O gênero (in)visível da terceira idade no saber da enfermagem
REVISÃO
O gênero (in)visível da terceira idade no saber da enfermagem
The (in)visible gender of third age in nursing knowledge
El género (in)visible de la tercera edad en el conocimiento de enfermería
Maria do Livramento Fortes FigueiredoI; Maria Antonieta Rubio TyrrelII
IProfessora Assistente da Universidade Federal do Piauí. Mestre em Enfermagem e
Doutoranda da EEAN/UFRJ
IIProfessora Doutora titular da EEAN/UFRJ. Diretora da EEAN/UFRJ. Orientadora
da Tese de Doutorado
1. INTRODUÇÃO
Estando inscrita no Curso de Doutorado da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolvendo a tese: "A
mulher e o tempo saberes e práticas de saúde na terceira idade, na perspectiva
de gênero", e buscando contextualizar a problemática e identificar
convergências e aproximações, bem como, divergências e descontinuidades na
produção de enfermagem referente à temática desse estudo, além de procurar
aproximações dos referenciais teóricos e metodológicos que estão sendo
utilizados no desenvolvimento desta tese, buscou-se levantar a produção
científica da enfermagem contida no CD-ROM do Centro de Estudos e Pesquisas em
Enfermagem(CEPEn)(1) da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) no período
de 1979 a 1999.
Constatou-se que produção científica de enfermagem referente à terceira idade
ainda é pequena, e é menor ainda quando se trata de estudos com enfoque nas
questões de gênero, desta forma se evidencia uma negação das relações de
gênero. As funções e papéis característicos da condição feminina nos estudos
pesquisados apresentam-se de forma velada ou (in)visível na terceira idade.
Partindo desta constatação, além de ter feito um levantamento minucioso da
produção de enfermagem referente à terceira idade, busquei construir este
artigo, a partir de reflexões sobre a mulher na terceira idade, enfocando tanto
nos aspectos demográficos, sociais e culturais, como aqueles referentes às
condições de saúde e doença a que estão submetidas às mulheres idosas e assim
contribuir com uma produção do conhecimento que venha melhorar a assistência de
enfermagem a este grupo populacional que mais cresce no Brasil e no Mundo,
procurando evidenciar a relevância das questões de gênero na determinação das
condições de saúde e na qualidade de vida da mulher na terceira idade.
2. METODOLOGIA
Trata-se de um estudo bibliográfico, no qual realizou-se um levantamento da
produção científica de enfermagem referente à Mulher na Terceira Idade no
Catálogo de Dissertações e Teses do CD-ROM do Centro de Estudos e Pesquisas em
Enfermagem (CEPEn)(1) da Associação Brasileira de Enfermagem ABEn no período de
1979 a 1999.
A busca foi procedida utilizado-se os seguintes unitermos: idoso, terceira
idade, mulher idosa, velhos, velhas, mulher, gênero. Foram identificados
trabalhos nas categorias: idoso e mulher idosa. Foram levantados 54 (cinqüenta
e quatro) resumos de dissertações e teses na área temática da terceira idade.
3. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Como afirmavam em 1987, Rocha e Silva(2) a produção científica em enfermagem no
Brasil é recente, tendo seu início com as exigências da carreira universitária
em 1963 e intensificando-se, a partir dos anos setenta, com a regulamentação da
pós-graduação "stricto sensu", e mais recente ainda quando se trata em
investigar um fenômeno tão novo como é o envelhecimento populacional,
principalmente, quando se focalizar como objeto de investigação da enfermagem
outra categoria de análise considerada extremamente contemporânea para as
ciências sociais, como são as questões de gênero.
No Brasil, como em toda parte, a mulher é objeto de preconceitos, cristalizados
em papéis, mais ou menos estereotipados. Para Tabak(3) a questão da mulher como
tema de pesquisas e estudos na área acadêmica ganhou particular relevo na
década de 70, quando aumentou consideravelmente o número de programas criados
em universidades e centros de investigação, nos EUA e em numerosos países da
Europa.
Nesse contexto alguns temas atraíram o interesse de numerosos estudiosos das
ciências sociais, tais como, o trabalho feminino, a sexualidade, a violência, e
já no final do século a participação política da mulher, principalmente com a
Constituição de 1988, e posteriormente, com as leis eleitorais, estabeleceu-se
o regime de cotas para as candidaturas de mulheres para os parlamentos, porém
os temas Gênero e Terceira Idade, ainda não obtiveram toda atenção que merece,
principalmente na área da saúde, em especial na Enfermagem.
