Aborto espontâneo e provocado: sentimentos vivenciados pelos homens
PESQUISA
Aborto espontâneo e provocado: sentimentos vivenciados pelos homens
Spontaneous and induced abortion: feelings experienced by men
Aborto espontáneo y inducido: sentimientos vivenciados por hombres
Márcia Melo Laet RodriguesI; Luiza Akiko Komura HogaII
IMestre em Enfermagem. Enfermeira Obstétrica do Hospital Universitário da
Universidade de São Paulo. marcialaet@ig.com.br
IILivre-Docente em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de
Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da
Universidade de São Paulo. kikatuca@usp.br
1. INTRODUÇÃO
O aborto é um tema relevante na agenda internacional e suas várias perspectivas
motivaram intenso debate na Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento (CIPD), ocorrida na Cidade do Cairo, em 1994, e na Conferência
Internacional da Mulher em Beijing no ano seguinte. Nesses eventos, foram
feitas recomendações direcionadas à inclusão da perspectiva masculina nas
pesquisas e programas do âmbito da saúde sexual, reprodutiva e da mulher(1,2).
Essas recomendações valem sobretudo para o contexto brasileiro visto que no
país há escassez de pesquisas e programas voltados à saúde dos homens.
Recentemente, é possível notar maior incremento da temática relativa às
masculinidades nas publicações científicas do âmbito da saúde reprodutiva. Mas
como profissionais atuantes nessa área, avaliamos que os homens merecem ser
mais considerados, pesquisados e inseridos na assistência e educação.
Vivências masculinas relativas ao aborto também são pouco exploradas, quando o
homem é abordado nas pesquisas dessa temática, ele fica restrito à perspectiva
legal e atitudinal. As conseqüências psicológicas, as crenças, os valores
culturais e a relação de gênero inerente ao tema são escassamente explorados
(3,4). O fato foi constatado também nas publicações da área de enfermagem.
Como seres humanos diretamente envolvidas no processo, os homens são avaliado e
sofrem em decorrência do aborto, tenha sido ele provocado ou espontâneo(4,5). O
conhecimento sobre aos sentimentos vivenciados por homens que compartilham a
experiência do aborto é fundamental aos profissionais de saúde. Esta pesquisa
aborda esta temática e espera-se que seu desenvolvimento contribua para o corpo
de conhecimentos relativo ao tema. São saberes que visam a promover a qualidade
da educação para a saúde, a assistência e o ensino do âmbito da saúde sexual e
reprodutiva.
2. OBJETIVO DO ESTUDO
Conhecer os sentimentos vivenciados por homens que compartilharam a experiência
do aborto com suas parceiras.
3. METODOLOGIA
Abordagem de pesquisa
Esta investigação foi desenvolvida no paradigma qualitativo, que enfoca a
natureza, a essência, o significado e os atributos do fenômeno estudado(6-8).
Homens que compartilharam a experiência do aborto atribuem-lhe significados de
forma subjetiva e esse processo é permeado por vivências importantes para a
vida do casal e sua família, que devem ser do conhecimento dos profissionais de
saúde que desejam prestar assistência personalizada e de qualidade. São
vivências pessoais que não podem ser adequadamente exploradas e descritas por
meio da abordagem quantitativa(7).
A análise da narrativa como método de pesquisa e suas etapas
Nessa pesquisa a análise da narrativa foi o método desenvolvido e sua principal
prerrogativa é a compreensão da experiência na perspectiva do próprio sujeito.
Assim, cabe ao pesquisador apreender e descrever a experiência, tal como ela é
vivida e narrada pelas pessoas. Busca-se, portanto, preservar todas as nuanças
da experiência individual, tal como elas se apresentam(9).
As cinco etapas previstas no método de análise da narrativa(9) foram obedecidas
e descritas a seguir: A primeira etapa refere-se ao acesso a experiência. No
início foram identificados homens que pertenciam ao círculo social das
pesquisadoras que haviam compartilhado a experiência do aborto. Os
colaboradores, termo utilizado para fazer referência aos sujeitos da pesquisa,
foram indicando os demais. A estratégia possibilitou incluir pessoas com
diversas trajetórias de vida, experiências pessoais, profissões, escolaridade,
entre outras características diversas.
