as causas dos pensamentos, sentimentos, percepções e/
ou comportamentos de mães acompanhantes, se não houver a preocupação de dar-
lhes voz, para que possamos penetrar em seu mundo e revelar o que ali se
encontra velado e não o que parece e aparece. A pergunta-guia é Como se mostra
a você, ser mãe em uma UTI e vivenciar a maternagem nesta unidade hospitalar?
Tal indagação norteadora busca compreender o que é essencial e invariante para
que possamos chegar à sua essência e abrir caminhos para uma assistência mais
humanizante e integradora nas UTI's. Esse encaminhamento aproxima-se da
fenomenologia ao investigar a verdade tomada por base na vivência materna na
UTI, e tem como objetivos: a) compreender as experiências maternais em UTI; b)
conhecer o modo como a mãe acompanha seu filho enfermo nesta unidade
hospitalar, pois a fenomenologia proporciona o conhecimento do outro e do
mundo, ao favorecer o estabelecimento da relação entre sujeito-objeto(2).
2 Caminho Metodológico
A pesquisa foi desenvolvida a partir de março de 2002, em Fortaleza-CE, no
Hospital Infantil Albert Sabin, com oito mães acompanhantes, após ter sido
aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da UECE e da Instituição envolvida,
conforme determinações da Resolução 196/96 do Ministério da Saúde(3).
Fundamentou-se em categorias heideggerianas teóricas e, como método de
organização e interpretação das informações, arrimou-se nas categorias de
análise de Martins e Bicudo, isto é análise ideográfica e nomotética(4), na
busca de melhor conhecer o mundo experimental e cultural dessas mães,
denominada também fenômeno situado ou fenomenologia existencial, pois busca um
melhor acesso ao mundo-vida dos sujeitos envolvidos, descobrindo o não-dito
contido em forma simbólica para chegar à objetividade e des-velar o objeto de
estudo. Os critérios de inclusão dos sujeitos, na constituição dos
participantes da pesquisa, foram aceitabilidade e acompanhamento materno na
UTI. A entrevista fenomenológica contendo a questão - Como se mostra a você ser
mãe em uma UTI e vivenciar a maternagem nessa unidade hospitalar?- fez-se
presente, como técnica de obtenção de informações, após assinatura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, por possibilitar melhor aproximação dos
dados vivenciais da mãe acompanhante, os quais em tempo algum, poderiam ser
quantificados na lógica do conhecimento científico cartesiano, pelo fato de
relatar a subjetividade humana, impossível de ser mensurada, calculada,
controlada e/ou precisada, como os aspectos objetivos de uma pesquisa
científica tradicional. Alguns dados pessoais da mãe foram também coletados
para elucidar o seu modo de ser e esculpir os mais belos detalhes deste
fenômeno.
2.1 O Modo de ser da mãe acompanhante Na UTI
As unidades de significado -Ser-mãe na UTI, Real vivido no mundo da UTI,
Sentimentos e emoções, Aspectos relacionais (Ser-com na UTI)- foram trabalhadas
visando a obter as convergências das unidades dos discursos que compõem a
configuração das asserções gerais, importantes para desvelar a estrutura do
fenômeno: Vivências maternais na UTI. Ser-mãe na UTI refletem cuidar e, ainda,
repercussões de atos maternais junto ao bebê enfermo. Analisando a convergência
dos discursos com fundamento no referencial filosófico de Martin Heidegger,
podemos asseverar que Ser-mãe na UTI implica solicitude, presença, preocupação
e cuidado.
2.1.1 Solicitude
A solicitude é a forma de o ser relacionar-se com o outro, de cuidar da
existência do outro, ou ainda oferecer condições ao outro de cuidar-se. A
solicitude ou maneira de cuidar do outro geralmente só se faz possível,
mediante a relação envolvente e significante, cujos ingredientes básicos são
consideração e paciência com o outro, podendo apresentar-se como cuidado
dominador, manipulador, onde tudo é feito pelo outro, ou cuidado que
possibilita ao outro crescer, descobrir-se e assumir o próprio caminho(5). Ser-
mãe para os sujeitos desta pesquisa é dar força pro bebê, pra ele reagir mais
rápido (M1). Dar carinho, amor. Cuidar da minha filha, saber se ela tá
reagindo, aceitando a dieta. Porque ela precisa muito (M2). Tá ali do lado,
apoiando, quando vão pegar uma veia (M7).
