Formação por competência do enfermeiro: alternância teoria-prática,
profissionalização e pensamento complexo
REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Formação por competência do enfermeiro: alternância teoria-prática,
profissionalização e pensamento complexo
Competency-based education for nurses: alternation between theory and practice,
professionalization, and complex thought
Formación por competencia del enfermero: alternancia teoría-práctica,
profesionalización y pensamiento
Estelina Souto do NascimentoI; Geralda Fortina dos SantosII; Valda da Penha
CaldeiraIII; Virgínia Mascarenhas Nascimento TeixeiraIV
IEnfermeira, Professora da Escola de Enfermagem da PUC-MG, Membro do Núcleo de
Pesquisas e Estudos sobre Quotidiano em Saúde - NUPEQS- MG, Doutora em educação
pela Faculdade de Educação da USP
IIEnfermeira. Professora da Escola de Enfermagem da UFMG, Membro do Núcleo de
Pesquisas e Estudos sobre Quotidiano em Saúde - NUPEQS- MG, Doutoranda em
educação pela Faculdade de Educação da UFMG
IIIEnfermeira, Coordenadora pedagógica do CEPTENF da Escola de Enfermagem da
UFMG/PROFAE, Membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre Quotidiano em Saúde
- NUPEQS- MG Mestre em enfermagem pela Escola de enfermagem da UNIRIO, E-mail:
valda@enf.ufmg.br
IVEnfermeira, Professora da Escola de Enfermagem da PUC-MG e do Curso de
Enfermagem da FACISA de Formiga/MG, Membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos
sobre Quotidiano em Saúde - NUPEQS - MG, Mestre em enfermagem pela Escola de
Enfermagem da UFMG
1 Introdução
As profundas mudanças pelas quais vem passando o mundo desde fins do século XX
e início do terceiro milênio mostram-nos que as sociedades se transformam,
fazem-se e se refazem. O avanço científico e tecnológico modifica o mundo do
trabalho, da comunicação, da vida cotidiana, enfim, modifica todas as
instâncias da vida humana. Os profissionais da educação, entendendo que não é
possível permanecer alheios a essas transformações, têm buscado se adequar às
novas exigências sociais.
No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 9.394 de 20 de
dezembro de 1996, estabelece, para todos os níveis de formação, que os
educandos desenvolvam competências para continuar aprendendo, de forma autônoma
e crítica, em níveis cada vez mais complexos de estudos(1).
Atualmente, entende-se por competência
a aptidão para enfrentar uma família de situações análogas, mobilizando de uma
forma correta, rápida, pertinente e criativa, múltiplos recursos cognitivos:
saberes, capacidades, microcompetências, informações, valores, atitudes,
esquemas de percepção, de avaliação e de raciocínio(2:19).
Entende-se, também, competências como esquemas mentais, ou seja, as ações e as
operações mentais - sócioafetivas, psicomotoras ou cognitivas - que precisam
ser desenvolvidas pelos estudantes, sob a ótica para a qual o saber-fazer não é
resultado de uma instrução mecanicista, mas de uma construção mental que
mobiliza e incorpora novos saberes e experiências, viabilizando uma
requalificação e uma reprofissionalização em função das mudanças econômicas e
tecnológicas(3).
Formação por competências e inovações educacionais são temas que vêm instigando
todos os educadores brasileiros, quaisquer que sejam os níveis de ensino em sua
atuação profissional. No Brasil, percebemos um movimento em direção à busca de
práticas pedagógicas inovadoras na formação por competências, em decorrência
das propostas de diretrizes curriculares para os diversos cursos.
Outro tema instigante é a questão da teoria e da prática. Para que ocorra uma
verdadeira articulação entre a teoria e a prática, de que "é preciso
combater essa dicotomia e afirmar que a formação é uma só, teórica e prática ao
mesmo tempo, assim como reflexiva, crítica e criadora de identidade"(2:
23). Nesse sentido, a formação ocorre em diferentes espaços e tempos escolares,
"nas aulas e nos seminários, em campo e nos dispositivos de formação que
levam os diversos tipos de formadores a trabalhar juntos: acompanhamentos de
atuações profissionais, moderação de grupo de análise de práticas ou reflexão
comum sobre problemas profissionais"(2:23).
De fato, uma das mais complexas questões pedagógicas é a relação teoria e
prática. As práticas em laboratórios e os estágios nos finais dos cursos não
superam essa dicotomia. As práticas laboratoriais pensam uma integração por
demonstração ou aplicação de conhecimentos teóricos já adquiridos,
artificializando o processo de trabalho e a própria construção do conhecimento.
