Estratégias gerencias na implantação do Programa de Saúde da Família
PESQUISA
Estratégias gerencias na implantação do Programa de Saúde da Família
Managerial strategies in the implantation of Family Health Program
Estrategias gerenciales en la implantación del Programa Salud de la Familia
Mônica Aguilar Estevam DiasI; Fátima Teresinha Scarparo CunhaII; Wellington
Mendonça de AmorimIII
IEnfermeira Residente da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto (EEAP/UNIRIO).
monicaguilar@click21.com.br
IIDoutora em Saúde Coletiva. Professora Adjunto da EEAP/UNIRIO.
fscarparo@openlink.com.br
IIIMestre em Enfermagem. Professor Assistente da EEAP/UNIRIO.
amorim.w@bol.com.br
1. INTRODUÇÃO
A priorização do Programa Saúde da Família (PSF) pelo Ministério da Saúde faz
parte da estratégia de reorganização da atenção básica e do modelo assistencial
preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O PSF incorpora e reafirma os
princípios do SUS - universalização do acesso, descentralização da gestão,
integralidade e eqüidade da atenção e participação da comunidade, demonstrando
potencial para contribuir na construção de um modelo de saúde resolutivo e
integral em municípios de pequeno e médio porte. O desafio atual é estender
essa potencialidade às capitais e cidades de grande porte, acima de 100.000
habitantes.
Assim como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS, o PSF foi
formulado a partir de experiências oriundas de outros países e incorporadas
pelo governo brasileiro, adequando-as à nossa realidade. Uma década após a
criação do Programa Saúde da Família, encontra-se implantado em mais da metade
dos municípios brasileiros e em todos os estados do Brasil.
O PSF surgiu em março de 1994, sendo apresentado como a estratégia capaz de
provocar as seguintesmudanças: a) romper com o comportamento passivo das
unidades básicas; 2) estender as ações de saúde para junto da comunidade.
O real significado é a substituição da lógica da demanda espontânea pela ação
programática. A equipe de saúde da família assume o desafio da atenção contínua
e pautada nos princípios da promoção da saúde e prevenção da doença.
A proposta do PSF requer uma ampla transformação no sistema de atenção à saúde,
o que implica na ruptura da dicotomia entre as ações de saúde coletiva e de
atenção médica individual. Entendemos que, para alcançar tal transformação se
faz necessário ofertar ações de saúde de forma eficaz e eficiente, mas também
de forma mais humana; ou seja, é necessário mudar o processo de trabalho em
saúde. Mudança esta que beneficia tanto o cidadão usuário do sistema, como o
profissional de saúde. Analisar a atenção integral à saúde significa observar
em cada pessoa sua individualidade, suas necessidades específicas, ampliando
assim as possibilidades do sujeito de exercer sua autonomia(1).
O Programa Saúde da Família possibilita amplo acesso aos serviços de saúde e
atenção integral, adequado às necessidades individuais e coletivas, com
qualidade e resolutividade, para todos os brasileiros(2).
O predomínio da expansão do PSF em municípios pequenos e médios justifica-se
pelo modelo de incentivo financeiro que favorece os municípios com cobertura
igual ou superior a 50%. O atual desafio do Ministério da Saúde é estender esta
cobertura aos grandes centros urbanos, em especial, às principais capitais do
país.
Com o propósito de investigar os aspectos relacionados à expansão do PSF no
município do Rio de Janeiro, uma capital com aproxima-damente 6 milhões de
habitantes e complexa rede de serviços de saúde, selecionamos para nosso estudo
a sua implantação na Área Programática 5.3 (A.P. 5.3), localizada na zona oeste
do município. O ponto de partida reside nas atividades acadêmicas desenvolvidas
na disciplina Estágio Curricular da Atenção à Saúde Coletiva, sub-área de
Gerência da Atenção à Saúde Coletiva, do Curso de Graduação em Enfermagem, da
Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO).
