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BrBRCVHe0034-71672003000400013

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variedadeBr
ano2003
fonteScielo

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Construindo um conhecimento sensível em saúde mental DIRETRIZES CURRICULARES - IMPLEMENTAÇÃO E AVALIAÇÃO - RELATOS DE EXPERIÊNCIA DAS DCN

Construindo um conhecimento sensível em saúde mental

Building sensitive knowledge in mental health

La construcción de un conocimiento sensible en salud mental

Ruth Mylius RochaI; Célia Caldeira F. KestenbergII; Elias Barbosa de OliveiraIII; Alexandre Vicente da SilvaIV; Márcia Batista Gil NunesV IEnfermeira, Doutora em Saúde Coletiva (UERJ), Professora Adjunta da Faculdade de Enfermagem UERJ. Rio de Janeiro IIEnfermeira, Psicóloga, Mestre em Enfermagem (UNIRIO), Professora-Assistente da Faculdade de Enfermagem UERJ IIIEnfermeiro, Mestre em Enfermagem (UNIRIO). Professor Assistente da Faculdade de Enfermagem UERJ IVEnfermeiro, Psicólogo, Mestrando em Enfermagem (UNIRIO), Professor Auxiliar da Faculdade de Enfermagem UERJ VEnfermeira, Mestre em Enfermagem (UERJ), Professora Assistente da Faculdade de Enfermagem UERJ, E-mail: facenf@uerj.br

1 Considerações iniciais O currículo integrado da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, construído coletivamente e implantado em 1996, fundamenta-se na Teoria Crítica da Educação e utiliza uma pedagogia problematizadora.

Composto de áreas e subáreas que se articulam ao longo dos nove períodos do curso, propõe um processo ensino / aprendizagem que integre os vários saberes sobre o homem e sua saúde e que valorize o aluno como sujeito, portador de saberes que devem ser respeitados e superados a partir do desenvolvimento da curiosidade epistemilógica(1).

Este trabalho relata nossa trajetória na subárea Promovendo e Recuperando a Saúde Mental (a partir de agora designada, neste texto, como Saúde Mental), que no currículo integrado foi inicialmente oferecida em quatro períodos passando depois a ser trabalhada em oito do total de nove períodos da Graduação, não conectando internamente seus vários temas, mas, em cada período, integrando-se com os temas trabalhados nas demais subáreas.

Vale ressaltar que, anteriormente à implementação do currículo integrado, vínhamos caminhando nesse sentido: até a década de 80, oferecíamos as disciplinas Psicologia aplicada à Enfermagem, em um período, ministrada por psicólogo, e Enfermagem Psiquiátrica, em dois períodos (um de ensino teórico- prático e outro de estágio supervisionado). Na década de 80, além das duas disciplinas, iniciamos o ensino da Saúde Mental, voltado para o indivíduo sadio com suas dificuldades e crises (também ensino teórico-prático em um período e estágio em outro); o estágio dessa disciplina integrava os conteúdos da saúde mental às atividades desenvolvidas no hospital geral. Em 1993, optamos por extinguir a disciplina Psicologia aplicada à Enfermagem, cujos conteúdos foram assimilados pela Saúde Mental, e começamos a usar uma nova metodologia, utilizando dinâmicas de grupo e valorizando os saberes da experiência de vida dos estudantes.

2 Construindo o conhecimento a partir das próprias referências Na implementação do novo currículo, em 1996, duas de nós desenvolviam, cerca de 6 anos, o projeto Vivendo Vivências (projeto de extensão realizado com alunos do Internato), cujo objetivo é sensibilizar o aluno para a compreensão do outro a partir dos seus referenciais internos, visando a construção de um modo cuidadoso de ser enfermeiro. Nesse projeto, desenvolvíamos ainda a integração com a área de enfermagem fundamental, realizando dinâmicas sobre banho, alimentação e comunicação, entre outras. E desenvolvíamos também, três anos, uma nova metodologia no ensino da Saúde Mental, com a utilização de dinâmicas, vivências de sensibilização, exercícios corporais e grafismo, cujo objetivo principal era a ampliação do auto-conhecimento, somente após sendo introduzidas a bibliografia e as explicações teóricas. Essa experiência nos alicerçou por ocasião da implementação do currículo integrado.