Os estágios de final de curso, além de partirem dos mesmos princípios, não
oferecem oportunidade pedagógica de integração, uma vez que depois deles não há
retorno - é o mundo do trabalho. Não há mais tempo para discussão, reflexão e
retomada do processo de aprendizagem na escola(3).
A teoria e a prática, desde os primórdios da enfermagem no Brasil, têm merecido
reflexão na formação do enfermeiro. Desde a implantação do Sistema Nightingale
de ensino de enfermagem no País, na década de 1920, os princípios preconizados
para a educação de enfermeiras, tais como a direção da escola por uma
profissional da enfermagem, a rigorosa seleção de candidatas e o ensino teórico
e prático metódico, foram considerados(4). Com um curso de três anos de
duração, as alunas recebiam instruções teóricas e práticas em oito horas de
serviço diário, o que poderia parecer um período longo, mas em menos tempo não
seria possível a aquisição de prática, destreza manual, poder de observação,
iniciativa e presteza de julgamento(5). Desse modo, para a formação da
enfermeira, tornava-se imprescindível a conjugação de um estudo teórico
fundamentado em bases científicas, pois "sem instrucção sólida, não há
poder de iniciativa, espírito de observação ou noção de responsabilidade"
(6:28) e uma prática diversificada. "Em todos os ramos da experiencia os
assumptos theoricos coordenados aos ramos de experiencia pratica deveriam ser
dados simultaneamente, tanto quanto possivel"(7:6).
No I Congresso Panamericano de Enfermagem(8), ficou registrada a preocupação
dos enfermeiros com a utilização de alunas como mão-de-obra nos hospitais. A
relação da escola com o hospital deveria ser de cooperação, e as atividades
práticas deveriam ser planejadas, correlacionadas com a teoria. No I Seminário
de Ensino de Enfermagem, promovido pela Associação Brasileira de Enfermagem
(ABEn), realizado no Rio de Janeiro, em 1956, evidenciou-se a preocupação da
busca do equilíbrio entre a alta carga horária prática e a deficiência do
ensino teórico. Entre as recomendações desse seminário destacam-se a
necessidade de aumento do curso para quatro anos, o intercâmbio entre as
escolas para melhorar a qualidade dos estágios, a valorização e a utilização do
ensino clínico, o aumento do número dos instrutores, a preparação do pessoal do
serviço e das escolas quanto à orientação, supervisão e avaliação das alunas
nos estágios(9).
Até o final da década de 1950, o ensino teórico e o prático eram ministrados
perfazendo oito horas diárias, com cobertura 24 horas em alguns campos de
prática, durante todo o ano(10). Além disso, percebe-se que o ensino de
enfermagem caracterizou-se, desde sua origem até a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira (LDB), de 1961, pelo domínio da técnica, da destreza
manual. Daí a manutenção do aluno por longo tempo nos campos de estágio,
consolidando-se a idéia da necessidade do enfermeiro de dominar esses
"saberes" e que o tempo era o elemento mais importante para essa
aprendizagem(11).Mas, progressivamente, essa situação foi sendo modificada com
a introdução cada vez mais célere de formação teórica.
A LDB, de dezembro de 1961, constituiu um marco no ensino da enfermagem. Ao
elevar o curso a nível superior, mudou completamente o ensino e o processo de
encaminhamento e de solução de seus problemas. O ensino de terceiro grau passou
a ser de competência exclusiva do Conselho Federal de Educação (CFE), criado
para atender a esse propósito.
Até então, a enfermagem era considerada uma profissão com características
peculiares, justificando uma legislação própria, a cargo das Comissões de
Educação e de Legislação da ABEn. O Currículo Mínimo de Enfermagem, aprovado
pelo CFE em 1962, por intermédio do Parecer 271, fixou a duração do curso em
três anos, com, pelo menos, 180 dias letivos, excluindo os períodos de férias e
exames. Para se ajustarem ao novo currículo, as escolas tiveram de reduzir
consideravelmente a carga horária prática que, em 82% das escolas, representava
de 46 a 50 horas semanais, para que as alunas adquirissem domínio, habilidade e
destreza manual. (10)
A partir de 1962, gradualmente, as escolas deixam de assumir a responsabilidade
da assistência; as alunas passam a cumprir uma carga horária prática em média
de 20 horas semanais e os professores permanecem no campo somente durante o
período do estágio(12:53).