2.1.2 Pre-sença (Dasein)
A pre-sença, que é o ente que sempre eu mesmo sou, dificilmente ocorre
isoladamente. Um ser ou modo de ser caracteriza-se pelo estar com o outro. E é
nesta co-pre-sença que o homem constrói a sua existência, a sua história. Todo
ser é sempre ser-com, mesmo na solidão e isolamento. A pre-sença é sempre co-
pre-sença. Nesta pesquisa, estar presente parece significar estar perto, estar
em comunhão com o filho, mantendo vivos os laços de afeto construídos ao longo
da gravidez. A essência da presença implica compreensão do ser dos outros entes
no mundo, além da compreensão do Ser-aí e do mundo, isoladamente, pois o mundo
da presença é sempre um mundo compartilhado com os outros e o viver é sempre
convivência(6). É ficar ao lado dela, ao redor dela, pra quando ela precisar de
mim, eu estar perto dela (M2). Acho que eu tando lá, perto dela, falando com
ela, fazendo carinho, ela melhora um pouco mais rápido (M3). É passar carinho,
segurar na mãozinha, conversar, dar muito apoio e força, Assim ela vai se
sentir mais segura. Sentindo que não tá sozinha, que a mãe dela tá lá e gosta
muito dela (M7).
2.1.3 Pré-ocupação
A análise existencial de Heidegger mostra que a pré-ocupação responde aos
aspectos ontológicos do ser, chegando à autenticidade, por transcender o
momento ôntico da inautenticidade, modos do homem se manifestar em sua
existência. Pré-ocupação é ocupar-se, como instituição social de fato, sem
preencher todo um significado no mundo(6). O ser por um outro, contra um outro,
sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos
outros são modos deficientes de pré-ocupação, que caracterizam a convivência, e
não a constituição ontológica da pre-sença como ser-com. Pre-ocupar-se para os
sujeitos envolvidos é ficar com o bebê ,dar atenção. É conversar com ele pra se
fazer perceber. É observar o que está sendo feito (M1). É dar carinho, amor,
tocar nele, ficar do lado, saber se ele tá reagindo, aceitando a dieta [...]
(M2). É estar junto do filho, falar com ele, dar carinho, força, passar a mão
(M3). [...] É nervosismo, expectativa, estresse, preocupação. É tudo (M5).
2.2 Cuidado
O cuidado materno, atividade com a qual se ocupam as mães acompanhantes, é
geralmente explicitado sob um prisma existencial, eficiente para promover saúde
e crescimento, alívio da dor ou até facilitar a cura. O cuidado é visto pelos
participantes desse estudo, portanto, como um constitutivo do sujeito e não
como algo exterior a ele. O cuidado no entanto, pode ser entendido ainda, como
algo a mais do que um simples ato; uma atitude que, do ponto de vista
existencial, se encontra na constituição ontológica do ser(7). Nos discursos,
as mães discorrem sobre as possibilidades e/ou dificuldades de cuidado na UTI,
e ainda sobre o significado desta prática para ela e para o seu bebê enfermo.
Tô de licença pra ficar com o M. Ele precisa de cuidado, de atenção especial
(M1). Você fica com aquela vontade de pegar, de cuidar, banhar, fazer todas
aquelas coisas (M8).
A mãe acompanhante é um Ser-aí de sentimentos e preocupações, que se revela
como um ser que cuida, mas que também precisa de cuidados. É aquela que age e
reage movida pelos encargos do cuidado ao ser lançada no mundo da UTI. E
vivencia, de forma explicita ou não, aspectos existenciais, revelando,
consciente ou inconscientemente, os significados que atribui à maternagem na
UTI.
Observando os discursos, podemos assegurar que o Real vivido por estas mães na
UTI implica Ser-aí na UTI; Cuidar e Caminhos de esperança.
2.2.1 Ser-aí na UTI
O homem é existência, é um ser no mundo, vinculado a uma espacialidade e
temporalidade. Ser-aí é facticidade, traduzida em tempo e espaço; portanto é um
ser histórico(6). A vida é entendida também como existência. Portanto, é
através da vida, do estar-no-mundo, do relacionar-se com o outro, que o homem
tem possibilidades de vir a ser e assumir a sua existência humana, manifestando
a sua própria maneira de ser.
Tinha hora que precisava sair um pouco pra relaxar. Fazia bauzinho,
florzinha, mas não conseguia ficar sem pensar nele. Sabia que elas
cuidavam dele, mas nada como a mãe perto do filho, né? (M1)
A primeira vez que entrei lá, minha vontade era de não ficar. Queria
ficar com o meu bebê, mas não com aquele monte de aparelho, então
comecei a chorar, foi horrível. Agora não, tá melhor, mas não quero
passar por isso nunca mais na minha vida(M4).