Quando os professores de Educação em Enfermagem e Saúde Pública, do 10 período, solicitaram a colaboração do projeto Vivendo Vivências a fim de desenvolver temas que favorecessem a compreensão dos alunos em relação aos modos de viver dos moradores de duas comunidades carentes nas quais desenvolviam atividades, selecionamos Percepção e Comunicação, visando trabalhar os aspectos subjetivos a partir das vivências dos alunos.

Percebemos então a necessidade de desenvolver um trabalho mais amplo de instrumentalização dos estudantes para atuação junto à clientela nos diferentes campos e sugerimos que a Saúde Mental absorvesse novos temas e percorresse oito períodos do curso, entendendo que era importante utilizar as estratégias adotadas pelo projeto Vivendo Vivências, que visam aproximar o estudante do contato consigo mesmo, valorizando a percepção de seus referenciais internos, sentimentos, sensações, pensamentos e emoções como etapa inicial para a construção de um cuidador.

Entendíamos, ainda, que todos os conhecimentos teórico-práticos sobre a assistência de enfermagem e as patologias trabalhados ao longo da graduação fossem muito importantes, eram insuficientes para formar um cuidador, um enfermeiro que pudesse proporcionar um cuidado de qualidade a uma pessoa singular, percebendo-a como pessoa circunstancialmente adoecida, que fala, sente, articula pensamento, sentimento e ação, tem uma história de vida marcada por aspectos objetivos e subjetivos, na qual o adoecimento e o cuidado têm significado.

O que marca a diferença nessa trajetória é que antes ensinávamos a lidar com o outro, com a doença do outro. A partir da mudança, passamos a ter como referência o Eu, entendendo que é uma primeira etapa, fundamental para melhor compreender esse outro. Perceber os próprios sentimentos, sensações, emoções, pensamentos implica dar-se conta de que as mazelas do outro também estão em si.

E a partir do contato consigo mesmo, das descobertas de si, de sua subjetividade, o aluno vai se tornando apto para a escuta e o acolhimento do outro. Dessa maneira, ele vai construindo o seu conhecimento e não absorvendo aquilo que está nos livros e foi construído por outras pessoas.

Trata-se de ampliar a competência emocional dos alunos, sua capacidade de lidar com as próprias emoções e com as do outro. Vale ressaltar que alguns deles têm muita habilidade para as relações interpessoais (e em geral são os que mais aderem às atividades); outros parecem tê-las menos desenvolvidas; de toda maneira, elas podem ser ampliadas ou aprendidas. Alguns alunos resistem a essa possibilidade e não os forçamos; outros vão se aproximando, à sua maneira, e, por vezes, somos surpreendidos com os resultados.

Era incômoda para nós, a idéia do senso comum de que o enfermeiro, no contato constante com as dores humanas, se torna necessariamente frio a medida que o tempo passa. Entendíamos que isso ocorre quando a pessoa não se permite fazer contato com suas sensações, seus sentimentos, suas emoções, contato que vai auxiliando a discriminar o que é seu e o que é do outro. Assim, propusemo-nos a auxiliar os alunos a desenvolver contato com seu pedaço ferido (o que constitui um paradoxo em nossa profissão: as dores das próprias feridas nos sensibilizam para a vulnerabilidade do outro) a fim de tornarem-se cuidadores caracterizados como instrumentos refinados na arte de cuidar(2).

Vale ressaltar ainda o investimento que cada um de nós vem fazendo na própria construção, através de cursos, formações e terapias, em diferentes correntes (Reichiana, Gestalt, Psicanálise, Bioenergética), a fim de aprofundar o conhecimento e utilizá-lo para assegurar o suporte no trabalho com o aluno.