Com a concentração dos docentes nas atividades didático-pedagógicas, ocorreu o
afastamento deles das atividades práticas, efetivando-se, assim, a separação
ensino-serviço. Essa desvinculação, ao contrário do que se esperava, não trouxe
benefícios para o desenvolvimento do estágio. Os efeitos da dicotomia entre
ensino e assistência são registrados por vários educadores, dentre os quais:
A cisão teve conseqüências nefastas. O docente de enfermagem distanciou-se dos
aspectos práticos da profissão; perdeu a autonomia que desfrutava nos hospitais
escola; desatualizou-se por falta de contato com as inovações tecnológicas
usadas no dia-a-dia; passou a ser visto como visita no campo de prática e,
algumas vezes, como intruso. Os alunos, pelas mesmas razões, sentiam-se
inseguros nos campos onde, via de regra, não eram desejados por não assumirem
[mais] todas as tarefas da assistência por um período continuado. A quebra da
continuidade gera uma prática fragmentada que propicia o desinteresse e o
descompromisso para com a atividade(13:188).
Essa mudança também é retratada em entrevistas concedidas ao Núcleo de
Pesquisas e Estudos sobre Quotidiano em Saúde (NUPEQS) sobre a história da
Escola de Enfermagem Carlos Chagas: "Nós, que ficávamos o tempo todo no
hospital, prestando assistência, passamos a ter aula mais teórica; [...] o
pessoal ia muito para a biblioteca, mas não ia ver o paciente"(14:D).
Outro aspecto pode ser evidenciado pelo depoimento que se segue:
[...] a Enfermagem deu um salto muito grande. Do chão foi para o 24º andar. E
um grupo de enfermeiras não entendeu isso. Nós éramos professores, mas éramos
[também] enfermeiras de cabeceira. Depois de 1962, a enfermeira passou só a
acompanhar o médico, a ficar sentada na mesa e a deixar o trabalho para os
auxiliares e atendentes. Por isto, eles chamam aquilo de corte, porque nós
passamos a ser funcionárias burocráticas e não enfermeiras de cabeceira(15:D).
Atualmente, observamos que a formação do enfermeiro restringe-se a cerca de
3.800 horas, cuja prática em estágio supervisionado intra e extra-hospitalar
ocupa aproximadamente 20% desse total, além de ensino prático e de laboratório.
Essa situação acaba por trazer conseqüências que já estão sendo discutidas.
Autoras(16) buscam explicitar as contradições da formação do enfermeiro em
relação à dicotomia teoria e prática. Elas constatam que uma das insatisfações
ao ingressarem no mercado de trabalho refere-se ao distanciamento que sentem
daquilo que aprenderam na escola - a teoria - e do que encontraram em seus
locais de trabalho - a prática.
Diante do exposto, compreendemos que a discussão sobre a formação do enfermeiro
deve levar em consideração que esta não se reduz a uma questão técnica, à
formação de um prático. Formar o enfermeiro é um processo que envolve múltiplas
dimensões da vida humana - intelectual, afetiva, social, estética, ética,
cultural, política e múltiplos conhecimentos de várias áreas.
Pode-se, enfim, dizer que a formação do enfermeiro teve sempre seu fundamento
na teoria e na prática, sendo o campo de prática o local de busca de
concretização dessa ligação. Entretanto, não encontramos estudos que indiquem a
forma dessa ligação nos diversos momentos identificados anteriormente na
formação do enfermeiro brasileiro.
Além das competências, entendemos que no texto das Diretrizes Curriculares do
Curso de Enfermagem a relação teoria-prática está a merecer a reflexão dos
enfermeiros, de modo a apontar caminhos que indiquem a "coerência entre
intenções e gestos" na formação deles, conforme parte do tema central
proposto para o 7º Seminário Nacional de Diretrizes para a Educação em
Enfermagem.
Desse modo, torna-se premente refletir sobre teoria e prática no processo de
formação do enfermeiro. Entendemos que a alternância seja dispositivo adequado
para a ligação entre ambas.
A alternância não se restringe a mero vaivém entre locais: escola e campo de
estágio. O que é, então, formação em alternância? Qual o interesse desse
dispositivo para a formação profissional do enfermeiro? Qual a possibilidade da
alternância para a construção das competências profissionais do enfermeiro? O
que são competências? O que é profissionalização?