Na etapa seguinte, ouviu-se a experiência masculina. Para tanto, foi necessário
manter a atitude de ouvinte ativo e destinar atenção aos aspectos que poderiam
estar direta ou indiretamente relacionados ao tema em questão. Proporcionou-se
um ambiente favorável a cada colaborador para que ele pudesse contar sua
experiência baseada em sua própria perspectiva. Para preservar esta
prerrogativa, foi apresentada para eles apenas uma questão norteadora, para que
pudessem dar início às suas narrativas. A questão foi: "Fale-me sobre as suas
vivências em relação ao aborto tido pela sua parceira". O termo "parceira" foi
empregado para fazer referência às mulheres com quem os homens compartilharam a
experiência, independente do tipo de relação estabelecida. Perguntas adicionais
foram acrescentadas quando esta necessidade era percebida.
As entrevistas individuais com os 17 homens, nove que haviam compartilhado a
experiência do aborto espontâneo e oito, do aborto provocado ocorreram entre
maio e outubro de 2003 com data, hora e local indicados por eles e duração
entre 20 e 90 min. Alguns escolheram seus domicílios e outros, o local de
trabalho. As entrevistas foram feitas em ambientes privados, sem a presença de
terceiros, com a finalidade de proporcionar liberdade para expressão dos
sentimentos, segundo a perspectiva pessoal.
O montante e a qualidade dos dados determinaram o encerramento das entrevistas
visto o fato do conteúdo e seu detalhamento constituírem os principais
critérios de rigor válidos no método desenvolvido(9). Isso foi alcançado por
volta da nona entrevista, porém, nesta pesquisa foram incluídos 19
colaboradores.
Os itens constantes na Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(10)
foram obedecidos. O projeto de pesquisa foi submetido à apreciação de um Comitê
de Ética em Pesquisa credenciado no Conselho Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP) e aprovado. Todos os colaboradores assinaram, previamente, ao início
das entrevistas dois Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
idênticos, ficando um de posse dos pesquisadores e outro com o entrevistado.
Constavam do termo a autorização para participar da pesquisa, gravação das
entrevistas e utilização dos dados para divulgação no meio científico. Os dados
pessoais dos homens foram registrados em instrumento próprio e o anonimato
deles foi garantido pela substituição de seus nomes próprios por números.
A transcrição integral da narrativa gravada constitui-se na terceira etapa do
método. Nesse trabalho, buscou-se preservar a seqüência original, as perguntas
e os excessos foram excluídos e os erros gramaticais foram corrigidos. Isso fez
com que a narrativa adquirisse a característica de ser predominantemente da
perspectiva do narrador, com o sujeito na primeira pessoa.
Na quarta fase do método, analisou-se o conteúdo do conjunto das narrativas
visando à obtenção de familiaridade com elas. Nessa etapa, foi feita a
identificação preliminar dos sentimentos expressos pelos homens.
Na última fase, foram feitas reiteradas leituras das narrativas para
identificação de todos os sentimentos constantes. A conclusão do trabalho
possibilitou conhecer o universo dos sentimentos vividos pelos colaboradores da
investigação.
4. RESULTADOS
Face à finalidade principal da análise da narrativa, de preservar a perspectiva
do narrador, os sentimentos expressos pelos colaboradores foram apresentados em
itens e aqueles que mencionaram semelhante vivência foram indicados pelos
respectivos números. As nuanças dos sentimentos referidos foram ilustradas por
meio de pequenos trechos extraídos das narrativas.
Os resultados referentes aos colaboradores, que compartilharam da experiência
do aborto expontâneo e provocado, respectivamente foram apresentados, e a
separação foi feita em razão da variação entre os sentimentos dos dois grupos,
embora alguma semelhança tenha existido. As características pessoais dos homens
estão apresentadas no Quadro_1.