Porém, com a mudança no perfil demográfico mundial e brasileiro, cresce o
interesse pelos estudos sobre a velhice, principalmente na medicina social, que
trouxe como conseqüência a investigação na área social, focalizando a velhice-
problema, a velhice falta de dinheiro, da solidão, da aposentadoria e da
viuvez, constituindo-se assim como objeto desses estudos; no entanto, esses
investigações limitavam-se a enfocar a velhice como um período da vida em que
ocorre uma diminuição das áreas de relacionamento social e de perdas físicas,
emocionais e sociais.
O interesse pelo estudo da velhice, não da velhice-problema, da velhice
escondida, asilada, doente, mas da velhice nas suas relações sociais, nas suas
experiências de vida, nas suas possibilidades e na sua cidadania, vem surgir de
fato na década de 70, no âmbito da atual sociedade urbana brasileira, como
focalizou Barros(4) em seus estudos sobre as questões de gênero presentes na
vida das mulheres idosas.
Portanto, como já era de se esperar ser pequena a produção científica em
Enfermagem abordando, Gênero e Envelhecimento, apesar de serem considerados
dois fenômenos sociais de grande repercussão na saúde pública, mas que também
passaram a ser foco de atenção das ciências somente a partir da década de 60.
Das 54 produções científicas levantadas no CD-ROM do CEPEn(1)(1979-1999)
referente à temática da terceira idade, 48 (quarenta e oito) das Dissertações
de Mestrado e Teses de Doutorado foram produzidas a partir de 1988, o que
demonstra ser relativamente, recente a preocupação de enfermeiros e
pesquisadores, com a problemática do envelhecimento. Estas 54 produções se
distribuem da seguinte forma: 45 são Dissertações de Mestrado, sendo 37 têm
como sujeito o idoso, e 08 a mulher idosa. Já as Teses são 09, sendo 08 destas
estudando o idoso independente de sexo, e apenas 01 investiga a mulher idosa.
Dos estudos que tem como sujeitos de investigação a mulher, em apenas 02 foram
enfocadas as questões de gênero, ver Gráfico_1.
Também se evidenciou uma concentração desses estudos nas academias de três
estados brasileiros, São Paulo (27 trabalhos), Santa Catarina (08 trabalhos) e
Rio de Janeiro (07 trabalhos) , o que vem confirmar o desenvolvimento da
produção científica de enfermagem nestes centros de qualificação profissional
stricto sensu, que foram pioneiros nas modalidades: mestrado e doutorado. Ver
Gráfico_2.
É por este motivo que, o artigo referente ao levantamento da produção
científica de Enfermagem na área da terceira idade é intitulado: "O gênero in
(visível) da terceira idade no saber da Enfermagem" pois até aqueles estudos
que têm como sujeitos à "mulher" enfocaram com maior ênfase os aspectos
biológicos, fisiológicos e patológicos do envelhecimento feminino, não
considerando os aspectos sociais e culturais estabelecidos pela sociedade para
mulher em qualquer faixa etária.
Sobre a importância de se pesquisar o envelhecimento, na perspectiva de gênero
e evidenciar as relações de gênero com o envelhecimento, ressalta-se os achados
de Miller(5) em estudo sobre a saúde das mulheres idosas na América Latina e
Antilhas, quando o autor salienta que dois fatores intervêm intensamente na
qualidade de vida das idosas: o primeiro é as relações de poder e os papéis
femininos de subordinação; o segundo é a participação das idosas em grupos
cujas atividades sejam capazes de incentivá-las a utilizar suas
potencialidades.
Ao analisar os resumos selecionados na temática da terceira idade, considerando
a proposta de categorização temática e de linhas de pesquisa da produção
científica em Enfermagem de autoria de Carvalho(6), em que pese à escassez de
informações dos resumos, para melhor elucidação categorial dos estudos
analisados, foi possível chegar a seguinte distribuição por categoria:
1. Na categoria assistencial foram identificados 35 resumos que corresponderam
64,9% dos estudos de enfermagem sobre a terceira idade, estes apresentaram como
foco de estudo os aspectos relacionados ao cuidado ou assistência de
Enfermagem, seguindo a tendência destacada por Moriya(7) em seus estudos.
2. Na categoria organizacionalforam identificados 14 resumos representando
25,9% dos estudos selecionados, mostrando que estas duas dimensões do trabalho
de Enfermagem, assistencial e a organizacional ou gerencial, são vistas pelos
enfermeiros de serviços como indissolúveis, o que foi evidenciado também, por
Lima(8) em seus estudos.