Foi muito ruim ter um filho na UTI, qualquer barulhinho, ficava
preocupado, com medo de perder o... Qualquer sinal de dor, no rosto
dele, me perguntava se o aparelho tava machucando, doendo (M5).
Lá assisti muita coisa, achava até que não ia suportar. Quando via
meu filho sendo furado, tinha pena, mas não passava isso pra elas,
porque quando elas viam que a gente tava nervosa, ficavam nervosa
também e acabavam furando mais o bebê(M8).
2.3 Cuidar
O cuidado materno é ação complexa, podendo ou não se manifestar e transcender
as paredes de uma UTI, a partir do encontro com o outro; e ainda provocar uma
multiplicidade de sentimentos e reações essenciais do ser-no-mundo, tais como
sensibilidade, afeto e solicitude; o cuidar solícito é o estar-com. O cuidar, o
relacionar-se com o outro, é a estrutura fundamental do Ser-aí, pois desenvolve
as possibilidades de o ser-no-mundo relacionar-se consigo e com os
outros;.cuidar significa compreender o ser, na sua relação com o outro(5). No
mundo da UTI, algumas mães dizem que não sabem ou não podem fazer nada, porém,
antes de se questionar tal comportamento, é importante visualizar os dois lados
dessa interação humana. A mãe que cuida, quando necessita ser cuidada, e o bebê
enfermo, que necessita desse cuidado para garantir a sua condição humana de
ser-no-mundo, cada um como um ser único, com seus direitos e deveres dentro de
um mundo existencial único - o mundo da UTI. Ajudava, tirava a temperatura,
alimentava, banhava, trocava fralda, pegava no colo, não ficava parada. Gostava
de fazer, de ajudar (M1).
Lá ajudo as meninas a cuidar da minha filha. Troco fralda, seguro pra
trocar os panos. As vezes tiro a temperatura, desligo a bomba do
soro, seguro a mão dela quando vão tirar o sangue, pra ela não ficar
nervosa(M2).
As vezes conversava com ela, segurava pra tirar o sangue, trocava e
uma vez coloquei no colo. Hoje ela tá com dreno na cabeça, mas eu
troco, banho, dou leite, boto pra dormir, acalento, beijo, cheiro,
abraço. E isso é muito bom, faz eu me sentir feliz(M3).
Quando ele tava acordado, abria a incubadora, conversava, pegava na
mão e tentava ajeitar ele, quando tava torto. No meu braço, falava
com ele e ele ficava olhando. Ah! Eu achava lindo (M4).
Lá troquei pouquíssima fralda, olhava, conversava, cantava pra ele,
porque queria que ele ouvisse minha voz e soubesse que quem tava ali
era a voz daquela pessoa que gostava de conversar e pegar na barriga,
quando tava grávida(M6).
2.3.1 Caminhos de esperança
Ver um filho internado em uma UTI, entre a vida e a morte, dependente de vários
aparelhos para sobreviver, representa quase sempre uma situação desesperadora.
O caminho de esperança, portanto, tem se mostrado como uma das opções
encontradas pelas mães para minimizar este sofrimento, bem como esta dor física
e emocional. Por ser esse caminho um mundo compartilhado, vincula-se ao
conceito heideggeriano de ser-com-outro. Os sentimentos de estar junto e de
segurança são os principais construtores dos caminhos de esperança e podem ser
significados como fatores de sustentação para o processo de cuidar e, em alguns
casos, para o fenômeno da cura. A esperança, como visto, é o sentimento que
mais estimula a mãe a lutar contra a doença do filho. Quando via que ele tava
reagindo, me sentia melhor(M1). Ele sempre foi muito ativo. Ficava com os
olhos...assim me olhando. E isso fazia eu me sentir melhor(M5).
Ficava ao lado dele conversando e ele ficava só olhando. Sentia uma
emoção muito grande. Era pouco, mas ao mesmo tempo se tornava muito.
Não podia fazer as outras coisas, mas tinha o olhar dele. E isso
estimula muito a gente, muito mesmo, acredito que a ele também(M8).
A ser lançada no mundo da UTI, a mãe, desperta diferentes Sentimentos e emoções
(perda dos direitos maternos, culpa, medo, bem-estar etc.)