Sentimentos relativos ao aborto espontâneo
▪ Tristeza e infelicidade pela perda do filho (1,2,3,4,5,6,7)
"Em relação a minha pessoa, eu fiquei bastante abalado, fiquei triste
por ter perdido um filho" (2)
"É uma perda de um filho, é assim que interpreta. É uma coisa
indescritível, é uma dor, dor real bem profunda" (3)
"Para mim o aborto significou mais uma chance perdida de ter um
filho, que seria uma alegria para mim, se ele viesse normal" (4)
▪ Sofrimento causado pelo abalo emocional, trauma psicológico e
afetivo (1,2,3,6,8)
"Mesmo que seja um feto em formação acho que é há uma ligação. O
impacto é a mesma coisa, a gente fica muito triste, fica realmente
emocionalmente abalado. Afinal é filho, então, realmente fica muito
abalado, isso que eu experimentei" (3)
"Depois que ela perdeu, eu fiquei muito traumatizado e chateado, a
ponto de não querer mais ter filhos" (6)
"Já para o homem, há mais o lado psicológico e afetivo, o trauma é
muito grande, mas não tão grande quanto o dela" (8)
▪ Chateação, decepção e depressão pelo fato de não poder ser pai
(1,6,7,8)
"E, no caso do homem, a preocupação é de não poder ter um filho" (1)
"Depois que ela perdeu, eu fiquei muito chateado. Você fica louco
para ver a carinha dele e não vê. De repente, fiquei quase morto por
dentro de tanta decepção" (6)
"Fiquei deitado meio que depressivo. E, assim, a gente vai tentando
buscar forças novamente para superar a perda de um filho" (8)
▪ Preocupação com a esposa (1, 4, 5, 6, 8,9)
"A minha preocupação era deixar ela saber que isso não iria
influenciar o nosso relacionamento, que não iria mudar nada, que nós
iríamos continuar tentando e se fosse o caso, futuramente, adotar um
filho, não teria problema algum" (1)
"Fiquei preocupado. Além de perder um futuro filho, também tinha as
conseqüências que o aborto poderia trazer para minha mulher como, por
exemplo, problemas de saúde" (4)
▪ Sensação de discriminação pelo fato de ser homem (5,8)
"No caso do aborto sempre o pai fica meio de lado. O homem é
classificado como forte. Então, as pessoas fazem aquele lamento
rápido como se fosse de pena e pronto, essa é a realidade! Mas, o
homem, o pai é discriminado, foi aquele safado que fez, que não
assumiu. Todo homem é meio assim, as pessoas acham que o homem é
aquele canalha e, infelizmente, é isso" (8)
▪ Padecimento em razão da ausência de orientação e apoio psicológico
(5,6,7,8)
"No hospital teve enfermeiros, médicos, mas não tinha um que cuidava
da cabeça, quero dizer, um psicólogo ou alguém instruído para dar
algum apoio pra nós. E achei que precisaria para ela e para mim
também. Principalmente, naquela hora" (6)
"Acho que falta algum apoio nesse sentido. Se fosse dado, pode ser
que o homem brasileiro, pela questão cultural também, ache que seja
frescura, que não precisa, que já sabe que perdeu e que dá para fazer
outro. Mas o homem sofre, ele padece, eu particularmente" (8)
▪ Culpa pela ocorrência do aborto (5,9)
"Acho que talvez eu tenha ficado um pouco com a consciência pesada,
por não ter dado o meu apoio total, 100%. Se isso afetou a gravidez,
não sei dizer. Mas, me senti com a consciência pesada no momento e
após aquela realidade conversei bastante com ela" (9)
▪ Amadurecimento com experiência vivida (8,9)
"Eu acho que esses abortos que ela teve foram muito dolorosos, acho
que a vida nos reservou muito isso, para que nós aprendêssemos e
crescêssemos, porque nós éramos pequenos" (8)
No Quadro_2, são apresentados os dados referentes aos colaboradores que
compartilharam a experiência do aborto provocado.