Estudar a atuação gerencial do Enfermeiro/a e as características necessárias
para o sucesso da expansão do PSF nesta área, com uma combinação onde predomina
uma ampla rede básica de saúde, comunidades extremamente carentes e extensos
vazios sanitários foram fatores relevantes para a escolha da comunidade.
Apesar dos bons resultados com as experiências piloto do programa no município,
a expansão só começou a ser efetivada em 1999 quando a SMS/RJ decidiu
ampliar este modelo de assistência. A seleção das áreas obedeceu a diversos
critérios, destacando-se a demanda das organizações comunitárias, solicitando
serviços de saúde, em especial, em áreas desprovidas de assistência.
O estudo se limita a uma comunidade, cujo nome fictício será Esperança, onde
estão sendo implantadas 8 equipes, correspondendo ao maior número de equipes de
Saúde da Família em uma mesma comunidade na AP 5.3.
Os outros critérios de escolha de Esperança se basearam no número de equipes de
saúde da família, o maior comparado com outras comunidades; na conversão de uma
unidade básica em módulo de saúde da família, situada geograficamente no centro
da comunidade; e na constante violência sofrida pelos moradores na disputa pelo
poder do tráfico.
Levando em consideração que o sucesso do PSF depende, em grande parte, das
estratégias de implantação utilizadas e dos profissionais envolvidos neste
processo, que se tornam atores sociais-chave, surgiram os seguintes
questionamentos: 1) quais as estratégias utilizadas na implantação de equipes
do Programa Saúde da Família em uma comunidade localizada numa região
considerada um vazio sanitário?; 2) Como o enfermeiro está inserido na
coordenação do processo de implantação do PSF nesta comunidade?
O objeto do estudo foi o processo de implantação de equipes do Programa Saúde
da Família em uma comunidade no bairro de Santa Cruz, no município do Rio de
Janeiro, caracterizado por exclusão social, violência e práticas públicas de
saúde parcializadas.
Nossos objetivos buscaram identificar as estratégias utilizadas pela gerência
local na implantação do PSF nesta comunidade; descrever os mecanismos de
participação comunitária no processo de implantação e analisar a inserção do
Enfermeiro/a na coordenação desse processo.
2. METODOLOGIA
É uma pesquisa descritiva, de natureza qualitativa, do tipo estudo de caso com
o objetivo de descrever as características de determinada população ou fenômeno
(3). Os sujeitos do estudo foram o supervisor operacional do PSF, o coordenador
da CAP 5.3 e o presidente do Conselho Distrital de Saúde da AP 5.3. A coleta de
dados foi realizada através de três instrumentos, cada um específico para cada
sujeito. Foi elaborada uma entrevista piloto, a qual foi realizada com o
supervisor operacional do PSF. Uma vez que esta contemplou um dos objetivos,
prosseguimos às seguintes, por meio de entrevistas semi-estruturadas. Após
serem transcritas, foram devolvidas para que os entrevistados revisassem suas
falas. Por se tratar de uma pesquisa envolvendo seres humanos, obedeceu aos
requisitos da Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.
A pesquisa de um ou poucos casos fornece base frágil para a generalização, mas
o propósito do delineamento como estudo de caso é o de identificar possíveis
fatores que influenciaram no processo gerencial de implantação do PSF nesta
área.
Estamos nos referindo às estratégias gerenciais que permitam uma transformação
no processo de trabalho, visando assegurar a integralidade da atenção e a
responsabilização dos profissionais para com a saúde dos usuários. Consideramos
que a equipe selecionada para gerenciar o processo de implantação do PSF deve
estudar aspectos relacionados às necessidades de saúde dos usuários/cidadãos,
aos recursos humanos, bem como as características geográficas e epidemiológicas
da comunidade abrangida pelo programa.
