Trajetória do enfermeiro em um hospital universitário em quatro décadas:
pressupostos de inovação de seu papel gerencial
REVISÃO
Trajetória do enfermeiro em um hospital universitário em quatro décadas:
pressupostos de inovação de seu papel gerencial
The path of nurses at a university hospital throughout four decades: starting
points to innovate their management role
Trayectoria del enfermero en un hospital universitario en cuatro décadas:
presuposiciones de innovación de su papel gerencial
Maria Auxiliadora TrevizanI; Isabel Amélia Costa MendesII; Simone de GodoyIII;
Leila Maria Marchi AlvesIV; Eliana Llapa RodriguezV
IEnfermeira. Professor Titular. Departamento de Enfermagem Geral e
Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto USP. Centro Colaborador
da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem. trevizan@eerp.usp.br
IIEnfermeira. Professor Titular. Departamento de Enfermagem Geral e
Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto USP. Centro Colaborador
da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem. iamendes@eerp.usp.br
IIIEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Especialista em Laboratório. Departamento
de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
USP. Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em
Enfermagem. sig@eerp.usp.br
IVEnfermeira. Doutoranda em Enfermagem Fundamental. Departamento de Enfermagem
Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto USP. Centro
Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem.
imarchi@eerp.usp.br .
VEnfermeira. Doutoranda em Enfermagem Fundamental. Departamento de Enfermagem
Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto USP. Centro
Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem.
eliestom@eerp.usp.br
1. INTRODUÇÃO
O processo de socialização organizacional é tido como aquele através do qual a
pessoa aprende valores, normas e expectativas de comportamento de modo a
participar da vida organizacional num processo contínuo durante sua carreira.
Ao administrador compete não apenas identificar a cultura da organização e sua
influência no processo de gestão, mas é fundamental que ele tenha compreensão
de como essa cultura é disseminada ou aprendida pelos seus integrantes, o que
possibilita e favorece suas ações administrativas(1).
Os métodos de orientação e socialização são relevantes na manutenção,
consolidação e desenvolvimento da cultura organizacional. Tem-se considerado
que embora o processo de socialização formal tenha um timing e duração
determinados, durante toda a sua permanência numa organização o empregado está
em constante socialização, uma vez que novos comportamentos são esperados
frente aos novos desafios(2). Desta forma, através da condução bem sucedida do
processo de socialização haverá melhores e mais oportunos ajustes dos novos
trabalhadores à cultura organizacional.
A socialização pode ser entendida como um processo de desenvolvimento de
papéis, dado que papel é o comportamento esperado de um indivíduo quando ocupa
determinada situação social. De acordo com essa definição, o autor argumenta
que, "praticamente todos os atos sociais podem ser pensados como constituindo
comportamentos de papéis, no sentido de que, do ator individual, espera-se que
responda com desempenho às expectativas legítimas que percebe dos outros
significativos em seu ambiente social"(1).
A importância da estrutura interna nos contextos de socialização, foi realçada,
focalizando-se dois elementos essenciais nesses contextos: - o sistema de
papéis e a distribuição de poder. O sistema de papéis que se vincula à
conformação de status sociais, expectativas de comportamentos, direitos e
responsabilidades é altamente relevante na socialização, pois abarca
identidades específicas, comportamentos, valores e crenças. Quanto à
distribuição de poder, o autor assevera que o indivíduo tem poder considerável
sobre os socializados quando seu status formal no grupo implica na socialização
dos demais(3).
Tomando a prática assistencial hospitalar podemos dizer que o processo de
socialização do profissional enfermeiro nesse contexto se deu e tem se dado,
quase que exclusivamente, orientado para os padrões normativos da organização
em questão. Assim, as expectativas que determinam padrões de comportamento do
enfermeiro e sua atuação em consonância com os requisitos de um sistema de
papéis racional e burocrático têm lhe reservado uma postura disciplinada, de
disciplinador, de obediência a normas, obtendo, portanto, a confiança do
administrador hospitalar de que cumprirá e fará cumprir suas ordens. Por razões
que mereceriam investigações mais apuradas, o enfermeiro tem demonstrado
facilidade em adaptar-se a obrigações, a disciplinas, em manter-se submisso a
normas e rotinas a ponto de transferi-las de meios para fins em si mesmas o que
provoca rigidez e faz surgir o excessivo formalismo e o ritualismo em seu
trabalho. Essa postura do enfermeiro alicerçada em valores da organização
hospitalar tem impedido, muitas vezes, o profissional de potencializar suas
ações em função dos valores profissionais incorporados através do processo de
socialização profissional(4).
No início dos anos 70 já se alertava(5) para a severidade do conflito
profissional burocrático enfrentado pelas enfermeiras norte-americanas, o qual
culminava com uma condição denominada choque da realidade caracterizada como
perniciosa para o profissional, para a profissão e para a sociedade. Alega que
o tipo de preparo profissional, a configuração de papéis e as características
estruturais da organização são fatores que interferem nesse conflito e nas suas
conseqüências.