Sentimentos relativos ao aborto provocado
▪ Sensação de confusão em relação ao ocorrido (12,17)
"Minha mãe também tentou participar, não de uma forma tão intensa,
pois tinha também um certo risco dela não voltar, morrer, acontecer
alguma coisa. Foi muito confuso para mim" (17)
▪ Tristeza e chateação por ter impedido o nascimento de uma criança
(10,11,12,13,17)
"Quando ela me contou que tinha feito o aborto fiquei muito triste e
me senti um pouco culpado, porque tinha uma criança ali com ela, que
hoje seria uma vida, um filho nosso. Eu me sinto arrependido por
isso" (10)
"No momento, após o aborto, ficamos chateados, deu uma certa
tristeza. Porque, na realidade, ninguém quer fazer um aborto, nós
mesmos, não queríamos fazer, fomos obrigados pelo aspecto financeiro"
(12)
▪ Tranqüilidade por saber que o feto ainda não estava formado (12,14)
"Eu perguntei para ela se o nenê já poderia estar formado e ela falou
que não. Que o rapaz que nos vendeu o remédio garantiu que a gravidez
estava no começo e que o nenê não havia se formado ainda, por isso eu
fiquei mais tranqüilo" (12)
▪ Mal-estar após o aborto (10, 12,13,15,17)
"Mas depois do aborto provocado, é como se algo tivesse quebrado
dentro de mim" (15)
"Eu que a levei até a uma clínica, foi até uma mulher meio ruim, aí
tirou, eu me senti muito mal. Porque é muito desgastante e muito ruim
também para o homem" (13)
▪ Culpa e arrependimento (10,11,12,13)
"E, o que eu mais senti, foi arrependimento, eu fiquei muito
chateado, pelo que aconteceu não ser uma coisa certa. Eu jamais
permitiria que isso acontecesse de novo" (10)
"A sensação que eu tive logo depois do aborto, foi de alívio e, ao
mesmo tempo, de culpa, por ter matado um ser humano" (11)
"Como seria ele hoje? Ele estaria com 17 anos. Arrependo-me muito,
fico comparando os meus filhos hoje com aquele que nós fizemos mal"
(13)
▪ Mágoa (10,12,15,17)
"O que aconteceu, o que eu fiz, me magoou muito. Às vezes, acho que
mais a mim do que a ela" (10)
"Porque quando você não quer fazer isso, e acontece esse tipo de
coisa magoa bastante, quer dizer, quando você olha pra pessoa, isso
vem à tona, você lembra de tudo. É uma coisa assim, que se eu a vê,
tanto que quando eu toco nesse assunto, parece que estou vivendo o
momento tudo de novo, apesar de já ter passado tanto tempo" (15)
▪ Preocupação com as condições de saúde da companheira (11,13,14)
"Depois tem que limpar tudo tem que fazer a curetagem, mas dependendo
do lugar pode não dar certo e produzir uma infecção e pode levar até
a morte da mulher" (14)
▪ Mudança dos sentimentos e rompimento com a parceira(11,15)
"Esse aborto interferiu no nosso relacionamento, porque nos abalou
muito. Ela perdeu a confiança em mim e com essa perda de confiança,
eu me desanimei também e isso estragou o nosso relacionamento" (11)
"E pra mim ela conseguiu destruir o sentimento que eu tinha por ela,
que era muito grande. E de repente ela faz isso, ela conseguiu acabar
com uma coisa que pra mim iria ser uma coisa muito bonita, que era
ter um filho" (15)
▪ Ausência do sentimento de responsabilidade em relação ao ocorrido
(12,15,16,17)
"Eu sei que foi uma atitude impensada, uma coisa tão séria que
aconteceu, mas não tenho culpa, não sei se ela tem, na verdade, não
sei de quem é a culpa" (17)
"Não me sinto à vontade de falar sobre isso, penso que não tenho
nenhuma responsabilidade sobre o que aconteceu, porque minha namorada
é maior de idade e responsável pelos seus atos" (16)
"A decisão foi tomada por ela, ela não me pediu, apenas me comunicou.
Eu disse que apoiar não dava, o que eu podia fazer é ficar do lado e
escutar, mas apoiar eu não apóio, porque na hora que ela entrou na
clínica, na hora que ela foi sair do carro, eu falei pra ela: Você
tem certeza do que vai fazer? Então, ela decidiu que iria fazer e
fez" (15)
▪ Tentativa de esquecimento em relação ao ocorrido
(10,12,13,14,15,16)
"Ficou no passado, não procuro ficar pensando nisso, porque se eu for
ficar pensado nisso, eu vou fazer um sentimento de culpa em mim. E o
problema psicológico vem mais quando você tem um sentimento de culpa.
Se tiver sentimento de culpa, é porque alguma coisa está errada, se
tomou a decisão certa e considera como uma decisão certa, não deve
pensar nisso" (14)
"Hoje quando eu paro e penso, é um passado que eu prefiro não mexer,
eu preferiria apagar, mas é uma coisa que você não esquece, porque é
uma coisa muito marcante" (15)
5. DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados ora apresentados refletem os sentimentos vividos por homens que
compartilharam a experiência do aborto espontâneo ou provocado, sofrido pelas
respectivas parceiras. Eles possibilitaram adentrar no "mundo dos sujeitos",
que possuem suas formas particulares de viver a experiência(9).
Os homens referiram aos sentimentos vivenciados e, para tanto, fizeram-no,
segundo várias perspectivas. Observou-se relevância atribuída às condições
pessoais no momento da experiência, assim como às crenças pessoais e valores
familiares e socioculturais. A grosso modo, aqueles que compartilharam do
aborto espontâneo, fizeram referência mais relacionada à angústia da perda e
aqueles do aborto provocado, à culpabilidade diante do ocorrido e suas
conseqüências.