3 Como trabalhamos A metodologia que adotamos, nos quatro primeiros períodos, foram a Gestalterapia, a abordagem Fenomenológica - existencial e a Pedagogia da Problematização. O princípio comum às três é a idéia de que a pessoa pode transformar-se e transformar sua relação com o mundo e, com a vida, a partir do contato consigo mesmo, do conhecimento de si, da tomada de consciência que a torna mais responsável e mais livre.

Assim, o tema que abordamos inicialmente, no primeiro período é a percepção.

Levamos o estudante a experimentar o mundo que o cerca, a dar-se conta de que ele capta o mundo através dos órgãos dos sentidos e o decodifica de acordo com sua subjetividade. O estudante vai fazendo contato com o seu corpo, seu jeito de andar, de olhar, de ouvir, de tocar, de degustar; vamos a um parque e ele escuta o silêncio e a natureza, percebe o macrocosmo, o microcosmo, o barulho das águas, experimenta andar de olhos fechados, depois abertos. A partir daí vai ficando mais nítida a diferença que existe entre ele e o outro, gerando diferentes percepções e emoções.

No segundo período, trabalhamos o desenvolvimento humano a partir de fotos que os alunos são solicitados a trazer e de textos que eles redigem sobre sua infância, sua adolescência, para somente após desenvolverem leituras sobre esses temas e discuti-los. Trabalhamos a representação de família dos alunos, com seus aspectos culturais; eles vão fazendo contato com suas pessoas significativas e percebem como o cuidado foi / é importante em suas vidas. A partir da compreensão de que esse suporte externo é fundamental para a segurança interna, estabelecemos articulação com a maneira como nós, enfermeiros, nos comunicamos com os clientes.

No terceiro período, momento do início das práticas no hospital, a Saúde Mental trabalha crises situacionais e relação de ajuda. Partimos das vivências de crises situacionais dos alunos, como ajudados e/ou ajudadores para, a seguir, incluir a fundamentação teórica e o desenvolvimento da relação de ajuda com os clientes (com os quais estão convivendo nas aulas práticas da subárea Saúde, Trabalho e Meio Ambiente), analisando seus próprios aspectos em jogo, nessas relações.

No 40 período, trabalhamos estresse e reações psicossomáticas, inicialmente levantando as experiências dos alunos relacionadas ao surgimento de reações psicossomáticas. Nosso objetivo é levar o aluno a refletir acerca da pessoa como unidade corpo/mente, compreendendo suas reações à luz de sua história de vida, contextualizada, a fim de construir estratégias mais sensíveis de intervenção de enfermagem.

No 60 período, quando são desenvolvidos conteúdos sobre o cuidado ao paciente crítico, na subárea Saúde do Adolescente, do Adulto e do Idoso e o Mundo do Trabalho, a Saúde Mental analisa as questões que envolvem vida, sofrimento e morte, a dimensão subjetiva e as atitudes e sentimentos diante da morte, levando em conta aspectos sociais e culturais. A Saúde Mental integra seus conteúdos, também, neste período, à subárea Saúde da Mulher e da Criança, trabalhando temas como: a gravidez e sua repercussão na vida do casal e da família; casal grávido. Acolhimento do bebê nas primeiras horas de vida, recém- nato com anomalias ou risco de vida, criança hospitalizada, entre outros. São analisadas situações (trazidas pelo professor e pelos alunos) que coloquem em cena o tema em pauta, a fim de que o aluno compreenda as possibilidades e limites das ações de enfermagem em saúde mental, junto ao grupo familiar ou a um de seus elementos em dificuldade.

Os conteúdos oferecidos no 70 período são os da assistência de enfermagem à pessoa que apresenta transtorno mental. Valorizamos trabalhar as representações de loucura dos alunos, os sentimentos despertados à idéia de entrar em contato com pessoas que apresentam transtorno mental, com o hospital psiquiátrico. E vamos fazendo sucessivas aproximações com nossos clientes, entremeadas com aulas teóricas, utilização de filmes e discussões sobre os temas.