Em nosso meio, as lealdades conflitantes frente aos sistemas profissional e
burocrático da organização têm sido causadas pela indefinição do papel do
enfermeiro na ambiência do hospital. Embora no discurso o enfermeiro reconheça
o seu compromisso com a profissão, na prática evidencia-se quase que somente
seu envolvimento e comprometimento com a organização, fragilizando sua própria
identidade ou mesmo impossibilitando sua conformação. Assim sendo, a utilização
dos recursos humanos da enfermagem, especificamente dos enfermeiros, nos
serviços assistenciais em âmbito hospitalar tem se mostrado inadequado e
insuficiente face ao compromisso da profissão e dos profissionais de garantir
assistência qualificada e personalizada aos clientes. Essa inadequacidade e
insuficiências demonstradas decorrem basicamente de questões intrínsecas às
estruturas das instituições de saúde e de questões relativas ao próprio serviço
de enfermagem.
A seguir, analisaremos cinco estudos clássicos da literatura brasileira sobre a
função/papel do enfermeiro, desenvolvidos nas ultimas quatro décadas do século
XX, no mesmo hospital, com o objetivo de comparar os resultados dessas
pesquisas, dela extrair pontos de congruência, delimitações e possibilidades
que permitam apontar direções que possam viabilizar ações mais efetivas e
pertinentes no que afeta o papel do enfermeiro, com a pretensão de somar
esforços aos que se dedicam ao tema. A trajetória metodológica abrangeu análise
secundária de cinco estudos clássicos da literatura brasileira, desenvolvidos
em quatro décadas, sobre a função do enfermeiro.
2. TRAJETÓRIA DO ENFERMEIRO EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO - ANÁLISE DE SEU PAPEL
Investigando a distribuição do trabalho de enfermagem nesse hospital, Ferreira-
Santos & Minzoni(6), em 1968, apontaram que, em relação ao comportamento da
enfermeira, foi elevado o índice de dedicação em atividades administrativas
relacionadas à organização de seu setor de trabalho. Verificaram que essa
profissional gasta aproximadamente 20% de seu tempo em atividades de outras
categorias, inclusive da secretária da unidade. Indicaram também baixo índice
de realização de atividades junto ao cliente. As autoras consideram a evidência
de um problema sério para a enfermagem brasileira ao constatarem que a prática
observada é muito diferente dos anseios da profissão, em termos dos papéis da
enfermeira.
Ao situar a enfermeira no hospital, Ferreira-Santos(7) analisou em 1973, as
expectativas da administração hospitalar e do serviço de enfermagem, dos
médicos, dentre outros agentes que mantém interação com a profissional em
questão, em relação a sua atuação. Investigando as tarefas exercidas pelas
enfermeiras, verificou sua vinculação à ética burocrática da organização
hospitalar, encontrando correspondência entre as expectativas mencionadas e a
realidade observada, ou seja, os papéis desempenhados apóiam e dão retorno
positivo aos desejos expressados pelas instâncias superiores do hospital e do
serviço de enfermagem e pelos médicos, apesar de ficarem aquém do preconizado e
esperado pela profissão. Para a autora tal conduta é ambivalente, pois as
enfermeiras, sujeitos da pesquisa, consideram a assistência ao paciente sua
função essencial. Observamos assim os conflitos de papéis que poderiam estar
afligindo as enfermeiras nessa situação real, dificultando e até
impossibilitando o desempenho de ações cientificamente orientadas pela formação
profissional.
Em 1978, analisando as funções dos enfermeiros no referido hospital, através de
observação da prática e entrevistas, Trevizan(8) constatou os seguintes
resultados: de 853 atividades observadas, 575 se relacionam às atividades
administrativo-burocráticas, 164 atividades que devem ser delegadas ao pessoal
auxiliar e a pessoas de outros serviços, 83 referentes à assistência direta ao
cliente e 31 vinculadas ao ensino e à pesquisa, concluindo que a maioria das
funções realizadas não é respaldada pelos valores da profissão incorporados no
processo de socialização profissional. A autora referiu que 40% dos enfermeiros
entrevistados consideram que a assistência direta ao paciente pode ser delegada
a outras categorias da enfermagem; entretanto, 70% desses profissionais
indicaram que a falta de tempo para se ocuparem dessas atividades tem sido
motivo de frustração e insatisfação. Vemos aí mais uma vez a ambivalência
relacionada ao papel do enfermeiro.
Com a convicção de que os enfermeiros privilegiavam o desempenho gerencial, uma
década depois Trevizan(4) analisou tais funções, por eles exercidas, à luz de
uma tipologia das funções administrativas burocráticas e não-burocráticas. A
autora encontrou que 74% das funções administrativas são de caráter
burocrático. Comenta que as forças propiciatórias da burocratização do trabalho
da enfermeira são oriundas de três fontes: o serviço de enfermagem, a
organização hospitalar e a expectativa médica.
Frente às imposições do processo organizacional hospitalar, a autora afirma que
enfermeiro deve assumir e exercer funções gerenciais, mas enfatiza que o
conteúdo e a forma dessa gerência precisam focalizar a assistência ao cliente.
Desta forma, conciliando gerência e assistência o enfermeiro terá novo ânimo
para reorientar e reativar seu potencial profissional.