2.3.2 Sentimento de perda dos direitos maternos
Observamos, por meio das convergências dos discursos, que a hospitalização
parece fazer com que as mães percam o contato com o filho, que passa a
pertencer mais ao corpo de médicos e enfermeiros do que propriamente à sua
família. Tem hora que não deixam as mães tocar no filho, trocar a fralda. Aí é
difícil, já que tô ali é pra ela sentir, que eu tô ali com ela né?(M2).
Você, sofre, dar amor, atenção, observa, mas não pode dar a
assistência, que daria em casa. Você quer fazer, mas não pode. Elas
dizem: não, deixa que a gente faz. Mas eu gostava de fazer, gostava
de ajudar (M1).
Lá dentro da CTI é um pouco frustrante, é uma batalha. Lá, a mãe fica
em segundo plano, não consegue participar, quem cuida do seu filho
não é você e sim as enfermeiras, os médicos, os... Eles é que vão
lutar pelo seu filho. Você fica só como se fosse arrodiando, assim
[...](M6).
É muito difícil, ser mãe na CTI, porque você não pode pegar no seu
bebê. Elas não gostavam muito, Então aquela vontade...., Ainda mais
eu que nunca tinha pegado nele antes, ficava assim, com aquela
vontade de pegar, poder cuidar, banhar, de fazer todas aquelas
coisas, né?"(M8).
2.3.3 Culpa
As emoções e os sentimentos da mãe são intensos ao ver seu filho recém-nascido
lançado no mundo da UTI. Um dos sentimentos que aflora quando algo de mau
acontece com o filho, é a sensação de culpa, pois este está relacionado com a
responsabilidade pelo ser do outro.
Me sentia triste, angustiada [...]. Me sentia culpada, com uma grande
responsabilidade. Achava que a culpa dela tá doente, passando por
todo aquele momento, sofrimento, era minha, pois tomei uma caixa de
Microvilar quando tava com 2 meses de grávida(M3).
Não me sinto na paz de vê ele cheio de aparelho, sinto tristeza de
não ter ficado com ele na minha barriga os nove meses. Se ele tivesse
na minha barriga tava mais protegido, não taria tão exposto. O
pessoal pegando, furando. Não suporto ver furando ele. Choro(M4).
Me sinto triste, culpada, por ter ficado ligado nas minhas tristezas
e problemas com o pai dela. Não imaginava que podia fazer tanto mal.
Se tivesse deixado minhas tristezas de lado, talvez isso não tivesse
acontecendo(M5).
2.3.4 Encontro com a morte
A possibilidade da morte, a falta de informações sobre os aparelhos ligados ao
bebê, ou ao fato de não saber sobre o estado real do filho, são momentos
difíceis e assustadores, chegando a produzir sentimentos e emoções confusos,
desconfortantes e inesquecíveis.
Você vê menino grave, gravíssimo, morrendo um aqui outro ali, aí você
olha pro seu filho e imagina ele naquela situação e vem aquele medo
de que possa acontecer o mesmo com ele (M1).
Vai fazer 2 meses que tô com ela aqui e tô achando que ela tá
recuperando, muito lento. Ela teve uma piora, teve uma parada, quando
fui em casa, semana passada (M2).
Quando via uma criança piorando, ficava com medo do meu filho pegar
uma infeção e piorar também. Uma vez vi 3 bebê morrer, quase morria
do coração. A gente pensa que o nosso também vai morrer (M4).
Vê bebê morrendo, saturação baixando até o ponto de parar. Eu me
sentia muito... Ficava muito triste. (silenciou e encheu os olhos de
lágrimas)" Quando colocaram o oxímetro nela sem explicar, colocaram e
pronto, pensei: Não! Minha filha tá muito grave. Pois eu tinha visto
colocar num bebê que tava morrendo (M7).
2.4 Modos de enfrentar a doença
Os sentimentos de esperança e fé afloram como forma de impulsionar e/ou
encorajar a mãe para o enfrentamento da doença do filho. Aparece como uma tábua
de salvação ou como uma oportunidade existencial nova. Depois que conversei com
você, chegou uma fé muito grande. Hoje creio que ela vai sair daqui boa (M3).
Tem que ter muita fé em Deus. Quando vi que ele tava melhorando, fui me
acalmando mais (M5).
Quando fui vendo, que a cada dia, ele tava reagindo, tirando um
aparelho, se mexendo mais. Fui me sentindo mais forte. Hoje já me
sinto mais confiante, Com a sensação de que tudo vai dar certo(M4).