3. RESULTADOS
3.1 Caracterização da área de estudo
A investigação é resultado de reflexões iniciadas na Coordenação de Área de
Planejamento (CAP) da AP 5.3, uma das dez áreas que compõe a divisão do
município do Rio de Janeiro e compreende os bairros de Santa Cruz, Sepetiba e
Paciência, com uma população em torno de 340.000 habitantes(4).
O interesse em estudar este tema se dá, especialmente, pela caracterização da
Área Programática 5.3, que conta com quinze unidades públicas de saúde, sendo
quatorze destinadas à atenção básica no modelo assistencial piramidal do SUS,
com gerência municipal, e um hospital geral com gerência estadual.
Como estratégia facilitadora da implantação das equipes de Saúde da Família na
zona oeste do município, a SMS/RJ realizou convênio com uma congregação de
faculdades particulares, localizadas nesta área da cidade. Os recursos
financeiros são repassados para as faculdades, que se responsabilizam pela
locação e adequação dos imóveis que sediarão os módulos assistenciais do
programa e pela seleção e treinamento dos profissionais de saúde que atuarão
nestes módulos.
Segundo dados colhidos na CAP 5.3a, esta AP apresenta características
desfavoráveis em relação às outras áreas da cidade, tais como:
• nos anos 70 teve início um processo de remoção de moradores de favelas da
zona sul para os chamados conjuntos habitacionais ou abrigos provisórios;
• área sujeita a inundações devido às condições topográficas de altitude baixa
em relação ao nível do mar;
• 1406 logradouros e 38 conjuntos habitacionais;
• os três bairros da AP 5.3 (Santa Cruz, Sepetiba e Paciência) apresentam
crescimento populacional anual acima da média de crescimento anual de todo o
município, mesmo sendo a área mais distante da região central.
De acordo com as informações evidenciadas, esta área encontra-se bastante
afetada pelo descaso político e social, situação agravada principalmente pela
ocupação desordenada e desenfreada.
Esperança é uma comunidade que apresenta conformação de um círculo. Ela tem
três vias principais de acesso e uma unidade básica na região central. Ao
realizar o planejamento, pensou-se em colocar as equipes de saúde do seguinte
modo: quatro equipes na unidade central, duas equipes próximas a uma das vias e
outras duas próximas a outra via de acesso.
Comunidades como a de Esperança, são estigmatizadas e situam-se na base do
sistema hierárquico de regiões que compõem uma metrópole, nas quais a
marginalidade reside e os problemas sociais agregam-se, atraindo a atenção
desigual e negativa da mídia, dos políticos e dos governos. Estes territórios
são conhecidos como "regiões-problema", porque têm ou se crê que tenham excesso
de crime, de violência, de vício, caracterizando-se como de forte
desestruturação social.
3.2 Condições sócio-econômicas do vazio sanitário
A comunidade estudada se caracteriza pela presença de grupos populacionais de
risco social. O somatório de pobreza e falta de oportunidades, estreitamente
relacionadas entre si, resulta em uma comunidade caracterizada pela segregação
social e urbana, falta de coesão, alta taxa de desemprego, falta de serviços
públicos essenciais, com pouco acesso e baixa qualidade de políticas de
educação, saúde e saneamento, além da submissão ao crime organizado e
violência.
É neste contexto perverso que o consumo de drogas tem crescido grandemente
entre as parcelas mais pobres da população no Brasil e em particular, nas
capitais mais desenvolvidas, muito afetadas pelas falhas da escola e do mercado
de trabalho, alimentados pela falta de esperanças e de perspectivas para o
futuro. O sofrimento e a desesperança estão por demais presentes na vida dos
seus moradores, expostos a precárias condições de vida.
A pobreza é um comparativo conceitual e sua qualidade relativa aos outros gira
em torno da desigualdade social(5). Consideramos que esta pobreza seja
resultante, em parte, de políticas públicas que provocam privações materiais e
exclusões sociais. Oferecendo-lhes mais saúde, haverá oportunidade do exercício
da cidadania, participação e interação com a sociedade civil e o poder público.