No 80 período, os conteúdos de Saúde Mental são integrados ao estágio realizado no ambulatório (tema desenvolvido em outro trabalho, neste número da revista) e na unidade de internação de doenças infecto-contagiosas, tendo como proposta desenvolver no aluno uma escuta diferenciada e uma reflexão sobre a mobilização dos clientes decorrente da doença e da internação, levando em conta também os fatores sociais, políticos e culturais envolvidos. É um momento importante de trabalho com expectativas, percepções e sentimentos dos alunos face à dor e ao sofrimento dos clientes. É também uma oportunidade de reflexão do aluno sobre perdas, morte, sexualidade, família, fantasias e temores relacionados ao risco de exposição ao vírus da AIDS durante o cuidado; muitas vezes ele questiona seus valores e seus posicionamentos na vida, ao longo do trabalho de elaboração de suas ansiedades.

Nesse período, como nos demais, trabalhando com o pressuposto do homem como um ser holístico, contrapomo-nos ao modelo biomédico, ainda hegemônico na área da saúde.

No 90 período, momento do estágio na instituição psiquiátrica, apesar de toda a fundamentação anterior, as crenças e representações sobre o louco e a loucura reaparecem de forma perturbadora, sobretudo quando o aluno percebe como é tênue o limite entre a sanidade e a loucura. Na busca de respostas, com o acompanhamento próximo dos professores, vai superando (alguns mais, outros menos) a angústia e o medo. Entretanto, com a reforma curricular e a introdução das novas subáreas, de novos campos de estágio, houve grande diminuição da carga horária destinada a esse estágio, o que tem sido uma dificuldade, na medida em que o aluno necessita de tempo (que é subjetivo) para estabelecer contato com suas vivências e poder construir uma relação, uma forma de cuidado com o cliente.

4 Considerações finais Entendemos que cabe a nós, educadores, acompanhar a construção do enfermeiro que está sendo gerado em cada estudante, ajudando-o a se aproximar do seu mundo subjetivo, o que ampliará sua capacidade de cuidador. No campo da Saúde Mental, particularmente, as interrogações em relação ao outro (cliente) fazem surgir questões em relação a si mesmo, portanto o ensino teórico não pode ocorrer separado da reflexão, do contato consigo mesmo, do desenvolvimento da sensibilidade.

Quando a enfermagem é [...] indiferente à possibilidade de o sujeito viver o seu sofrimento, usando a tecnologia disponível para calar a expressão da sua produção psíquica [...] sem o desdobramento crítico [...] sem o desenvolvimento de uma tecnologia da sensibilidade, ela pode não ter força suficiente para evitar a repetição das práticas historicamente herdadas da vigilância endurecida e do controle disciplinar(3:194).

Visamos consolidar o trabalho do enfermeiro como prática social, reflexiva, numa visão que extrapole o modelo biomédico, o trabalho apenas técnico e o aspecto curativo. Estimulamos os alunos a entender as reações do cliente como resultado singular de uma gama de fatores, para as quais o enfermeiro não tem, obrigatoriamente, uma resposta objetiva, uma solução mágica, o que não invalida a importância do trabalho com os aspectos subjetivos, oferecendo uma acolhida qualificada, uma escuta diferenciada, um suporte que auxilie o cliente a analisar a experiência que está vivendo e a encontrar recursos dentro de si para fazer face á ela.

Não estabelecemos mínimos exigidos em termos do crescimento da competência emocional do aluno, nem contamos com resultados uniformes. Sabemos que cada aluno vai até onde pode, alguns apresentando resultados mais visíveis do que outros.

Ainda que não tenhamos um número de turmas formadas que nos permita apresentar resultados mais consistentes, temos as avaliações feitas pelos alunos que, em sua maioria, consideram que este trabalho propiciou uma aproximação consigo mesmo e com o cliente, sobretudo no que se refere ao desenvolvimento da escuta, do respeito e da empatia com o sofrimento do outro. Isso significa que estamos conseguindo aliar o desenvolvimento da competência emocional ao da competência técnica dos estudantes, tornando-os melhores cuidadores.


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