Teve alguns dias que eu praticamente tinha perdido as esperanças, mas
aí quando trocou a medicação [...] ela foi melhorando e hoje, já
penso de outra maneira. Vejo tudo diferente (M7).
2.4.1 Saúde e Doença / Vida e Morte
O ambiente da UTI, bem como os difíceis e diversificados momentos de situações
opostas de saúde e doenças/vida e morte, provocam ambigüidade de sentimentos e
emoções em algumas mães. Às vezes achava que ela ia ficar boa, mas ao mesmo
tempo, tinha medo dela morrer, não se salvar. A todo momento pensava nisso, aí
chorava muito (M3).Cada melhora dela me alegrava, mas quando vinha a piora,
parava de conversar com ela, voltava a minha tristeza (M7).
2.4.2 Mudanças de comportamentos e hábitos
Em alguns casos, mudanças de comportamento e/ou de hábitos vêm à tona. Só sei
que E-6, nunca vai esquecer disso. É uma experiência que muda muito a gente.
Perdi muito o orgulho, melhorei bastante (M6).
Hoje, depois de tudo, sinto que mudei muito, amadureci e vou mudar
ainda mais. Vou procurar trabalhar pra sustentar meu filho, não vou
obrigar ninguém a nada, nem pedir pensão. Penso que o pai dele tem
obrigação de ajudar ou pelo menos de dar carinho, mas cabe a ele
querer ou não(M8).
2.4.3 Bem-estar ocasionado pelo apoio profissional
A presença e a participação materna na UTI é considerada importante e
indispensável para a recuperação do bebê enfermo, por transmitirem segurança e
apoio ao recém-nascido. Percebemos, ainda, que o carinho e o apoio do outro
(profissional) junto ao ser-aí (mãe) lançado no mundo da UTI tem conseguido
neutralizar o medo, a culpa, a ansiedade, o desconforto, dentre outros
sentimentos maternos, causados pela hospitalização do filho enfermo,
proporcionando sensações de bem-estar biopsicossocial à mãe acompanhante,
facilitando a sua adaptação a esta nova realidade existencial e a relação ser-
com na UTI, principalmente com o filho enfermo.
Umas meninas são ótimas, trata você de forma super-especial, entende
a gente e isso melhora muito, melhora psicologicamente. Mas tem umas
[...] Que vem com ignorância, como se a gente tivesse culpa dos
problemas dela. A gente não tá bem, aí já viu, né? Quando vem aquela
pessoa, doce, compreensiva, que conversa, aquilo entra no coração,
vai melhorando, você vai ficando calma e ajuda a ver o filho de outra
forma(M1).
Um dia fui ver ele com o pai, e nós ficamos... abismado. A enfermeira
notou que a gente tava assim, tão passados, né? E veio falar com a
gente. Conversou muito tempo aí acalmou mais um pouco (M6).
No dia que cheguei que ele tava no bercinho, fiquei feliz, lavei as
mãos, deitei por cima dele e comecei a cheirá-lo. Aí a enfermeiras
disse assim: Ih! Coisa boa é namorar de manhã bem cedo, em? São essas
coisas que eu não esqueço (M6).
Na CTI, conversava com as outra mães, com as auxiliares. Conversa com
todo mundo, mas tem aquela, que a gente pega uma confiança, né? Eu
gostei muito da [...] ela me fez um favor e tanto. Ela conversava
comigo, ela sempre me dizia que a "E" ia ficar boa. E isso era muito
bom, me animava mais (M8).
A mãe acompanhante no mundo estressante e conflituoso das UTI's revelou-se como
um ser-aí que necessita de apoio e solidariedade (ser-com), não somente dos
parentes, mas, também e principalmente, da equipe e demais mães, para que possa
encontrar energias para conviver com a doença e tratamento de seu filho. Pois
um ser é dado em conjunto, o mundo é sempre um mundo compartilhado. O ser-em é
sempre ser-com os outros(6). A mãe acompanhante, como todo ser, necessita de
apoio, compreensão e oportunidade de comunicação para refazer seu mundo-vida,
reconstruir sua comunidade existencial, dentro das imposições dessa nova
realidade, e evidenciar-se como um ser-com-outro dentro do mundo da UTI. Os
aspectos relacionais (ser-com profissionais, componentes familiares e demais
mães acompanhantes), conforme visto, foram referidos pelos sujeitos envolvidos
como elemento fundamental para o enfrentamento desta nova realidade, por
estabelecer um clima de solidariedade e confiança.