Daí a pretensão, neste trabalho, de refletir sobre a alternância como
dispositivo que permite a ligação teoria e prática pertinente à formação do
enfermeiro diante dos novos rumos da educação brasileira. Além disso, buscamos
discutir questões relativas à formação por competências e à profissionalização
como possibilidade de aproximação do pensamento complexo e contextual proposto
por Morin.
Com este estudo busca-se fornecer contribuição para a construção de projetos
pedagógicos, bem como para o debate sobre a formação profissional do
enfermeiro, visando à implementação das diretrizes curriculares e,
conseqüentemente, à reflexão sobre tantas outras questões que estão a inquietar
os enfermeiros no, Brasil, no momento atual.
2 Competência
O texto das Diretrizes Curriculares do Curso de Enfermagem não deixa dúvida de
que a formação do enfermeiro é por competências. Diante dessa constatação, uma
questão se impõe: O que é competências ou competência? "Formar por
competência é ter constantemente em mente que os saberes são recursos que devem
ser transferidos, modelizados em sistemas, portanto, ensinados e aprendidos
nesse espírito"(17:12).
O vocábulo competências pertence ao reino da heterogeneidade(18). Assim, a
noção de competências é entendida, abordada, concebida e falada como processo
ou produto segundo o universo de referência: abordagens distintas, objetivos
diferentes. Nesse sentido, existem três modos diferentes de abordar e trabalhar
competências.
Primeiro, competências é o conjunto de produtos, saberes ou capacidades a
adquirir pelo trabalhador, que é agente e executa um trabalho sob prescrição.
Nesse caso, o trabalhador agente é parte do sistema, porta a política da
instituição que o emprega e é definido por suas funções que implicam um modelo
mecanicista.
Em segundo, as competências consistem em dominar situações de trabalho em uma
função e papéis definidos. O agente torna-se ator, ou seja, intérprete. Sua
margem de manobra é reconhecida e aceita a medida que serve a organização e
alcança os objetivos pretendidos. Nesse caso, o trabalhador-ator está
impregnado pela idéia de papel em diversas nuanças, sendo o "papel
estabelecido pela instituição em seus aspectos regulamentares, políticos e
referenciais, mas, também, pelos profissionais em suas normas implícitas ou
explicitas no exercício de uma função"(18:10). Conclui a autora dizendo
que "o papel presta-se ao jogo da interpretação do ator e as possíveis
diferenciações que dele decorrem"(18:10). Esse segundo tipo de
competências tem relação com o trabalho prescrito, com capacidades esperadas e
específicas em ligação com uma dada função e um cargo. Desse modo, elas se
formalizam em um perfil de cargo ou de referências de competências.
Finalmente, a competência no singular, em que "o ator torna-se autor de
sua própria competência"(18:4) e esta se produz nas situações de trabalho.
O trabalhador-autor nutre-se de recursos internos e do ambiente para recompor
seu trabalho de forma sempre renovada. Enfim, "ele se constrói como pessoa
profissional em um processo de profissionalização"(18:4) . Nesse caso,
competência não é transmitida, mas construída pela pessoa que faz de si seu
próprio autor. Desse modo, a capacidade de reflexão sobre as práticas cria o
saber profissional e a competência, dando-lhes forma. Fundamentada na obra de
Le Boterf conclui que "competência é saber agir em situação" ou
"saber gerir a complexidade"(18:8). Enfim, competência possui caráter
complexo uma vez que: a) é tecida em conjunto; b) envolve complexidade do
ambiente; c) envolve complexidade da situação de trabalho; e d) envolve
complexidade humana. Em suma, podemos dizer que competência redireciona para a
responsabilidade de uma pessoa que tem engajamento de subjetividade e de corpo
e que assume riscos.
Nesse sentido
A competência consiste também em tirar o melhor partido do que se tem nas mãos,
em tempo real, o que obriga, em geral, a trabalhar com urgências, aproximações
e improvisações. Tais dimensões do trabalho são conhecidas e, todavia, pouco
consideradas nos planos de formação. Dessa maneira, mesmo todos sabendo que há
momentos em que é preciso improvisar, portanto, arriscar, fala-se pouco de
improvisação, de urgências na formação, portanto, da angústia, mas do domínio
de si e da engenhosidade que permite fazer face a tudo isto(17:7).
Diante do exposto, outra interrogação teima em se impor: Como trabalhar
competência na formação? Pistas são indicadas, apontando para a abordagem
sistêmica e para o pensamento complexo, uma vez que este é capaz de religar, de
contextualizar e, ao mesmo, tempo reconhecer o singular, o individual, o
concreto.