Em 1995, Ferraz(9) admite em sua análise que o panorama descrito por Trevizan4
não se modificou; ou seja, os enfermeiros continuam realizando suas funções
gerenciais predominantemente orientados para a tecnoburocracia hospitalar. Para
a autora "é angustiante ver o profissional enfermeiro envolvido com as
atividades tão vazias de conteúdos de enfermagem" e argumenta que dos
depoimentos dos atores sociais investigados os mais veementes apontam para a
necessidade de mudanças no papel do enfermeiro(9). Cabe salientar que a
composição dos atores sociais, participantes desta pesquisa, é a seguinte:
elementos da administração superior e intermediaria da enfermagem, o
superintendente do hospital, diretores dos departamentos de apoio médico, apoio
técnico, apoio administrativo, diretor da divisão médica, enfermeiros,
auxiliares e atendentes de enfermagem e médicos docentes e residentes. Assim,
podemos observar que transformações no papel do enfermeiro e conseqüentemente
na sua prática assistencial e gerencial começam a ser requeridas por diversos
agentes do conjunto hospitalar, inclusive pelo superintendente e médicos, cujas
demandas em relação ao comportamento do enfermeiro estimulavam esse
profissional a manter a burocratização de seu trabalho, como indicam os estudos
mencionados(4,6-9).
Comparando os dados das investigações apresentadas podemos repetir e reafirmar
que a prática do enfermeiro na esfera hospitalar tem se dado de modo a
privilegiar valores organizacionais pautados na burocratização em detrimento
dos valores profissionais, propiciando a ocorrência de ambivalência, frustração
e conflitos no profissional. Assim sendo, dos problemas e desafios com que se
depara a enfermagem brasileira, a indefinição do papel do enfermeiro é uma
situação que está a exigir uma vigorosa determinação das lideranças de
enfermagem, tanto da academia como da prática assistencial.
A seguir, abordaremos considerações sobre pressupostos para o papel do
enfermeiro, com vistas à reorientação de sua postura gerencial.
3. PRESSUPOSTOS PARA O PAPEL DO ENFERMEIRO
Considerando o desafio de qualificar o atendimento prestado pelos hospitais
públicos, põe-se em discussão (10), dentre outros pontos, a necessidade da
criação da "lógica do compromisso com a qualidade do atendimento aos clientes
internos e externos", enfatizando que "a idéia de cliente legítimo portador de
direitos e necessidades" como o foco das atenções e intenções do processo
gerencial da instituição hospitalar, expressa de início empenho para a mudança
na cultura organizacional. Para o autor, esse empenho envolve "um bom tempo de
maturação para a mudança, paciência, negociação e muito investimento em
desenvolvimento e sensibilização das equipes de saúde"(10).
Fugindo das atividades do papel convencional de gerência, o enfermeiro poderá
assumir nova postura e integrar-se nesse inovador processo gerencial,
compreendendo que "o conceito de cliente, nos hospitais públicos, há de ser
trabalhado a partir de uma ética de solidariedade e compromisso com a
construção da cidadania"(10).
Compreendemos que o enfermeiro encontra em sua unidade de produção de serviço
uma oportunidade singular de trabalhar em função de seus clientes. Desta forma,
fundamentará o seu papel gerencial na flexibilidade, nos pressupostos da
profissão, dirigindo suas ações para a satisfação das necessidades dos
clientes, tanto externos como internos, considerando seus valores, seu
potencial, suas diferenças e diversidades.
O modelo organizacional da prestação da assistência deverá sofrer as adaptações
necessárias tendo em vista a viabilização da participação e da interferência de
todos os envolvidos, permitidas no novo processo gerencial que tem como centro
o conceito de cliente, emanando maior efetividade da prática assistencial de
enfermagem.
Consideramos que é preciso muito investimento para que o enfermeiro assuma e
concretize esse novo papel. Trata-se de papel complexo que busca união, requer
parcerias, cumplicidade nas relações e na coexistência interdependente.
Mas, reconhecendo o hospital universitário como um centro profissional de saúde
que enfatiza a qualidade do tratamento e da assistência dispensados aos
clientes, assim como o ensino e a pesquisa sendo, portanto, uma instituição
imprescindível para a assistência, para o desenvolvimento da ciência e para a
formação de recursos humanos da área o enfermeiro refletirá e sentirá a
importância da condução bem sucedida de seu papel alicerçado em competências
profissionais e sociais, caracterizando sua identidade nesse contexto e na
sociedade.
Nesse sentido, esse profissional será orientado através de nova socialização ou
ressocialização organizacional, uma vez que dele novos comportamentos são
esperados. Os padrões inovadores certamente trarão benefícios não só para as
instituições de saúde, para as organizações de enfermagem, para a classe
profissional, para os clientes internos e externos, mas sobretudo para o
próprio enfermeiro na busca da plena satisfação profissional.
As escolas de enfermagem talvez tenham que reformular aspectos da socialização
profissional no que tange ao papel gerencial do enfermeiro à luz de
perspectivas mais flexíveis e humanas.