3. A categoria profissional referente atuação da Enfermeira, como profissional,
pautada em um referencial teórico e metodológico para uma sistematização
própria na assistência. Nesta categoria evidenciou-se o menor número de
estudos, apenas 05 correspondendo a 9,20% dos estudos pesquisados, o que mostra
sermos de fato uma profissão, que enquanto ciência está em construção.
A categorização da produção científica de Enfermagem nesta área específica
manteve a tendência identificada por Carvalho(6) em seu estudo feito com toda
produção dos Programas de Pós-Graduação em Enfermagem do Brasil, no período de
1998 2000. Ver Gráfico_3.
Analisando as abordagens utilizadas nestas produções, identifica-se que as
mesmas apresentam-se marcadas pelos referenciais positivistas predominantes nas
pesquisas em saúde neste contexto temporal em que foram realizadas. Também se
percebe uma forte valorização da pesquisa quantitativa, abordando
principalmente os aspectos orgânicos do ser humano numa perspectiva
funcionalista. Das 54 produções cientificas 35, ou seja, 64,8% apresentaram o
positivismo como predominante nas suas fundamentações teóricas, apenas 19
(dezenove) destes estudos mostram-se com análises mais qualitativas pautadas
nas ciências sociais, ver Gráfico_4.
Dois desses trabalhos que apresentaram uma abordagem das questões de gênero,
ambos são produções da Escola de Enfermagem Anna Nery - EEAN/UFRJ, dos anos de
1998 e 1999, isto também evidencia as inovações, os novos paradigmas e métodos
implantados nos Programas de Pós-Graduação da EEAN/UFRJ, que passam a enfocar
referenciais das ciências humanas e sociais, tais como, o marxismo e a
fenomenologia.
Os enfoques sociais e culturais, característicos dos referenciais das ciências
humanas e sociais, não eram, até então, considerados como relevantes nas
investigações em saúde e mais especificamente, na área de enfermagem,
principalmente, em relação a uma temática relativamente nova para sociedade
brasileira, como a da terceira idade, ainda mais nesta perspectiva de gênero,
que busco desvendar na minha tese de doutorado em andamento.
Para melhor visualização será apresentado quatro sintético ilustrando o
levantamento feito no CD-ROM do CEPEn/ABEn(1) (1979 1999).
O recorte temporal no qual foi feito o levantamento destas produções aponta
para um contexto de situações paradoxais, nas quais os técnicos e
pesquisadores, ainda não conseguiram desvendar as problemáticas sanitárias
ligadas à infância e adolescência, e já têm como desafio preocuparem-se com o
crescimento demográfico da terceira idade, e com as problemáticas e contextos
deste grupo populacional.
4. REFLEXÕES SOBRE O BINÔMIO: GÊNERO X TERCEIRA IDADE
Para falar do gênero (in)visível na terceira idade, deve-se antes de tudo,
conceituar gênero, que não significa apenas as diferenças biológicas entre os
sexos masculino e feminino, mas sobretudo, representa os valores e os papéis
sociais e culturais que os homens e mulheres têm na sociedade. Para Louro(9)
gênero não pretende significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto o sexo se
refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está ligado à sua
construção social como sujeito masculino ou feminino. O gênero é mais do que
uma identidade aprendida, sendo constituído e instituído pelas múltiplas
instâncias e relações sociais, pelas instituições, símbolos, formas de
organização social, discursos e doutrinas. Pensando assim, devemos entender que
essas diversas instâncias sociais são instituídas pelos gêneros e também os
instituem; elas são generificadas(9).
Neste sentido vale ressaltar os estudos de Motta(10) e Debert(11), nos quais a
identidade de gênero parece ser realmente, constitutiva da identidade
(geracional) de idosas. As trajetórias sociais de gênero vêm demonstrando ser
determinantes, na situação real e nos sentimentos dessas pessoas idosas,
ultrapassando, não raro, a diversidade de situação de classe, quando homens e
mulheres vêem-se colocados, diferencialmente, quanto às possibilidades e os
sentimentos de bem-estar, liberdade e auto-realização na velhice.
No processo do envelhecimento feminino, os dados mostram que, em 1980, havia em
escala mundial, três homens de 65 anos e mais para cada quatro mulheres,
relação que se mostra ainda mais forte nos países desenvolvidos, em razão do
grande número de homens mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Na verdade,
Peixoto(12) refere que quanto mais a idade aumenta, mais as mulheres são
numerosas; o envelhecimento passa a ser um fenômeno que se conjuga, antes de
tudo, no feminino.