A denúncia feita pelos homens relativa à falta de sensibilidade dos
profissionais de saúde, diante do sofrimento vivido em decorrência do aborto
aponta a necessidade da capacitação adequada desses profissionais para o
atendimento de todos os aspectos envolvidos no processo do aborto. Avalia-se
que o sentimento da perda inerente a essa situação potencializa-se quando a
assistência oferecida pelo serviço de saúde deixa a desejar em termos de
qualidade(11).
Os homens que participaram diretamente do aborto provocado sentiram-se
abalados, sobretudo, no âmbito emocional. Alguns relataram mudança de
sentimento em relação à mulher que acabou resultando no rompimento da relação.
Semelhante ocorrência não foi verificada entre os homens que compartilharam a
experiência do aborto espontâneo. Embora a experiência tenha causado sofrimento
e frustração conforme eles relataram, ela promoveu o amadurecimento e união do
casal.
Experiências profundas, sobretudo, as dramáticas vividas pelos casais podem
provocar impacto sobre a relação entre ambos, fortalecendo ou deteriorando-as.
As mulheres tendem a valorizar seus parceiros quando eles compartilham de suas
vivências difíceis. Conclui-se que o apoio dos parceiros é fundamental porque
as mulheres sentem-se fortalecidas ao compartilhar problemas da esfera sexual e
reprodutiva, não apenas com seus parceiros mas também com suas famílias(11).
Os homens também necessitam compartilhar seus sentimentos e quando não possuem
essa oportunidade, tal condição pode resultar na deterioração ou rompimento do
relacionamento e isso é conseqüente ao prejuízo na comunicação estabelecida
entre o casal(12), fato esse também observado nesta pesquisa.
A ausência de orientação e apoio psicológico no decurso da assistência recebida
nas instituições foi uma queixa referida pelos homens. O fato indica a
necessidade da capacitação adequada dos profissionais no provimento de
acolhimento e suporte aos usuários dos serviços de saúde. Essa assistência
torna-se mais relevante quando se trata do cuidado de pessoas que compartilham
a experiência do aborto, sobretudo porque provoca sofrimento nos envolvidos.
Como profissionais atuantes neste âmbito da assistência, é possível perceber
que nossa atenção tende a se restringir à esfera técnica. Em geral, relegamos a
segundo plano os demais aspectos, inclusive, a atenção que deveríamos destinar
aos acompanhantes das mulheres, sobretudo, os homens que são coadjuvantes da
experiência. Acreditamos que a inclusão desse aspecto e conseqüente atenção aos
homens no processo de cuidar seja uma forma concreta de auxiliá-los a elaborar
a perda, independente do fato do aborto ter sido espontâneo ou provocado.
Consideramos fundamental a capacidade dos profissionais para identificar as
demandas por cuidados da clientela atendida, o que requer um nível profundo de
autoconhecimento por parte dos provedores do cuidado. Partimos da premissa de
que amplos aspectos do ser humano não são considerados no decorrer da
assistência quando há correspondente ausência do registro interno e pessoal
sobre tal necessidade, ou seja, quando inexiste a vivência e interação
humanizada no próprio cotidiano de vida.
Neste aspecto, julgamos a importância do cuidado em relação à vida pessoal do
próprio profissional que necessita ser harmônica para tornar possível o
atendimento das demandas por autocuidado para promover seu bem-estar físico e
emocional(13).
Aos profissionais envolvidos em educação e ensino, as principais figuras do
processo pedagógico, a temática acima mencionada é preponderante. O espaço de
formação escolar não se resume a uma estrutura material, pois trata-se, antes
de tudo, de um foro social exuberante em qualidades intrínsecas.
Acredita-se que a forma de perceber e vivenciar as qualidades de um espaço são
fenômenos reais, e a habilidade, a abertura para sentir sua atmosfera
contribuem, ao menos em parte, para a formação da base do conhecimento sobre
como agir apropriadamente, segundo determinadas circunstâncias.
Desse modo, o educando pode desenvolver seu tato e esta capacidade constitui
uma qualidade necessária às pessoas que cuidam de outras(14), são vivências que
permitem a própria pessoa identificar suas prioridades e ter condições
adequadas para atender às demais pessoas, proporcionando-lhes bem-estar.