A competência consiste em executar um trabalho real e pertinente sem voltar as
costas ao trabalho prescrito, mas sem nele se fechar, exercendo um julgamento
profissional, se autorizando a jogar com as regras, a transgredi-las
pensadamente ou a criar cada vez que a complexidade do real o exige(17:6).
Nessa mesma direção vai "a alternância, ao obrigar o aluno a confrontar os
saberes transmitidos por outros aos saberes produzidos por ele mesmo em sua
experiência, desenvolve uma forma de inteligência particularmente adaptada à
complexidade das situações profissionais"(19:11). Não se trata da
aplicação do ensino teórico, como no estudo de caso, mas de uma implicação
pessoal em uma ação que é de responsabilidade do aluno. Há uma mudança na
mobilização intelectual do aluno e na relação dele com o saber. Nesse sentido,
a experiência guarda sempre uma parte de segredo que só é acessível pela
própria vivência(20).
Nos últimos anos, Morin vem propondo uma reforma do pensamento no sentido de
aproximar o homem do conhecimento, que, segundo ele, só pode ser realizada por
meio de uma reforma da educação(21). Para o autor, durante muito tempo, nos
domínios das ciências, pensava-se que o conhecimento científico era o espelho
da realidade e o espelho do mundo. A idéia de um conhecimento baseado na ordem
natural do universo e no princípio da separação fez com que a propensão natural
do ser humano, que é analisar e sintetizar, não tenha sido plenamente
desenvolvida.
O paradigma da disjunção e da redução, sob um racionalismo abstrato e
unidimensional, não deu conta da "complexidade" - um problema
fundamental do conhecimento, uma vez que "não há nada simples na natureza,
só há o simplificado"(22:174). Ao discorrer sobre os mal-entendidos
referentes às noções de complexidade, Morin, diz que "o problema da
complexidade é, antes de tudo, o esforço para conceber um incontornável desafio
que o real lança a nossa mente"(22:175).
Considerando que "o conhecimento do mundo como mundo é necessidade ao
mesmo tempo intelectual e vital" de todo cidadão do novo milênio, o autor
questiona sobre o problema universal desse cidadão perguntando: "Como ter
acesso às informações sobre o mundo e como ter a possibilidade de articulá-las
e organizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (a relação todo/
partes), o Multidimensional, o Complexo?"(23:35).
Destarte, é necessária uma reforma do pensamento "para articular e
organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do
mundo"(23:35). "O problema-chave é o de um pensamento que una, [...]
já que complexus significa 'o que é tecido junto'"(21:33). Portanto, o
objetivo do pensamento complexo é distinguir, diferenciar - mas não separar - e
unir - contextualizar e globalizar - e aceitar o desafio da incerteza.
A transição de um pensamento reducionista para um pensamento complexo consiste
em um problema universal a ser confrontado pela educação, pois, "existe
inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes
desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas
cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais,
transnacionais, globais e planetários"(23:36).
Nessa inadequação, segundo o autor, o contexto, o global, o multidimensional e
o complexo tornam-se invisíveis, o que exige da educação colocá-los em
evidência para que se configure em um conhecimento pertinente.
Assim, "o conhecimento, ao buscar construir-se com referência ao contexto,
ao global e ao complexo, deve mobilizar o que o conhecedor sabe do mundo"
(23:39). Entendemos que essa mobilização de conhecimentos com a denominação de
"pedagogia das competências" constitui o cerne de uma ampla corrente
educacional contemporânea.
3 Profissionalização
Voltando à questão da formação por competência, retomamos o pensamento(18), que
indica a profissionalização como finalidade da formação. Há distinção entre
profissionalização e profissionalidade. Esta é a qualidade determinada e
esperada, concretizada por critérios com a profissionalização em processo. O
caminho da profissionalização é o processo vivo que conduz o sujeito que
executa um trabalho prescrito, predeterminado para uma interpretação e mesmo
uma composição singular do trabalho. Já a profissionalização é um processo de
formação sempre inacabado que conduz o sujeito em formação a procurar o sentido
de suas ações segundo critérios de pertinência e intencionalidade, ou seja, de
interrogação sobre sua própria visão de mundo. Enfim, para a autora, a
profissionalização visa promover a pessoa no trabalho que executa.