Deste modo, os cidadãos podem vir a transformar a estrutura econômica, social e
cultural de suas comunidades e ganhar em qualidade de vida.
A atenção primária passa a servir como porta de entrada para o sistema de saúde
e deve resolver uma gama de necessidades que sobrepõe a esfera da intervenção
curativa individual. É o que chamamos necessidades básicas de saúde(6).
A principal inquietação na expansão do PSF em Esperança foi a presença da
violência como influenciador da relação profissional de saúde-usuário no PSF. A
violência influencia não somente o indivíduo, mas também sua família, afetando
intimamente os laços afetivos, desestruturando-a de forma expressiva. A
valorização da família está fortemente representada nas classes populares,
sendo resultante do modo como os trabalhadores vivem sua condição de classe
social menos favorecida, com seus desejos, projetos e limites e não produto da
imposição de valores próprios de outras categorias e classes(7). Considera-se a
família como espaço centralizador da agregação dos indivíduos, elemento
fundamental no contexto social, devendo ser objeto prioritário e de focalização
do cuidado.
3.3 O papel do enfermeiro na gerência do PSF
Dentre os profissionais envolvidos no estudo, dois enfermeiros são diretamente
responsáveis pela implantação do PSF na área, o supervisor operacional do PSF e
o coordenador da Área Programática 5.3. Está incluso também na relação de
atores sociais significantes, o presidente do Conselho Distrital de Saúde.
Os conselhos atuam na formulação de estratégias e no controle da execução das
políticas de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros(8). Através
destes órgãos, a comunidade pode reivindicar prioridades e fornecer subsídios
aos gestores do sistema.
Apesar da variedade de categorias profissionais nas equipes, um estudo
preliminar de caráter analítico referente à implantação e funcionamento do PSF
no país(9) constatou que a categoria de Enfermeiro se destaca nas coordenações
estaduais de Saúde da Família, representando 40% do total de membros das
equipes, seguido do assistente social, com 24% de representatividade. Este dado
expressa o papel primordial do Enfermeiro/a na capacitação/supervisão dos
agentes comunitários de saúde e na coordenação das equipes de SF.
A Enfermagem é um campo profissional composto de várias categorias
profissionais, comprometida com a saúde do ser humano e com a coletividade,
atuando na promoção, proteção, recuperação e reabilitação das pessoas. O
enfermeiro é um agente de mudanças pois visa encontrar relações entre o homem e
o meio ambiente em seu processo vital(10). Portanto, identificar as
necessidades de saúde na/da comunidade e propiciar canais de comunicação e
participação efetiva são ações estratégicas na atuação do Enfermeiro/a.
Este novo modo de organizar a atenção à saúde constitui um estímulo desafiador
para o Enfermeiro, que deve levar em consideração o envolvimento, no seu agir,
com os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais relevantes para o
processo de transição, consolidação e expansão do PSF.
Para participar do processo de implantação, torna-se necessário conhecer o
espaço geográfico e social no qual as famílias se inserem e os principais
agravos de saúde que vivenciam; ou seja, é preciso conhecer o perfil
epidemiológico e social da área delimitada. Nesta perspectiva, o Enfermeiro
gerente do PSF deve enfocar os problemas de saúde da população numa concepção
de melhoria das condições de vida. Pesquisar as estratégias deste processo nos
traz conhecimento acerca da atuação de profissionais enfermeiros-gerentes,
sobre a capacidade de administrar os fatores que influenciam na organização da
atenção à saúde, principalmente com uma visão a médio e longo prazo.
3.4. A reorganização do modelo assistencial: o PSF e seu potencial desafiador
Para contemplar os principais objetivos do SUS, é necessária a oferta de uma
atenção básica capaz de promover e realizar ações de saúde coletiva, atendendo
tanto a demanda espontânea quanto programada. Demanda refere-se a `tradução' de
necessidades mais complexas do usuário, ao seu pedido explícito. Na verdade,
são as necessidades moldadas pela oferta que os serviços trazem(11).