Diferentes expectativas sociais nortearam, então, a trajetória desses homens e
mulheres de mais idade. E com tal intensidade, que os diferenciais de gênero
obscurecem ou ultrapassam, com freqüência, as diferenças de classe desses
velhos e velhas de hoje. Também é por isso que, a categoria gênero assume uma
grande importância nos estudos e análises da Terceira Idade, visto ser uma
possibilidade de clarificação porque este grupo social é limitado a grupo
etário por autoridades governamentais, profissionais de saúde e pela própria
sociedade.
Nesse dinâmico processo de mudança do ciclo vital na estrutura demográfica,
econômica, política, enfim, na maneira de viver e de estabelecer relações
sociais, Gomes(13) considera que pelo menos três mudanças são especialmente
relevantes para lançar luz sobre os novos papéis sociais do/a velho/a na
atualidade e suas novas formas de sociabilidade: mudanças na estrutura etária
da população, na sócio-econômica e nos papéis dos sexos/gêneros.
No tocante as condições de saúde a mulher também é atingida de forma
diferenciada do homem, e em muitas destas doenças se evidenciam as questões de
gênero como fundamentais em sua determinação, a exemplo disto, a depressão de
maior ocorrência entre as mulheres, na grande maioria das vezes desencadeada a
partir de conflitos das relações sociais entre homens e mulheres.
A análise conclusiva feita por Fajardo(14) retrata a realidade das mulheres na
terceira idade caracterizada pela vulnerabilidade física e econômica na
sociedade. Essa caracterização deve-se a três fatores: primeiro, por sua maior
morbidade, resultante de diferenças fisiológicas que se vêem agravadas pelo
efeito acumulado da desnutrição, as gestações contínuas, o desgaste físico e
psicológico de uma "dupla jornada" (doméstica e trabalhista), e sua
subordinação social e econômica. Segundo, porque esta vulnerabilidade tem
aumentado pela solidão que acompanha a maior longevidade com respeito ao seu
parceiro. E terceiro, por seu menor acesso às prestações de serviço de
seguridade social e de saúde, devido a sua posição desvantajosa no mercado de
trabalho durante a idade ativa, isto é, as menores taxas de emprego,
particularmente no setor formal da economia, sua participação trabalhista
intermitente por causa da maternidade, e sua menor remuneração.
Esses dados, na perspectiva Latino-Americana, se retratam também no Brasil.
Para agravar o quadro de saúde da mulher na terceira idade, no país, a situação
apresenta-se contraditória: os Programas Nacionais de Saúde da Mulher, como o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher PAISM(15), não contemplam
ações assistenciais dirigidas à mulher idosa e os recentes Programas de
Assistência aos Idosos não prestam assistência específica à Mulher;
desconhecendo assim, a questão de gênero na terceira idade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a discussão dos resultados do levantamento da produção científica de
enfermagem referente ao idoso no CD-ROM do CEPEn(1) no período de 1979 a 1999,
evidenciou-se que a mulher na terceira idade aparece como sujeito de poucos
estudos, além do mais, os enfoques e os objetos destas investigações se afastam
fortemente das questões de gênero, demonstrando-se o aspecto assexuado da
velhice, além da negação dos papéis sociais impostos à mulher, independente da
idade, classe social, etnia e religião.
Articulando estas análises sobre a produção intelectual em enfermagem,
referente à terceira idade, com as reflexões feitas por estudos contemporâneos
de feministas e pesquisadoras das ciências sociais e antropológicas, percebe-se
a necessidade e a demanda de problemas a serem investigados pela enfermagem com
a utilização de referenciais inovadores capazes enfocar o ser humano de maneira
integral, tendo também como base suas vertentes sociais, culturais e
psicológicas.
Desta forma se reverte de grande importância e relevância, a produção de um
conhecimento que venham contribuir para reorientar a prática de ensino e
assistencial na área de enfermagem a população idosa, principalmente a
feminina, é o grupo populacional que mais cresce no Brasil e no Mundo e também
o que apresenta a maior demanda de problemas sociais e de saúde, exigindo
portanto, uma formação de recursos humanos para saúde, principalmente, na
enfermagem capaz de desenvolver a atenção integral à saúde.
E assim possibilitar aproximações e articulações com aspectos importantes
decorrentes das mudanças nos papéis dos sexos/gêneros ocorridos, segundo Gomes
(13), nas últimas décadas. Tais mudanças têm alterado o modo de vida e o
comportamento das pessoas também de mais idade, sobretudo das mulheres idosas,
à medida que são elas as principais responsáveis pela reconstrução da velhice
em nossa sociedade, abrindo espaço para novos processos de sociabilidade,
ficando evidente a necessidade de profissionais e pesquisadores visualizarem as
questões de gênero em seus estudos por serem determinantes das condições de
cidadania e da qualidade de vida na terceira idade.