Nesse sentido, o projeto do formado - projeto profissional - comporta dois
aspectos. Primeiro, o projeto programático, ligado à profissionalidade, cuja
intenção é ser e fazer por imitação ou por interpretação um papel segundo
modelos. Segundo, o projeto ligado à profissionalização, que comporta dimensão
singular de procura de sentido e de busca de um objeto de desejo. A autora
conclui que essa concepção de projeto profissional do futuro enfermeiro pode
constituir pista de compreensão do que está em jogo no processo de transmissão
de um "saber agir em situação"(18:8).
Nossa reflexão sobre profissionalização avança. Em seu sentido profundo,
profissionalização significa "formar experts que, munidos de objetivos e
de uma ética, saberão o que fazer, sem estar estritamente mantidos por regras,
diretivas, modelos, teorias"(17:6).
Nesse sentido, a formação, ao fornecer distância espacial e temporal, permite
reflexão sobre as práticas, possibilitando ao educando ser ator e autor (18).
Desse modo, ele cria seu saber profissional e sua competência, dando-lhes
forma. Para a autora, a reflexão dos outros e do educando sobre seus atos,
ações e produções o conduz a fazer de si seu próprio autor - o autorizam,
enfim, a ser autor.
"Como é difícil refletir constantemente só, a prática reflexiva volta-se
para uma tarefa mais coletiva e cooperativa, tomando a forma de supervisão, de
trabalho de equipe, de momentos partilhados, de análise da prática ou de
círculos e de atividades de qualidade"(17:8).
Em resumo, a própria prática pode ser considerada como um texto, lido a
distância para produzir sentido e se articular ao projeto de formação(18).
Desse modo, o educando se autoriza a: a) dar sentido à experiência vivida e a
buscar sua própria visão de mundo; b) querer fazer diferente, modificar,
transformar, rejeitar; e c) inventar novas maneiras de fazer. A autora está
falando da reflexão, elemento que possibilita a ligação de teoria e prática.
4 Alternância: ligação entre teoria e prática
A alternância teve origem simples. Abbé Granereau, pároco do interior da
França, em 1935, fundou a primeira Escola Família com o intuito de promover o
desenvolvimento socioeconômico dos camponeses de sua paróquia(24).
No Brasil, a formação em alternância existe, notadamente, dirigida para a
formação de estudantes do meio rural. Nesse contexto, caracteriza-se pela
permanência alternada dos alunos na Escola e na propriedade rural com diálogo
constante entre as duas atividades.
Atualmente, na França, a formação em alternância ocupa lugar garantido na
educação e também na formação do enfermeiro. Jeanguiot em, trabalho de pesquisa
com enfermeiros e educadores que buscava traçar semelhanças e diferenças entre
dois dispositivos de alternância afirma que esta "faz parte de nossa
[França] história". Completa, dizendo que, "ao longo dos anos, as
formações por alternância foram amplamente desenvolvidas e seu impacto vai além
das formações com objetivos profissionais"(20:58). Em relação à formação
do enfermeiro, a autora diz que ela apresenta dificuldades tanto de concepção
como de desenvolvimento.
A alternância é um meio pedagógico a serviço de diferentes finalidades entre
elas a emergência de saberes da prática, a construção de competências
profissionais, o esboço de identidade profissional; tudo isto sem, todavia,
omitir a ligação teoria-prática e mais particularmente o fato que a alternância
permite tomar distância da prática(20:58).
Perrenoud, falando para enfermeiros, assistentes sociais e educadores, diz que
a alternância é "condição necessária para uma articulação entre teoria e
prática"(17:1). Segundo o autor, ela designa o vaivém de um futuro
profissional entre dois locais de formação, de um lado, um "instituto de
formação inicial', de outro lado, um ou vários 'locais de estágio'". Para
ele, tais momentos não são mera justaposição. Nesta, o que se aprende em campo
tem pouca relação com o que se aprende na escola, e os estágios funcionam como
mais uma "disciplina" denominada "formação prática", sem
ligação com a "formação teórica". Enfim, é preciso mais. Mas não é
suficiente um vaivém entre locais e momentos autônomos de formação para se
falar em alternância teoria e prática. Para se trabalhar com alternância, ele
aconselha, que, antes de tudo, a instituição de formação se pergunte sobre os
motivos pelos quais ela envia seus alunos aos estágios. Ele antevê quatro
possibilidades que podem coexistir ao longo da formação e mesmo em um mesmo
estágio.
1. Um campo de ilustração, de aplicação, de colocação a prova e de reforço de
normas profissionais, de uma doxa.
2. Um momentode socialização profissional e de apropriação de saberes e gestos
da profissão.