2.5 Ser-com profissionais (relação mãe-profissional no mundo da UTI)
As mães vêem na compreensão, apoio e ajuda da equipe o caminho para enfrentar o
longo e difícil tratamento de seus filhos. O estar-próximo deste outro,
compartilhando seus momentos de dor, parece produzir nessas mães um sistema de
apoio semelhante ao estabelecido no mundo da família.
Uma das meninas me deu o maior apoio, conversou comigo, disse que eu
não chorasse, entregasse na mão de Deus, que ele resolvia. Depois da
conversa fiquei mais aliviada e me alegrei muito(M3).
Quando cheguei lá achei ruim, depois fui conversando com as
enfermeiras, médicos [...] aí fui melhorando, mas nunca que a gente
se acostuma totalmente, né? (M4).
Foi muito importante o apoio dessas pessoas lá dentro. Isso é
fundamental nesse momento. Você ver seu filho quase morto como eu vi,
aí a enfermeira chega, aplicar o remédio sem dar nem uma atenção a
você que tá,ali, muito frágil. Num é fácil não. Quando elas são
gentis, conversam, brincam com o seu filho, Isso daí deixa a gente se
sentir melhor(M6).
No entanto, é com o médico que elas estabelecem maior relação de confiança,
pois acreditam que seus procedimentos são os mais necessários para a
recuperação de seu filho enfermo.
O médico devia ao examinar, dizer se ele tá sentindo ou não alguma
coisa. Tinham algumas pessoas lá que me mostrava o que tava
acontecendo. Mas se fosse o médico, a gente se sentia mais
tranqüilizada (M5).
Era muito bom, me animava quando o médico examinava, olhava o
prontuário e me dizia num português que eu entendia, que ele tem um
problema respiratório grave, mas que com o tempo vai acabando e ele
vai se recuperando (M6).
2.5.1 Ser-com demais mães acompanhantes
As mães, por encontrarem-se frágeis, sensíveis à dor neste momento, estabelecem
uma relação solidária entre si, compartilhando dúvidas, sentimentos,
fragilidade, valores materiais e dificuldades impostas pela enfermidade do
filho, e acabam por criar vínculos que ultrapassam os portais do mundo
hospitalar.
Umas mães lá, me dava conselho e isso ajudava muito, muito mesmo(M3)
Conversava com as colegas sobre a família, o bebê, a situação do
filho, os médicos, as enfermeiros. A gente dizia, quando elas eram
chatas, tomara que ela já vá embora, que já chegue a hora dela ir e
chegar a fulana(M4).
Do lado que fiquei tinha 3 mães. A gente ia conversando, conhecendo
um pouco dos problemas de cada uma e a cada dia, a gente ia se
conhecendo melhor. Rezava, pedia a Deus pra sair dali o mais rápido
possível. Até hoje, ainda mantenho contato com alguma dessas mães
(M6).
2.6 Ser-com componentes familiares no mundo da UTI
A doença desarticula e faz aflorar diferentes sentimentos na relação familiar.
A estrutura e/ou dinâmica familiar modifica-se radicalmente perante o mundo
hospitalar e a nova rede de relações lá existente. A família passa a viver
outra dimensão existencial, provocando conflitos, desencontros e rupturas, por
vezes irreversíveis. A situação agrava-se quando a mãe precisa deslocar-se de
sua cidade para acompanhar o tratamento do filho, pois podem surgir problemas
emocionais, sentimentos de medo, solidão e/ou de abandono e ocorrer uma
transformação no modo de ser desta mãe. Lá não tinha ninguém da minha família.
Fiquei sozinha com ele, 3 meses. Sentia falta da minha mãe, de uma amiga pra
conversar. Aí eu conversava com o "M"(M1). Tem hora que dar um pouco de
estresse. Dar saudade de casa, pois não é fácil ficar com o filho aqui muito
tempo, longe da família(M2). Quando chegava em casa conversava com o meu marido
e ele sempre dizia, tu não perguntou isso, pergunta isso. E isso me ajudou
muito(M5). Aqui tô sozinha, não recebi nem um telefonema e nem uma visita até
agora. Eu sinto muita falta disso(M7).
Quando ligo pra casa, meu pai e meu marido, pergunta como é que tá o
neném. Meu pai num pergunta nem por mim. Falo como ele tá e eles
ficam morto de feliz, louco pra vê ele, mas como a gente mora no
interior, fica mais difícil de vir pra cá. E também tem que trabalhar
pra mandar dinheiro pra mim, né? Então fica mais difícil(M4).