A atenção básica encontra-se em permanente organização a partir da concepção de
que, para modificar aspectos condicionantes do processo saúde-doença, é preciso
olhar o indivíduo como constituinte de uma unidade por vezes indivisível,
especialmente se tratando de atenção primária, ou seja, de uma unidade
denominada família. Assim, a atenção à unidade família passa a ser um
importante objeto das práticas de saúde, enfatizada justamente no PSF.
O PSF parece ter se tornado unanimidade nacional, referida como a principal
estratégia para solucionar os males da saúde pública seja no universo político-
partidário das corporações profissionais da saúde, no setor de formação em
saúde e na própria comunidade(12).
Esse novo modelo, idealizador ou prático, está inovando na maneira de atender
mais sensível e "calorosamente" o usuário de seus serviços. Justifica-se a
afirmação do autor pelo fato de que o programa, nas grandes cidades, é
prioritariamente implantado em comunidades inteiramente desprovidas de qualquer
atenção à saúde e com péssimas condições de vida. Geralmente estas comunidades
apresentam altos índices de desemprego, analfabetismo e violência. Sua
implantação surge como meio de solucionar os fatores que interferem na saúde
pois realiza a promoção da saúde através da intersetorialidade.
Nesse sentido, o sujeito 1 afirma que as questões que a saúde não consegue
resolver são "renda, saneamento básico, transporte, habitação, coisas que
(...), mesmo trabalhando com a intersetorialidade, trabalhando com as outras
secretarias, são muito difíceis de resolver".
Neste contexto de carências e exclusão, a intersetorialidade ganha relevância,
seja através de ações de geração de empregos, de educação formal, ou ainda, na
questão da violência, através do conhecimento do perfil da clientela adscrita
ao módulo de Saúde da Família:
Os agentes comunitários são próprios da comunidade e fica mais fácil
de detectar os problemas. Muitas vezes este problema não é ligado à
medicina, mas é um problema social. Nós, as autoridades, teremos um
acesso rápido a estas informações para tentar resolver. Saneamento
básico é uma delas. Normalmente dentro do gabinete, sem ver a
realidade, você não atende esta demanda(D3).
A intersetorialidade configura modificações muito mais abrangentes que a
capacidade de intervenção das equipes, por mais comprometidas e qualificadas
que sejam. Outro princípio fundamental é a integralidade da atenção à saúde.
Ao conceituar integralidade sob a ótica das necessidades de saúde: "a
integralidade deve ser fruto do esforço e confluência dos vários saberes de uma
equipe multiprofissional, no espaço concreto e singular dos serviços de saúde,
sejam eles uma equipe de Programa Saúde da Família ou um hospital"(11). Esta
seria a integralidade "focalizada". No entanto, ressalta que uma outra dimensão
da integralidade da atenção surge a partir da articulação de cada serviço de
saúde, "uma rede muito mais complexa composta por outros serviços de saúde e
outras instituições não necessariamente no setor saúde"(11). Esta visão sobre
integralidade deve constituir um esforço intersetorial que vise a melhoria das
condições de vida.
Dentre os princípios e diretrizes que serão contemplados com o SUS na
implantação do PSF, destaca-se "...principalmente a integralidade,
porque vão passar a dar atendimento integral" (D1).
Tal fala contradiz ambos os discursos a seguir sobre os fluxos de
referência e contra-referência, que não caracterizam uma rede na AP
5.3: "Tem a questão dos exames, da referência; se não tem para onde
encaminhar esses exames, especialidades, o programa não dará certo"
(D3).
A gente vai ter que lidar com uma questão que é muito complicada que
é a referência. A gente consegue com o programa 80% de resolutividade
e 20% a gente tem que encaminhar. Enquanto tiver que encaminhar, tem
dificuldade porque a área não tem tantos recursos de especialidades.