Ao transferir essas idéias ao espaço da formação dos profissionais de saúde,
cabe aos docentes proporcionarem aos educandos um espaço humanizado de
aprendizado, associado às condutas pessoais, pedagógicas e institucionais, para
que possam incorporá-los e, futuramente, transferi-los à esfera do cuidar.
O Ministério da Saúde(15) preconiza que a qualidade de atenção à mulher e seus
familiares no decurso do abortamento e no período pós-aborto, deva ser
desenvolvida por meio de um conjunto de ações. Neste processo, devem ser
garantidos o acolhimento que pode ser realizado de forma humanizada e a
informação, o aconselhamento e a competência profissional com uso de tecnologia
apropriada. O cumprimento desses requisitos requer comprometimento
profissional, assim como o respeito à dignidade e aos direitos individuais dos
receptores do cuidado.
Se bem que exista um grande interesse, por parte do Estado, na prestação da
assistência de qualidade à mulher e sua família no processo de aborto,
persistem, ainda, neste País, razões justas para as críticas em relação aos
programas de âmbito da saúde sexual e reprodutiva. A crítica volta-se ao
problema da unilateralidade existente nos programas, que visam quase,
exclusivamente, à saúde da mulher(16).
A exemplo desses programas, podemos citar o Programa de Assistência Integral à
Saúde da Mulher (PAISM), cuja proposta significou um marco na evolução da
abordagem à saúde da mulher. Apesar de ter sido uma proposta de vanguarda à
época de sua proposição, apresentava uma lacuna importante, ou seja, a não
inclusão da perspectiva masculina nas questões reprodutivas, contribuindo para
o fato da mulher continuar a ser responsabilizada unicamente pelas ocorrências
dessa esfera(17).
Atualmente, percebemos uma tendência à transformação no tocante às
responsabilidades reprodutivas. Esta mudança é atribuída a vários fatores,
dentre eles, o advento da AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, um
maior interesse pela vasectomia e alterações nos papéis desempenhados pela
mulher contemporânea(18).
Os colaboradores desta pesquisa ressaltaram a grande relevância da temática
abordada, demonstraram empatia diante da possibilidade que estavam tendo de
participar, expondo aspectos da vivência pessoal que foram complexos e
marcantes à vida deles. Expressaram que, nestas ocasiões, eles podem receber
mais informações, sobretudo as da esfera da sexualidade e reprodução, sobre a
qual possuem poucos conhecimentos e desejam obtê-los, porém não encontram
oportunidades favoráveis à sua aquisição(19). Conseqüentemente, recorrem aos
amigos, que, também, mostram conhecimentos insuficientes ou inadequados e
vivenciam o círculo vicioso do ensaio e erro, sofrendo todas as conseqüências
desta prática para a saúde e à própria vida(20).
No conteúdo das narrativas, observamos uma grande preocupação voltada ao estado
físico e emocional das parceiras. Muitos externaram o desejo de ampará-las e
oferecer-lhes suporte para superar o sofrimento causado pelo aborto. No
entanto, nem sempre estavam preparados para dar o devido apoio às suas
parceiras, já que eles mesmos estavam sofrendo com a situação, mesmo assim
muitos lhes ofereceram apoio no decorrer do compartilhamento da experiência.
Nesse sentido, os homens evidenciaram a necessidade de receber suporte
psicológico durante a vivência do processo de aborto, tenha sido ele espontâneo
ou provocado.
A respeito do preparo profissional de médicos e enfermeiros, Díaz e Díaz(17)
lamentam a falta de conteúdos relativos à comunicação interpessoal e à ação
educativa participativa nos cursos de formação. Avaliam que esta capacitação
seja essencial, assim como um processo educativo e de treinamento realizado de
forma contínua com todos os profissionais envolvidos. Isso contribui para o
desenvolvimento de novas habilidades que são importantes para a qualidade da
atenção à saúde das pessoas.
Independentemente da modalidade do aborto, constatou-se que os homens desejam
ter suas necessidades reconhecidas e isso requer um olhar amplo dos fatores
complexos que o envolvem. Como ficou demonstrado, eles não se restringem à
dimensão física e abrangem também o âmbito emocional com profundidade.
Consideramos que o conhecimento e correspondente consideração aos sentimentos
vivenciados pelos homens que compartilham a experiência do aborto, possam
contribuir na promoção da qualidade do cuidado.