Quando você chega em casa, que as pessoas perguntam como é que ele
tá. Você diz confiante e feliz que ele tá bem melhor. Aí no outro
dia, você já voltava bem melhor e mais confiante(M6).
2.6.1 Ser-com o filho enfermo no mundo da UTI
A relação mãe-filho foi considerada valiosa pelos sujeitos envolvidos, por
gratificar o bebê enfermo e a própria mãe. A trama dessa relação desvelou-se
assim: É muito importante que a mãe fique com o filho. Muitas crianças choram,
acho que é sentindo falta da mãe. Se ela ficar ali dando carinho, talvez o
filho se sinta melhor (M2). Quando cheguei na CTI não conversava com ela,
segurava só na mãozinha. Depois que comecei, ela melhorou e foi pro A(M3).
Acho que agora sou mais mãe. No começo, sentia medo. Sinto medo
ainda, de pegar no bebê, mas adoro quando consigo fazer isso. Eu acho
ótimo. Se eu gosto, ele tem que gostar também né? (M4).
Acho que, a minha presença, foi muito bom pra ele. As meninas diziam:
basta você sair, que ele começa a chorar, parece que sente. Com
certeza ele sente. Pois, quando chegava que passava a mão nele, ele
abria o olho, e depois voltava a dormir de novo. Logo também, ficava
sempre pegando nele, beijando, conversando com ele, então ele ia mais
e mais conhecendo a mãe(M8).
3 Estrutura do fenômeno situado
As principais categorias encontradas neste estudo foram: Ser-mãe na UTI, Real
vivido no mundo da UTI, Sentimentos e emoções e Aspectos relacionais. Estas
foram trabalhadas, com o propósito de obter as convergências das unidades de
significado importantes para mostrar a estrutura do fenômeno Vivências
maternais em UTI. Apreendemos, a partir dos resultados, que Ser-mãe na UTI é
participação, nervosismo, medo, ocupação, estresse. É estar junto para se fazer
perceber, aprender a cuidar e para dar força e apoio ao filho, quando o desejo
maior é estar longe. É conversar, dar carinho e amor, mesmo estando coberta de
medos. É observar, ter paciência e muita fé em Deus, quando ainda não lhe é
permitido fazer nada. É ter que batalhar, lutar pelo filho, quando também tem
necessidades de cuidado. É assumir a condição de supermãe, quando está carente
de energias, em razão da complexa e difícil situação existencial na qual se
encontra. É preocupação, pois, embora ocupada com o outro, alimentando,
vestindo, tratando do corpo doente ou estando junto, estar indo ao encontro da
pré-ocupação, pois preocupar-se, é estar na dimensão última do ser, como uma
constituição ontológica da pre-sença que se encontra imbricada, não somente no
mundo da ocupação com o outro, como também no mundo dela própria(6).
Com relação ao real vivido no mundo da UTI, podemos observar que geralmente o
cuidar se encontra na essência materna. No entanto, o sentimento de esperança
acaba, por vezes, interferindo no modo de ser e agir desse Ser-aí,
influenciando-o ou não a lutar e/ou envolver-se com o cuidar do filho enfermo.
Percebemos, ainda, que este cuidar materno pode mostrar facetas contraditórias
e significar, como oportunidade de aprendizado ou forma de promover o próprio
desenvolvimento pessoal e/ou bem-estar do outro. Alguns discursos referem-se ao
cuidar materno como algo constante e predominante na UTI; no entanto, há
sujeitos que referem temor, diante da simples possibilidade de cuidar do filho
recém-nascido, que se encontra ligado por fios a diferentes aparelhos; e
sujeitos que falam sobre as dificuldades e entraves encontrados para realizar o
cuidar materno na unidade hospitalar e ainda sobre seus sentimentos ao verem
seus filhos enfermos sendo cuidados por especialistas, no lugar da própria mãe.
O cuidar harmoniza-se como simples ocupação ou transcende o existencial, indo
ao encontro da pré-ocupação(6). Nesta pesquisa, o cuidar materno mostra
indícios de pré-ocupação com o outro, pois transcende o simples ato de cuidar.