Os recursos que tem no município do Rio de Janeiro são muito longe
daqui, então a gente não consegue referenciar (D2).
Refletindo sobre o processo de trabalho dos profissionais do PSF, torna-se
insubstituível a criação de vínculos efetivos entre usuário/família e os
membros da equipe multiprofissional, estabelecendo-se uma relação de confiança
e empatia(11). O profissional, seja em qualquer nível de atenção, deve dar
ouvidos não somente às necessidades apresentadas, como também aos sinais não
expressos verbalmente.
A partir desta etapa, a gerência local, componente de um sistema regionalizado
e hierarquizado, deve trabalhar para que cada instituição de saúde funcione
como uma rede(11).
Para ocorrer a implantação do PSF, é preciso que haja um comprometimento por
parte da gestão local e que esta funcione como elemento articulador da atenção
básica e dos demais níveis de atenção, a fim de transformar o modelo
assistencial tradicional. A gerência atua na organização do processo de
trabalho em saúde, tornando a oferta de assistência mais qualificada, na busca
da atenção integral à saúde(13).
O processo de implantação do PSF vem sendo gerenciado, a nível local, pelo
coordenador da AP 5.3 e pelo supervisor operacional do PSF. Este cargo foi
criado para supervisionar a equipe multiprofissional de apoio técnico e
representar o gestor local, a SMS-RJ. A estratégia utilizada por esta CAP
constitui uma replicação da experiência de implantação em outra comunidade da
AP 5.3:
Esta organização já vem desde 2000, quando nós organizamos, (...) o
PSF de Antares. A partir daí, o processo de expansão foi um processo
natural que as estruturas já estavam montadas. A gente só esta dando
seguimento a proposta inicial (D1).
Quanto às indicações para supervisores operacionais:
Os supervisores operacionais foram escolhidos pela coordenação, não
passaram por uma seleção. São pessoas que reconhecidamente já
trabalharam com o programa ou que tinham alguma afinidade com o
programa e que eram de confiança da coordenação, que foram chamados
(D2).
Quanto a atuação do supervisor:
Atualmente fica na parte administração da implantação, onde este
procura imóveis para alocar as equipes que vão trabalhar, conversa
com as associações de moradores (entidades locais) sobre a
implantação do programa, orienta os profissionais sobre como eles vão
atuar no programa, realiza o treinamento, conversa com as unidades
básicas que vão servir de referência para as equipes trabalharem esta
referência. O grupo de apoio técnico oferece apoio as equipes..
Trabalha também avaliando os indicadores (SIAB)... (D2).
O sujeito 2, apesar de caracterizar sua função como administrativa, trabalha
com questões políticas, de capacitação, de planejamento e gerência do processo
de trabalho das equipes, que ultrapassam os limites administrativos
tradicionais. A política de recursos humanos para esta área da cidade enfrenta
grandes problemas, como na seguinte afirmação:
Tem que haver uma condição de garantir essa política de fixação de
pessoal, principalmente a de nível superior. Essa política não pode
ser feita igual se faz em toda a cidade do Rio de Janeiro. Porque
aqui na região , além de difícil acesso tem a questão do risco pelo
poder paralelo...(D3).
As dificuldades na fixação de profissionais de saúde nesta área da cidade
residem na grande distância da região central do município do Rio de Janeiro e
no convívio constante com a violência com influente poder paralelo. O poder
paralelo dos traficantes de drogas ilícitas influi no trabalho das equipes
causando certo receio ao grupo de apoio técnico, como identificado abaixo:
Nós iremos trabalhar em uma comunidade onde há tráfico de drogas.
Onde pode andar, onde não pode, tiroteio. Então vamos ter dificuldade
na lotação e fixação de profissional.. Há uma questão também política
porque você entra numa comunidade com um programa como este e às
vezes as pessoas ligadas a movimentos comunitários tentam se
apropriar do programa como se fossem elas que tivessem levado e
tentam influenciar na contratação de agentes comunitários (D2).