3. Uma provaonde se encontram e se juntam os saberes racionais e a experiência.
4. Um componente de um procedimento clínico e reflexivo(17:3).
Tais funções não são incompatíveis entre si, podendo coexistir ao longo da
formação e até mesmo em um só estágio. No texto o autor as identifica como
emblema de um modelo de formação e comenta cada uma. Voltar-se-á para a última,
uma vez que para o autor ela é a única defensável segundo ótica da
profissionalização e da prática reflexiva, enfim uma resposta à complexidade
das tarefas e das situações profissionais.
Essa função pode ser atrelada à proposição de Morin sobre a busca de uma
reforma do pensamento com a utilização total da inteligência, reforma "que
gera um pensamento do contexto e do complexo"(25:14). Para o autor, o
pensamento contextual é o da inseparabilidade: busca a interligação entre os
fenômenos e seu contexto e deste com o contexto planetário. Já o pensamento
complexo busca a relação recíproca entre os fenômenos e entre as realidades,
que são ao mesmo tempo solidárias e conflitivas. É o pensamento que respeita o
diverso e o uno. Assevera que a mudança do pensamento exige reforma do ensino.
Perrenoud(17) propõe que a formação seja reflexiva desde o seu início, o que
permitirá a evolução do aluno no sentido da sua relação com a profissão e com a
complexidade. Isso só é possível, segundo ele, em uma formação em alternância,
que possibilita que o aluno seja confrontado desde cedo com a complexidade das
situações profissionais.
Aconselha, que "não é necessário que ele [aluno] se encontre de repente
com responsabilidade plena, pode-se ir em direção a uma prática, inicialmente,
acompanhada, uma prática orientada, e depois, cada vez mais autônoma" 17:
9).
Ainda para o autor, esse é um procedimento que ultrapassa a formação inicial e
mesmo a formação continuada, para constituir uma ligação com a função. Duas
interrogações são levantadas sobre as quais o autor desenvolve seu pensamento.
Não podemos negar que tais questões são o retrato do que vivenciamos na
formação do enfermeiro.
- Como realizar em formação o vaivém entre a experiência e a reflexão sobre a
experiência, entre o singular e o geral?
- Como estender este funcionamento ao desenvolvimento profissional, portanto,
fazê-lo de tal modo que ele seja suficientemente interiorizado para tornar-se
independente de uma estrutura escolar? (17:9).
Esse tipo de formação o autor denomina formação clínica, independentemente que
seja formação de enfermeiro, de assistente social ou de educador. Ele ressalva
que não é uma imitação em detalhe do dispositivo da clínica médica; o
importante é a construção de uma base teórica e afiná-la a partir das
observações e de intervenções sobre casos concretos.
Ressalvando que a formação clínica não exige que se parta sempre da experiência
bruta, a teoria intervindo somente após a realização da prática, ele indica a
junção de diferentes modelos.
- De um lado, planejar a experiência sobre a base de um certo número de
saberes, procedimentos, instrumentos, sabendo que esta preparação teórica e
metodológica não garante o domínio da experiência.
- De outro lado, retornar sobre a experiência após realizada, analisar,
construir conhecimentos e raciocínios profissionais, imaginar respostas mais
adequadas para "a próxima vez" que pode ocorrer um dia, uma semana,
um mês ou um ano mais tarde(17: 9).
Para o autor, nos dois esquemas, a alternância faz-se presente entre momentos
de ação e momentos de reflexão, sendo ambos momentos de formação. O que muda
são as modalidades. Primeiro, trata-se de agir ou interagir com alunos,
usuários e pacientes reais, em responsabilidade parcial ou total. Depois, em
momentos que ele chama de mais protegidos, pode-se, com calma, antecipar o que
vai acontecer ou analisar com certa distância o que se passou.
[...] a teoria fornece meios de planejar, de construir estratégias, mas ela
funciona também como um quadro de leitura da experiência, ex post. Ela é
constantemente enriquecida, matizada, refeita pela experiência e a reflexão
sobre a experiência. Essa abordagem possui, além disso, a vantagem de conciliar
mais facilmente teorias do conhecer e cultura profissional, saber de
experiência, saber de experts e saberes vindos da pesquisa(17: 13).