Porém, em alguns casos, esse cuidar é significado como simples possibilidade de
ocupação, quando se restringe ao ôntico, que enxerga o cuidar como um dever
para com o outro, sem nenhuma relação ou integração interpessoal. E essa mãe
acaba por cair no falatório, na tagarelice, na ambigüidade. O falatório, não
tem a intenção de enganar, é apenas um modo inautêntico de o ser manifestar-se,
por estar preso ao ôntico, modo de ser da presença protegido pelas evidências e
pela autocerteza mundana, sem enxergar as possibilidades do ponto de vista
ontológico de seu ser(6).
A mãe, ao ser lançada repentinamente em um mundo de perdas, sofrimentos e
inseguranças, enfrenta riscos que a fazem explodir em uma diversidade de
sentimentos e emoções que variam entre culpa, pena, medo, perplexidade,
tristeza, solidão, esperança, impotência, dentre outros. O ser-em é sempre ser-
com os outros e o ser-em-si intramundano destes outros é co-pre-sença(6). E é
nesse modo de encontro com a doença do filho, com o ambiente da UTI (onde há
convivência com profissionais e outras mães, durante momentos traumáticos ou de
cuidados de higiene e de alimentação do bebê), que os sentimentos maternos, bem
como seus modos determinados, se revelam provocando um retorno ao ontológico.
A CTI é muito estressante. Se pudesse tinha pego o "M" e levado pra
casa. Você vê seu filho sofrendo aí sofre também. Pois você não pode
dar aquela assistência que daria em casa(M1).
Lá dentro é muito ruim, é péssimo, porque a gente vê a filha da gente
ser furada todo dia pra ser medicada. Os aparelho me deixavam um
pouco com medo de pegar na minha filha. De pegar a doença dela não,
jamais(M3).
Lá dentro, você fica sobre tensão, vive impressionada. Você sente um
aperto no coração. Uma coisa muito ruim. Nunca pensei que tivesse
tantos bebê assim, na incubadora e com muitos aparelho. Me
impressionei. Não sabia que existia esse mundo aparte fora do que a
gente vive (M5).
Olha, não sei não, Deus que me livre. Você adoece, só vê, todo santo
dia, furar a cabeça braços e pés do seu filho. Na CTI perdi muitas
coisas, não amamentei, não peguei ele no colo, não senti aquele
cheirinho de neném, pois ele tinha cheiro de CTI(M6).
Foi muito difícil, pois imaginava que ele ia pra casa quando nascesse
e de repente quando chegou o dia, ele vai é pra UTI e fica naqueles
aparelhos. Me sentia muito mal , muito nervosa, as vezes achava que
não ia agüentar vê-lo daquele jeito(M8).
Ao examinar esses discursos, percebemos que a mãe acompanhante necessita de
apoio e ajuda para atingir a sua constituição ontológica existencial,
importante para uma boa condição biopsicossocial de ser-aí no mundo da UTI,
pois é a partir do ser-com e para os outros que subsiste a relação ontológica
entre as pre-senças. Quando a pre-sença não se volta para os outros, por
acreditar não precisar deles, ou ainda, por achar o outro dispensável, esta se
mantém nos modos deficiente ou indiferente de ser-com, pois o ser-com, como
constitutivo existencial do ser-no-mundo, necessita da compreensão dos outros,
para não cair na ocupação. O ser-com-os-outros pertence, portanto, ao ser da
pre-sença, que, sendo, põe em jogo o seu próprio ser.
4 Reflexão sobre a estrutura do fenômeno situado
O trabalho empírico que ofereceu argumentos para a sustentação deste ensaio
revelou que a mãe na UTI se apresentou como um ser com o outro, angustiado,
temeroso, porém autêntico, que se inquietou, lutou pelo filho enfermo e
participou, quando possível, de seus cuidados, sofrimentos e sucessos, enfim,
de sua luta pela vida, mas também como um ser-com, que saiu de seu existencial,
ou seja, da simples ocupação, e foi ao encontroa da pré-ocupação, manifestando
sentimentos de angústia e incertezas; e ainda, trouxe contribuições valiosas
para a elucidação de um novo paradigma de convivialidade no mundo das UTI's e
um possível caminho para resgatar a essência humana e articular novas
diretrizes para o clarificação de uma prática assistencial cada vez mais
humanizada nas instituições de saúde. Essas mudanças, no entanto, não acontecem
facilmente, sem obstáculos, pois implicam luta, solicitando a ocorrência de
libertação da assistência tradicional, racional, imediatista, setorizada,
controladora, no contexto da qual o homem é cuidado segundo os critérios de
corpo sadio e corpo doente, sem valorização da trajetória existencial da mãe
acompanhante, marcada pela experiência da angústia comum a todo ser-no-mundo.