A autonomia local poderá ser construída com a definição de políticas e ações
que dêem garantias de condições adequadas de trabalho para os profissionais e
promovam a democracia através da participação comunitária. Se a clientela
confia na gerência local, legitima-se a autonomia com a implementação de ações
voltadas para o coletivo.
A respeito do estudo sobre municipalização da saúde no Brasil, para realizar a
municipalização dos serviços de saúde e das políticas públicas que condicionam
a saúde é fundamental que se aumente a capacidade de decisão local, a
autonomia, bem como o controle e a participação social, representando assim uma
efetiva distribuição de poder(14).
O controle social está na Lei 8142/1990, que regulamenta a participação popular
através dos conselhos de saúde e das conferências de saúde. É através dos
conselhos de saúde que a comunidade pode agir no sentido de duas outras
possibilidades de participação e reivindicação: fornecimento de subsídios às
autoridades gestoras do sistema e preposição de medidas de interesse da
coletividade.
As implicações da implantação do PSF na comunidade são, na opinião do
depoimento que se segue:
Haverá uma modificação na forma como a comunidade irá lidar com o
serviço de saúde. Uma modificação na relação que as pessoas irão ter
com o serviço de saúde e, conseqüentemente, aumentarão os vínculos e
o trabalho de co-responsabilidade entre os moradores e os
profissionais de saúde (D1).
Sobre a percepção dos usuários, informa o sujeito 3 que "A posição do usuário
hoje é o que ele está vendo. Primeiro, a implantação aqui está muito lenta. Nós
já temos quatro meses com as casas alugadas e ainda não estamos vendo obras.
Então o usuário esta naquela, querendo ver para crer".
A participação popular possibilita ao usuário acompanhar e fiscalizar as
políticas de saúde, constituindo uma forma de controle social permanente. O
conceito de gerência local deve estar associado aos termos qualidade dos
serviços de saúde e participação dos cidadãos, através do controle social(13).
A participação da comunidade estimula uma maior responsabilidade por parte dos
profissionais e do gerente pois, no momento em que os usuários reconhecem que
têm direitos, há uma maior cobrança para que se qualifiquem as políticas de
saúde. A relação entre o Estado e a sociedade é ressaltada com a afirmação de
que "as decisões do Estado sobre o que fazer na saúde terão que ser negociadas
com os representantes da sociedade, uma vez que são eles os que melhor conhecem
a realidade de saúde das comunidades"(13).
Por questões políticas, algumas representações comunitárias tentam se "apoderar
do programa", tentando influenciar na contratação de agentes comunitários de
saúde:
Estas representações no Conselho Distrital de Saúde tem essa
característica São pessoas expoentes na comunidade mas não são
lideres, não lideram ninguém. Eles aparecem, colocam-se como
liderança, mas não são lideranças. Também trabalham nesta lógica do
proveito, querem tirar alguma vantagem... Então, é a turma do quanto
pior, melhor... Antes de não ter o programa, o problema é que não
tinha o programa. Agora que tem o programa, o problema é que não vai
dar certo... Se não tem o programa, porque não ter o programa. Se tem
o programa, eles não foram consultados. Se eles foram consultados,
eles não concordaram (D2).
Ao analisar a atuação do enfermeiro na gerência, obtemos o depoimento abaixo:
Quando você vai trabalhar com saúde da família, você lida muito com
tomada de decisão e a formação de enfermeiro ajuda muito nisso...
Isto vai reforçando, dentro de profissionais de outras áreas essa
característica do enfermeiro de ter essa visão de organização, de
planejamento, de liderança; embora eu acredite que nem todo
enfermeiro tenha essa vocação (D2).