Adianta que, na formação clínica, integram-se duas lógicas: "aprender
fazendo, mas sobretudo, aprender para fazer,para resolver um problema, para
compreender uma situação"(17: 13). Ele sugere que
[...] o estudante seja confrontado a uma situação próxima de uma situação real
de trabalho, que seja um problema complexo, um problema real, talvez um pouco
estilizado, um pouco simplificado, um pouco escolarizado, para ser administrado
no tempo disponível e adaptado ao nível dos estudantes, mas, não a ponto de
tornar-se um exercício escolar(17: 10).
Falando da necessidade de que esse tipo de percurso seja construído por meio de
um plano, Perrenoud (17) assevera que deve haver um encadeamento de problemas
para o alcance das competências pretendidas. O autor confessa que se está longe
de saber como isso se dá. Tal procedimento exige um novo professor, portanto é
preciso investir na formação do educador e seu desenvolvimento profissional
fundado em uma prática reflexiva. O sucesso de uma formação clínica depende, de
certo modo, da intuição, da engenhosidade e da experiência do professor. O
autor fala, também, da necessidade de uma didática de formação clinica, de
abordagem por problemas e análise de práticas.
Ele reconhece ser impossível querer que todos os educadores tenham a mesma
relação com a profissão e com a ação profissional. Enquanto alguns não
conseguem fazer conexões muito fortes entre o seu ensino e a realidade, outros
limitam-se a fazer intervenção na prática sem suporte teórico substancial.
Entre esses extremos ele coloca o educador capaz de fornecer recursos teóricos
e metodológicos contextualizando-os fortemente. Ele sugere que as duas
primeiras situações não devem ser limitantes. De algum modo, segundo ele, tais
dificuldades podem ser resolvidas com a elaboração de simulações, de trabalho
sobre situações reais ou sobre situações problemas inspiradas no mundo
profissional. Completa, ainda, que, estando os alunos em alternância no campo
de estágio e na escola, é preciso prever unidades de formação nas quais se
possa favorecer a articulação teoria-prática. Para o autor, a articulação entre
as principais unidades de formação só é possível ao se dar ao aluno, ao mesmo
tempo, dupla responsabilidade: conteúdos teóricos e um trabalho de campo.
O autor aponta que tradicionalmente dois obstáculos têm sido enfrentados pela
alternância. Estágios longos, sobretudo se os locais de estágio são distantes
entre si; e a impossibilidade de encontrar estágios do mesmo tipo. Para ele,
tais dificuldades são mais ligadas à tradição dos educadores e ao problema de
gestão do que a impossibilidades pedagógicas.
Neste caso ele propõe, também, que se trabalhe com unidades temáticas, de modo
a ir ao encontro dos diversos alunos em diferentes locais. Para estágios longos
- quatro a seis meses -, ele propõe como solução que ele seja seguido de perto
por grupos de análise de prática preparados para este fim: sem cair na
justaposição, alerta ele.
Ressalva, todavia, que o ideal é alternar uma a três semanas de trabalho na
escola com igual período de trabalho de campo, uma vez que "esta
alternância próxima permite uma articulação teoria-prática mais sustentada e
mais leve" (17:14). Para que a alternância seja bem-sucedida, conclui ele,
é essencial a formação do educador de estágio que, posteriormente, poderá
montar sua rede de educadores de campo.
5 Sem conclusão, mas dizendo ainda que...
Cabe ao educador, por meio de uma relação dialógica, não trabalhar saberes
fragmentados, mas trazê-los para um contexto mais amplo. É tarefa do educador
apontar, em atendimento ao interesse dos alunos, relações entre os vários
saberes, contextos, práticas e as possíveis conseqüências para a profissão,
para a saúde, para a qualidade de vida das pessoas e para a prática político-
social. Mais ainda: em conjunto com os educandos, o educador precisa refletir
sobre a teoria e a prática, buscando compreendê-las de modo criativo e crítico,
além de buscar despertar a inteligência total do aluno, ajudando-o na
construção de seu projeto profissional. Eis algumas pistas para um educador de
formação em alternância.
Gostaríamos de deixar claro que os nossos estudos e as idéias aqui lançadas
exigem mais aprofundamentos, discussões e revisões. Se nos tornamos
prescritivas, é porque acreditamos que a formação do enfermeiro precisa ser
modificada. Sem dúvida, o momento é propício a grandes transformações para a
construção de projetos pedagógicos interessantes e adequados à formação de um
profissional competente. Encontramos na formação em alternância dispositivo que
pode constituir importante pista para a formação por competência do enfermeiro.
Fica nosso convite de busca de aprofundamento no tema - teórico e prático -,
com outras reflexões e com realização de pesquisas.