Dentre as dificuldades de organização do trabalho em saúde coletiva pelo
Enfermeiro, o predomínio na atenção individual é central nos vários cursos de
formação(12). Isso é ressaltado no seguinte relato sobre o principal
diferencial do Enfermeiro em relação às outras categorias profissionais:
Cada profissional tem um conhecimento voltado para a sua área
especifica, especialista; o enfermeiro não, ele tem uma visão do
todo. Até porque, lida com muita gente, então ele acaba tendo uma
visão maior do todo. A ação que você vai fazer não vai ter efeito
numa pessoa só. Ela vai fazer efeito numa comunidade inteira, onde
tem toda uma visão gerencial(D2).
O espaço conquistado pelo Enfermeiro/a na gerência do PSF é comentado:
O Enfermeiro conquista este espaço pela sua visão, pela sua
competência, mas não só por isso, conquista também porque ninguém
quer fazer. As pessoas vão deixando esses espaços vagos e que se a
gente não tomar conta alguém vai tomar, como os administradores de
saúde, os sanitaristas, administradores de PSF, os gestores. Então o
Enfermeiro perde mais um espaço (D2).
Uma outra dificuldade do Enfermeiro na organização do trabalho em saúde
coletiva é a ausência de planejamento gerencial voltado para a integralidade da
atenção(12). A capacitação apresenta-se como diferencial para profissionais que
almejam aperfeiçoamento sobre questões específicas do gerenciamento do Programa
Saúde da Família. O sujeito 1 informa: "Eu fiz curso de pós-graduação da saúde
da família para aumentar minha visão em relação ao programa em si".
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que transformações ocorram no nível local, torna-se necessário assegurar a
integralidade da atenção. Para materializar este princípio, a gerência local
precisa trabalhar na visão de uma rede de serviços entrelaçada e horizontal,
que atenda as necessidades de saúde não apenas em um dado momento, mas que
garanta o acesso igualitário a todos os níveis de complexidade da atenção à
saúde.
O Programa Saúde da Família não pode ser limitado. Nesse caso, falamos de uma
atenção parcializada, quando o direito à saúde é restrito a um nível da atenção
à saúde. Não há como referenciá-lo para os níveis de maior complexidade
tecnológica. Nessa situação, as chances de sucesso desta estratégia diminuem
significativamente, pois o problema está na garantia dos princípios de
universalidade do acesso, integralidade e eqüidade da atenção.
É fundamental realizar investimentos numa política diferenciada para a
contratação e fixação de recursos humanos para a área programática 5.3. É
preciso, ainda, que haja recursos e idéias inovadoras na rede de referência e
contra-referência na rede, como um todo, que deve adequar-se à realidade local.
Assim, deve-se buscar novos paradigmas que envolvam modificações de atitudes,
de estruturas organizacionais e de poderes.
Frente as diversidades nos avanços e recuos do modo de gerenciar equipes,
programas e sistemas, o Enfermeiro/a apresenta ampla e profunda percepção das
necessidades de garantia de acesso universal e da qualidade da assistência.
Isso assegura uma bagagem de conhecimentos gerenciais que valoriza a decisão
democrática, o trabalho em equipe e a posição das lideranças comunitárias.
Concluímos, com este estudo, que a prática gerencial enfrenta constantemente
obstáculos sociais, políticos e econômicos que extrapolam os atributos
meramente administrativos formalizados na função do gerente.
Inegavelmente nos deparamos com uma área ilegalmente ocupada, localizada em uma
metrópole, pressionada pelas cidades circunvizinhas e tomada pela violência.
Estas características apenas nos dão uma visão dos obstáculos gerenciais a
serem ultrapassados para obtenção de serviços de saúde integrais.
Consideramos que, somente através de estudos da realidade social e sanitária de
cada área de uma grande cidade, marcada pela heterogeneidade e desigualdade,
possa desestruturar o modelo existente e reestruturar um novo modo de implantar
e consolidar o Programa Saúde da Família efetivamente resolutivo, nos vazios
sanitários das grandes cidades.